segunda-feira, 18 de novembro de 2013

Tantra Vidyā #1


. Introdução a Cultura Tântrica .

[T e x t o  . I .]

Por Fernando Liguori


Tu não és nem menina nem donzela nem velha. Na verdade, tu não és nem feminino nem masculino nem neutro. Tu és inconcebível, poder imensurável, o Ser de tudo que existe, livre de toda dualidade, o supremo Brahman, acessível somente pela Iluminação.

Mahākāla-saṃhitā


Ensina-se ao sādhaka a não pensar que somos um com o Divino apenas na Libertação, mas que o somos aqui e agora, em cada ato que realizamos. Porque em verdade tudo isto é śakti. É Śiva que, como śakti, age dentro e por meio do sādhaka [...]. Quando isto é compreendido em cada função natural, então cada exercício deixa de ser um mero ato animal e torna-se um rito religioso, um yajña. Toda função é parte da ação divina [śakti] da natureza. Assim, ao tomar uma bebida na forma de vinho, o vīra sabe que este é Tārā-dravamayī, ou seja, «a própria salvadora em forma liquida». Como é possível – diz-se – que tal forma faça algum mal àquele que verdadeiramente vê aí a Mãe Salvadora? [...] Quando o vīra come, bebe ou realiza o ato sexual, nada disso faz com a ideia de ser um indivíduo que está satisfazendo suas próprias necessidades limitadas, como um animal que furta da natureza – por assim dizer – o prazer que sente. Mas pensando neste prazer ele é Śiva, e afirmando: śivo’ham, Bhairavo’ham, i.e. «Eu sou Śiva».

Sir John Woodroffe


ESTE texto é o primeiro de uma série de estudos acerca da tradição tântrica em todos os seus contextos. Na verdade, uma analise das religiões tântricas e seu impacto tanto nas antigas sociedades a qual estava inserida no universo indiano, quanto nos dias atuais. Contudo, uma série de estudos como estes não é fácil. A investigação das origens do Tantra e seu desenvolvimento é um processo histórico de difícil rastreamento, por causa da complexa interação entre as diversas tradições que lhe deram origem e à falta de registros confiáveis. Mas acredito que a importância em se empreender um estudo assim está na demonstração de como o Tantra foi se desenvolvendo no seio das tradições da Índia na medida em que assumia uma postura própria até se tornar uma das mais bem elaboradas exposições teológicas e metafísicas do continente pan-indiano.

O Tantra é uma ciência e um caminho espiritual complexo, e para sua compreensão é necessária uma visão profunda de sua alquimia, metafísica e teologia, sem o que a compreensão dos rituais secretos se confundiria com a milenar tradição do sexo prazeroso descrita nos kāmā-śāstras, e com os quais o Tantra nada tem a ver. Infelizmente, a maioria dos textos escritos para a divulgação popular somente trata do ritual sexual, denominado ritual secreto (rahasya-pūjā), com pouca ou nenhuma atenção aos aspectos fundamentais do Tantra, fazendo com que o sacramento ritualístico perca seu sentido, dando lugar a prática sexual não orientada e distinta do verdadeiro espírito tântrico. Portanto, o estudo do Tantra pede equilíbrio entre todos os aspectos, de forma a proporcionar ao estudante uma visão correta de seus fundamentos, tal como foram expostos pela tradição.

O Ocidente fora inundado por escolas de cunho neotântrico que se afastaram, por falta de compreensão por parte de seus difusores, da verdadeira essência da tradição tântrica. Inúmeros livros foram escritos com a ideia disseminada do sexo hiper-orgiástico, o que levou a degeneração da tradição conforme difundida nas escolas, cursos e workshops. O resultado é o que vemos: clubinhos pseudo-tântricos que se pretendem passar por tântricos espiritualizados e que são nada menos, na melhor das hipóteses, uma terapia de duvidoso resultado. Um hedonismo puro e simples que prende o buscador a forma ao invés de impulsioná-lo a sua Real Essência. Assim, há de ser enfatizado que a leitura de livros, por mais pormenorizados que sejam, não substitui a verdadeira iniciação «dīkṣā» e as instruções de um guru qualificado. Assim como os perfeitos [siddha] e os heróis [vīra], os Kaulas [...] devem dominar perfeitamente os seus sentidos, o seu pensamento, superar suas dúvidas e medos, ter um coração puro, livre da cobiça e do apego, e ter recebido de um Guru Real, de linhagem fidedigna, a iniciação. [...] Somente nestas condições os Kaulas podem vivenciar, protegidos por um marco ritual, as experiências proibidas ou desaconselhadas aos homens ordinários [paśu] dominados pela rotina e pela cobiça.

Todos os grupos e sub-grupos que apareceram de alguma forma conectados a tradição tântrica foram rechaçados e excluídos da sociedade pelas autoridades bramânicas ortodoxas. Há uma razão! Existe um traço peculiar e essencial na tradição tântrica que a distingue das filosofias precedentes: seu ideal é alcançar a iluminação exatamente por meio daqueles objetos que os sábios anteriores procuravam afastar de suas consciências. Neste processo, o candidato à sabedoria não busca atalhos para evitar a esfera das paixões – reprimindo-as em seu interior e fechando os olhos para suas manifestações exteriores, até que, purificado como um anjo, possa abrir os olhos com segurança e observar o ciclone do saṃsāra com o olhar imperturbável de um fantasma desencarnado. Muito ao contrário, o herói «vīra» tântrico passa diretamente através da esfera de maior perigo.

O princípio essencial da concepção tântrica é que o homem, em geral, tem de ascender através e por meio da natureza, sem rejeitá-la. Quando caímos no chão – diz o Kulārṇava-tantra –, temos de nos levantar com a ajuda do próprio chão. O mesmo texto declara que atinge-se o céu pelos caminhos que levam ao inferno. O prazer do amor, o prazer do sentimento humano, são a glória da Deusa em sua dança que produz o mundo, a felicidade de Śiva e sua śakti em sua eterna realização de identidade. A criança passional deve dissipar o senso do ego. Assim, o mesmo ato que antes era uma obstrução, torna-se agora a maré que o leva a realização da beatitude absoluta «ānanda». Essa maré de paixão é a água batismal que lava e faz desaparecer a mancha da consciência do ego. Seguindo o método tântrico, o herói «vīra» flutua além de si mesmo na corrente agitada, embora canalizada.

Portanto, a grande fórmula tântrica – tão diferente daquelas utilizadas nas primeiras disciplinas do Yoga – o Yoga «a união da consciência empírica com a consciência transcendental» e o bhoga «o gozo, a experiência do prazer e do sofrimento da vida», são o mesmo. O bhoga é o Yoga!

Mas é necessário um herói «vīra» para confrontar e assimilar, com perfeita equanimidade, toda maravilha da Criadora do Mundo – para fazer amor, sem reações histéricas, com a Força vital, que é a śakti de sua própria natureza integral. As cinco coisas boas (pañcatattva), que são as coisas proibidas dos homens e mulheres comuns do rebanho, servem de via sacramental para aquele que não apenas sabe, mas que também sente que a Força Universal (śakti) é, em essência, ele mesmo. No Tantra é possível adorar a Criadora do Mundo utilizando seus próprios procedimentos. O ato sexual (maithuna), que constitui o mais elevado rito espiritual, nunca pode ser realizado por um paśu «o gado, o animal humano que faz parte do grande rebanho, que deseja, teme e goza de maneira animal e vulgar», mas somente por um vīra, o herói que sabe ser idêntico a Śiva.

Como fruto do rito, liberamo-nos da ilusão, e esta liberação é a maior dádiva de Kālī, a formosa e obscura Deusa Dançarina do crematório.

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