terça-feira, 13 de outubro de 2009

Śrīkulācāra



Tridente (triśūlābija maṇḍalam), símbolo e yantra de Paramaśiva, compreendendo as três energias de parā, parāaparā e aparā śakti.

O site Śrīkulācāra está sendo apresentado com um novo objetivo: uma apresentação sistemática dos princípios filosóficos e espirituais do sistema Trika, popularmente conhecido como Śaivismo da Caxemira. Este é o mais proeminente sistema da tadição tântrica e eu me inclino a considerá-lo como a filosofia central do Tantrismo após a sintese feita por Abhinavagupta no Séc. X d.C.

Para traçar esta exposição nós temos de ir direto as fontes mais antigas dos Śaiva Tantras (conhecidos também como Āgama-s) e trazer a tona as origens de duas escolas arcaicas de iniciação: eu me refiro as escolas Kaula e Krama.

Em um sentido, a Tradição Kaula, com suas muitas escolas afiliadas, é a sucessora das mais primitivas formas de culto Śaiva pertencentes ao que os mestres da tradição chamam de Caminho Superior e se encontra conectada a outros grupos śaivagâmicos, particularmente os Bhairavatantras.

Na orientação aqui apresentada, demonstrarei como estas duas escolas, Kaula e Krama, foram extremamente importantes para o desenvolvimento do Śaivismo da Caxemira, que passou, com o tempo, a abranger inúmeros sub-grupos Kaula, largamente diversificados em sua inclinação ritualística. Monistas, os Tantras originais deste grupo são, assim como os Bhairava e Vāmatantras, de orientação Śākta. Embora se mantenham essencialmente e consistentemente Śaivas, colocam ênfase na adoração de divindades femininas. Estas escolas são as precursoras daquilo que posteriormente seria identificado como Tantrismo Śākta. A palavra Kula denota o poder da consciência – Śakti, a Deusa que é a emissão (visarga) do Absoluto (Akula), através do qual o universo é criado.

Entre as muitas escolas Kaula, as mais importantes para os Śaivas da Caxemira são a Krama e Trika. A Escola Krama tem um papel fundamental porque ela lida com o que é considerado a mais secreta prática e doutrina do Śaivismo da Caxemira, i.e. a adoração de Kālī. Baseando-se nos conceitos já dsenvolvidos nos Tantras originais e nas tradições orais associadas, o Śaivismo Krama da Caxemira elevou a adoração de Kālī em um nível além do ritual externo. O ritual passa a ser compreendido como um processo interno de iniciação através do qual o iniciado descobre sua real identidade com Kālī quem é o fluxo (krama) do poder da consciência através das polaridades do sujeito, objeto e os meios de conhecimento em consonância com seu caminho de subida e descida em cada ato de percepção. Esta experiência culmina no processo de despertar o potencial espiritual humano (kuṇḍalinī) e a expensão da consciência que acompanha a prática mais esotérica do Śaivismo da Caxemira. A característica Kaula desta escola é evidente pelo fato de advogar o ritual de consumo de carne (mānsa), vinho (madya) e intercurso (maithunā) como um meio de desenvolvimento da cansciência.

Mas este é um aspecto do Śaivismo da Caxemira muito difícil de se lidar, pois na busca por suas origens e linhagens, é muito fácil se perder em seu gigantesco universo agâmico. Portanto, precisamos ir além. Como é muito difícil distinguir a tênue linha que divide as escolas Krama e Kaula, não podemos limitar nosso campo de pesquisa a estas escolas apenas. Ao contrário da Tradição Krama e Trika, que são consideradas tântricas no contexto Śaiva da Caxemira, a designação Kaula ou Kula não indica uma escola ou sistema, mas um termo genérico que abrange um número maior de tradições, cada uma com suas ramificações secundárias. Kaula é assim uma linha preceptorial de tradições. Portanto, tanto no contexto agâmico quanto na abordagem de Abhinavagupta em seu Tantrāloka, Kula não é somente um termo que se aplica ao Śaivismo Kaula (como uma forma distinta de Śaivāgama), mas uma designação litúrgica ou um modelo arquetípico caracterizado por Abhinava como Kulaprakriyā, i.e. Método Kaula. Este método contrasta, mas também complementa, o método tântrico convencional, denominado Tantraprakriyā.

As escolas Krama e Trika (como apresentadas no contexto Śaiva da Caxemira), compartilham raízes comuns com a Tradição Kaula, pois os mestres que tradicionalmente são ditos terem revelado as escrituras Kaula no planeta são igualmente venerados em ambas as tradições. Contudo, não podemos simplesmente identificar a escola Trika com a Kula. Abhinava as distinguiu inúmeras vezes, indicando a suprerioridade da primeira em virtude da segunda. Isso não significa que a escola Trika exclui a Kula. Mas ao contrário, segundo Abhinava, a Tradição Trika passa a complementar a Tradição Kaula como uma de suas mais delicadas e finas flores. No ponto de vista de Abhinavagupta, sustentado pelas escrituras e pela autoridade de seu mestre, Śambhunātha, Trika se tornou a culminação de toda tradição śaivagâmica, pois ela absorveu elementos de várias tradições anteriores ao seu tempo, entre os quais são identificados claramente aspectos teológicos e cosmológicos do período do Śivasūtra, além de ritos das Tradições dos Pāśupatas, Kaulas, Krama e da própria Tradição Trika anterior à sua época.

Entretanto, a Tradição Trika tem sua identidade a parte daquilo que genericamente denominou-se Śaivismo da Caxemira. Em meu ponto de vista é um erro identificar o nome Trika ao conceito de Śaivismo da Caxemira, uma vez que nesta região existem outras formas de Śaivismo, bem diferentes da escola Trika em si. Seja lá a identidade e característica que a tradição Trika tinha antes do tempo de Abhinava, não há dúvida de que ele via uma identidade independente no contexto agâmico e de outras escolas Śaivas da Caxemira. No Tantrāloka (I: 14) ele diz: Muitos são os manuais em uso nas mais diversas tradições, mas os rituais de Anuttaratrika jamais podem ser vistos. Para suprir esta deficiência ele escreveu seu Tantrāloka (TĀ). Ele continua: A Doutrina Trika está dispersa entre [as várias] escrituras. Ela reside na casa do Mestre e somente pode ser transmitida pela tradição – sampradāyatrika (TĀ I: 10). Os três poderes [residem] em ordem nos [Tantras] da Face Superior [Īśāna, i.e. siddhāntatantras], da esquerda [vāmatantras] e direita [Bhairavatantras]. Começando do inferior até o superior, Trika engloba todos eles (TĀ IV: 6).

Sobre a Tradição Bhairavakulatantra ele diz: O mestre que conhece o supremo prncípio, embora consagrado no caminho de Vāma, necessita posteriormente ser iniciado primeiro no caminho de Bhairava e depois no caminho de Kula, Kaula e finalmente Trika. [...] De acordo com o venerável Bhairavakula, apenas o mestre que foi completamente purificado pelas cinco iniciações e tendo cruzado as mais baixas correntes [dos Āgama-s] é estabelecido na doutrina Trika. (TĀ XIII: 302).

Isso significa que conforme o pensamento e a posterior síntese feita por Abhinavagupta a Tradição Trika passa a englobar todo o universo agâmico, mas nem por isso deixa de ter uma identidade própria. Existe uma grande especulação por parte de inúmeros estudiosos acerca da diferenciação entre as escolas, seitas, tradições e sistemas do Śaivismo da Caxemira. A distinção e a divisão de linhas entre os diferentes grupos Śaivas não é simples. Ao examinarmos o TĀ vemos que Abhinavagupta livremente interconecta as linhagens Krama e Kaula, e me parece que mesmo na época dele só existiu uma limitada argumentação adversária entre estes grupos, e os iniciados de uma tradição aparentemente completavam suas práticas com as técnicas de outra. Naturalmente outros sub-grupos de tradições foram se formando como o resultado desta interconexão entre linhagens e mestres. E o caso de Abhinavagupta é particularmente interessante, pois ele participava de uma maneira ou de outra destes grupos Śaivas. Conseqüentemente, inúmeros estudiosos do Śaivismo não-dualista da Caxemira freqüentemente encontram grande dificuldade em especificar a doutrina e prática que diferencia as duas escolas. A linha de demarcação que existe entre estes grupos e outros como Spanda, Pratyabhijñā, Mata e Trika são muito tênues – principalmente após a reforma de Abhinava – e somente agora estão começando a emergir.

O TĀ, de acordo com Abhinavagupta, é o manual dos rituais e conseqüente doutrina daquilo que ele chamou de Anuttaratrikakula (a tradição Trika segundo a sua orientação). Para fazê-lo, ele unificou em um esquema exegético os ensinos de seu mestre, Śambhunātha. Esse esquema trazia à luz o que ele concebia como elementos essenciais da doutrina e ritual Śaiva. Isso completou a prática e a teologia da escola Trika. A tríade Suprema da deusa: Parā, Parāparā e Aparā, que é o foco supremo desta escola, já era conhecida e venerada antes de Abhinavagupta. Mesmo assim, foi ele quem fez a escola Trika o cerne do Śaivismo não-dualista da Caxemira. Portanto, é sob este aspecto que o site Śrīkulācāra faz referência ao sistema de Abhinavagupra: Tradição Trika de Śaivismo não-dualista da Caxemira, que, por definição, é diferente de outros sistemas Śaivas existentes naquela região.

A triade da deusa representa o Coração do Śaivismo da Caxemira (Trika Hṛidayam), e este símbolo tem um papel fundamental nos escritos tântricos de Abhinavagupta. Analisando o símbolo do Coração, adentramos a visão central de sua religiosidade, destacada em três níveis. Primeiro, a realidade do Coração como Śiva, i.e. a transcendência de Śiva no Coração. O termo chave aqui é Anuttara-tattva, o princípio da Realidade Última. O segundo nível envolve os ensinamentos de Abhinavagupta sobre os métodos e as técnicas que devem ser empregados para se atingir a Realidade Última do Coração e transformá-la em uma vívida realidade humana. O método mais direto e fácil de realização é conhecido como Śāmbhavopāya. O terceiro nível sugere a natureza do estado de realização do Coração cujo nome é hṛdayañgamībhūta, um estado conhecido como condição de Bhairava (Bhairavavatā). Portanto, em nosso estudo, sempre destacaremos estes três níveis no que concerne ao Coração: Realidade Última, método e realização.

Abhinava empregava o símbolo do Coração como parte de seu sistema, escola ou método que ele denominou como Kulaprakriyā. É exatamente nos escritos tântricos de Abhinava e seu método que iremos encontrar maiores referências sobre o Coração como um símbolo para Realidade Última. Assim, decifrando o símbolo do Coração na tentativa de encontrar seu significado mais oculto, teremos acesso a matriz conceitual que circunda as práticas e os métodos da linhagem Kaula.

Finalmente, este site se propõe ao estudo da gênese e desenvolvimento da tradição tântrica, com o propósito de determinar o exato lugar que o Tantrismo ocupa no sistema religioso e filosófico da cultura indiana, buscando o funcional significado da influência das idéias tântricas na sociedade.

Fernando Liguori

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