quarta-feira, 28 de outubro de 2009

Kuṇḍalinī Yoga Terapia & os Segredos Espirituais da Āyurveda



Por Purneś

Parte 1

No trabalho que desenvolvemos, eu e minha esposa Māikā, recebemos muitas pessoas precisando se curar. Na verdade, nosso trabalho é de cura e foram poucas as pessoas que nos procuraram com outros objetivos. Quando recebemos essas pessoas, primeiro tentamos encontrar a raiz dos seus desequilíbrios nos doas (biotipos constituintes) e traçamos um sādhanā (prática espiritual) especial para sanar estes desequilíbrios, dependendo da natureza de cada indivíduo. Este sādhanā ou dinacharya (conduta diária) inclui práticas yogīs como āsanas, prāāyāmas, mudrās e bandhas. Para aqueles que são ritualisticamente inclinados, orientamos um upāsana que envolve a adoração de deidades tântricas e védicas, assim como a execução de mantras e meditações. Portanto, nosso trabalho alia uma terapia com o kuṇḍalinī-yoga e os aspectos espirituais da Āyurveda.

Mas a cura através deste processo espiritual requer muito cuidado. Por exemplo, prāāyāma é um exercício muito forte para a grande maioria das pessoas que não estão acostumadas com a prática do Yoga e como o prāamaya-kośa (corpo energético ou invólucro prânico) dessas pessoas está quase sempre obstruído, é preciso tomar as devidas providências para desobstruí-lo a fim de que a execução do exercício respiratório não cause mais danos. Na verdade, só podemos empreender avanços no campo do prāāyāma se o prāamaya-kośa estiver completamente desobstruído.1

Como disse em um escrito anterior,2 muitas das assim rotuladas doenças mentais pela medicina alopática moderna são, de fato, desordens no despertar da kuṇḍalinī. Para compreender esse processo através do kuṇḍalinī-yoga, precisamos examinar o conhecimento da Āyurveda. A Āyurveda não é apenas um sistema médico com propósitos de cura ordinária, ela também demonstra como as sutis energias do corpo e da mente funcionam através da prática do Yoga. Assim, ela pode nos auxiliar a despertar estas energias de forma apropriada, mantendo-as em equilíbrio. A prática do kuṇḍalinī-yoga sob uma perspectiva ayurvédica facilita sua eficiência. Muitos dos fundamentos práticos do kuṇḍalinī-yoga são encontrados na Āyurveda enquanto que as práticas espirituais da Āyurveda estão conectadas ao kuṇḍalinī-yoga.

A Āyurveda se baseia na teoria dos tridoas, o conceito de três humores biológicos (doas): vāta – ar, pitta – fogo e kapha – água. Estas três forças poderosas do macrocosmo são forças que estruturam o microcosmo (o corpo). Portanto, estes três humores aparecem como diferentes tipos constituintes. A Āyurveda vê o indivíduo como uma manifestação predominante de um destes três humores. Mas não é a compreensão destes humores corporais ou doas que nos fará entender as desordens causadas pelo despertar da kuṇḍalinī, mas a sua contra parte sutil ou espiritual: prāa, tejas e ojas. Através da compreensão da contra parte espiritual dos humores corporais é mais fácil entender também como essa energia sutil da kuṇḍalinī se torna ativa através dos processos yogīs.
Os doas sutis: prāa, tejas e ojas

As três essências sutis dos humores biológicos podem ser definidas como:

1.     Prāa – que significa energia ou força vital, cujo veículo é a respiração, como vāta, é a energia do ar, mas em uma forma sutil. Representa a habilidade de movimentar os pensamentos e percepções. É a força mestre que guia a inteligência por detrás de todas as funções psicofísicas. Responsável pela coordenação da respiração, dos sentidos e da mente. É responsável também pela expansão e harmonização dos elevados estados de consciência.
2.     Tejas – que significa fogo ou brilho – como pitta, é a energia do fogo ou digestão, mas em sua forma sutil, como o poder de digerir idéias ou emoções. É a vitalidade através da qual digerimos impressões e pensamentos. Governa a expansão de todas as elevadas capacidades de percepção.
3.     Ojas – que significa força subjacente – como kapha, é a energia da água em sua forma sutil, como o fluído essencial da reserva de energia de toda a estrutura psicofísica ou a capacidade fundamental da paciência, tolerância e persistência. É a energia sutil da água armazenada como essência vital internalizada da comida digerida, água, ar, impressões e pensamentos.

Nós podemos dizer que prāa, tejas e ojas são as energias espirituais ou sutis dos elementos ar, fogo e água. Eles são os elementos em sua forma sublimada e refinada, saturada com a energia da consciência.3 Mais especificamente, são a raiz energética por detrás de toda manifestação e criação, tanto com forma quanto sem forma. Eles contém os poderes dos tanmātras (elementos sutis dos potenciais sensoriais, i.e. os órgãos de ação e percepção).4

O kuṇḍalinī-yoga integra uma ciência sutil e uma tecnologia que promove o desenvolvimento de poderes elevados latentes além do complexo corpo-mente. Ele ensina que nós somos o laboratório. Nosso próprio complexo psicofísico é o campo de experimentação. Não podemos esperar desenvolver as habilidades supra-sensíveis da kuṇḍalinī se não cultivarmos a paciência e a determinação de um cientista. Caráter maduro, mente unidirecionada e continuidade de propósito são necessários.

Se alguém tenta desenvolver tejas ou prāa sem o suporte adequado de ojas muitas dificuldades podem aparecer no processo. Essa é a causa das muitas assim chamadas desordens na experiência da kuṇḍalinī que aparecem hoje em dia. Tais desordens usualmente envolvem o desarranjo de prāa, tejas e ojas, energias sutis conectadas a experiência da kuṇḍalinī que, muito raramente, expande ou ascende acidentalmente.5

Através de ojas temos a capacidade de adquirir e preservar grande quantidade de energia. É como uma grande quantidade de watts em nossa lâmpada (a mente). Tejas é como a corrente elétrica que passa através da lâmpada, enquanto prāa é avelocidade da corrente. Se ocorre o aumento de tejas e prāa no organismo, mas sem o equivalente em ojas, é como tentar colocar mil watts em uma lâmpada de cem watts. A lâmpada irá explodir! Portanto, muitas das desordens meditativas e principalmente na experiência da kuṇḍalinī ocorrem por insuficiência de ojas no organismo. Isso causa um desequilíbrio que impossibilita ainda mais a capacidade de desenvolver as potentes energias que todos buscamos manipular.
A menos que controlemos nossa energia sexual, a menos que nossa dieta seja pura e nutriva, a menos que tenhamos fé, equanimidade e devoção – a menos que ojas seja apropriadamente cultivado e preservado – nós não teremos a fundação apropriada para empreender práticas intensas de prāāyāma, mantra e meditação, mesmo que compreendermos a prática conceitualmente. Se nos lançarmos a estas práticas sem essa fundação nós podemos até conquistar determinadas experiências, mas elas muito provavelmente serão corruptas, ilusórias ou enganosas. Não é suficiente para nosso intelecto (tejas) ser perspicaz. Nós devemos ter um estilo de vida que suporte uma quantidade suficiente de ojas que proporcione a base para prática espiritual.

As assim chamadas desordens da kuṇḍalinī envolvem o movimento errado do prāa no corpo, o que causa disturbios mentais, disfunções neuro-musculares ou o desenvolvimento prematuro de tejas que literalmente queima o sistema nervoso. A perda do equilíbrio e a irregularidade do sistema digestivo é um desarranjo de samāna-vāyu (o ar equilibrante). O movimento descontrolado dos membros é um desarranjo de vyāna-vāyu (o ar difuso). Fala ou tosse descontrolada é um desarranjo de udāna-vāyu (o ar circulante). Hipersensibilidade é um desarranjo de śthūla-prāa-vāyu (o ar ascendente). Problemas com o sistema urogenital é um desarranjo de apāna-vāyu (o ar descendente).

Desequilíbrio em tejas provoca queimação na região da cabeça, sensibilidade a luzes radiantes, mal humor, irritabilidade e raiva. Estes desequilíbrios podem ser abrandados pelo desenvolvimento de ojas que, entretanto, leva tempo e requer paciência.

Nós notamos que os indivíduos com uma baixa taxa de ojas no organismo apresentaram disfunções mediúnicas pela sobrecarga e inabilidade em controlar a mente e as emoções. Tais indivíduos se tornam predispostos a possessão de espíritos e entidades, sem controle algum sobre este processo, o que causa dano ao equilíbrio corporal e mental. Esse desequilíbrio causa a falta de tejas, o que torna o processo mais intenso e mais difícil de ser controlado, pois faltam percepção real e discriminação acurada.

O processo de kuṇḍalinī-yoga envolve o despertar da força mental sutil (iā) e da força prânica sutil (pigalā). Através de técnicas como āsanas, prāāyāmas, mudrās e bandhas essas forças podem ser equilibradas. Muitas das pessoas que nos procuram apresentam um profundo desequilíbrio nessas energias sutis. Quando há um excesso no funcionamento de pigalā, ocorre um aumento de tejas, o que satura pitta. O excesso de calor gera raiva, orgulho e aumenta a atuação do ego na personalidade que, por sua vez, cria hábitos e conduta tirânica, arrogante, insolente e soberba. Quando há um excesso no funcionamento de iā, ocorre um aumento de ojas, o que satura kapha. A pessoa passa a se sentir pesada, preguiçosa e desenvolve habilidades que perturbam sua constituição energética, bloqueando o prāamaya-kośa. Sob essas circunstâncias, ela pode apresentar estados emocionais instáveis. Quando ocorre um desequilíbrio entre estas duas īs o indivíduo pode apresentar desordens de vāta tais como insônia, alucinação, medo e ansiedade. De acordo com o kuṇḍalinī-yoga essas desordens nas īs iā e pigalā podem ser corrigidas através da prática terapêutica do prāāyma.

A natureza da mente se compõe por três qualidades ou modos de manifestação distintos conhecidos como guas: tamas, rajas e sattva. Tamas é inércia; rajas é dinamismo e sattva é estabilidade. Por exemplo, uma rocha representa tamas, o homem rajas e a espiritualidade sattva. A mente torpe ou sem consciência é tamásica, i.e. inerte. A mente oscilante que vai de um extremo ao outro, da consciência a total falta de consciência é rajásica ou dinâmica. Finalmente, a mente estável e unidirecionada é essencialmente satvica. Tamas é o primeiro estágio na evolução e seu caminho é ir em direção a rajas e depois tornar-se sattva. No estado de tamas, tanto rajas quanto sattva são forças potenciais. Em rajas há traços de tamas e sattva e em sattva já não existem traços de tamas ou rajas, não há mais influência deles.

Durante a prática de prāāyāma a mente deveria estar estável, desperta, sem oscilar entre um pensamento e outro. Dessa maneira, todo o sistema se torna receptivo a influência do prāāyāma. Quando a mente se encontra inerte (tamas), algumas īs permanecem inertes e fechadas. As impurezas depositadas obstruem a passagem da energia. O mesmo ocorre com a mente oscilante (rajas). Mas quando a mente se encontra estável (sattva), a consciência interior cresce rapidamente e o prāa se acumula no organismo, pois a passagem da energia pelos condutos (ī) percorre todo o corpo.

Quando suumnā desperta, aumentamos o caudal de sattva na mente. Quando rajas é predominante, pigalā-nāī está operando dinamicamente. Quando tamas é predominante, iā-nāī está em atividade. Portanto, prāāyāma é melhor aproveitado quando o fluxo de energia (prāa) está fluindo por suumnā. Quando a respiração está fluindo naturalmente através de ambas as narinas, significa que suumnā está ativa. Geralmente nós não conseguimos respirar por ambas as narinas de forma equilibrada. Usualmente uma narina se encontra aberta e a outra parcialmente ou completamente fechada. A ciência chama isso de ritmos alternados. O Yoga chama de swara.

A ciência do swara-yoga diz que o fluxo da respiração se alterna em iā e pigalā-nāī aproximadamente a cada noventa minutos. A ciência já observou este processo de alternância respiratória e o associou as funções dos hemisférios esquerdo e direito do cérebro. Portanto, na medida em que o fluxo da respiração se alterna nas narinas, o cérebro também altera suas atividades, de um hemisfério ao outro. Quando a respiração flui através da narina esquerda, iā-nāī e o hemisfério direito do cérebro estão em atividade. Quando a respiração flui pela narina direita, pigalā-nāī e o hemisfério esquerdo do cérebro estão em atividade.

Pigalā-nāī é de natureza masculina, dinâmica. Iā-nāī é de natureza feminina, passiva. O hemisfério esquerdo do cérebro opera com o dinamismo de pigalā-nāī. Processa informação de maneira lógica, seqüencial e funciona de acordo com o tempo-espaço estabelecido. O hemisfério direito do cérebro está concernido à intuição, criatividade e orientação espacial (iā-nāī). Quando os dois hemisférios funcionam simultaneamente a energia que antes oscilava de um hemisfério ao outro agora opera consistentemente em todo cérebro. Ela passa através da fina membrana entre os dois hemisférios conhecida como corpus callosum. Neste momento, todo o cérebro passa a operar em sua capacidade máxima e a percepção do mundo já não se limita a um modo distinto de processar as informações que vêm de dentro ou de fora de nós.

De acordo com o swara-yoga, durante o fluxo de energia em iā, nós deveríamos executar atividades que requerem criatividade e intuição. Durante o fluxo da energia em pigalā, deveríamos executar trabalhos físicos ou atividades intelectuais. Durante o fluxo da energia em suumnā, deveríamos executar dhyāna (meditação) e yoga-abhyāsa (prática disciplinada e contínua de Yoga).

Os fatores que influenciam o fluxo de prāa nas īs são:

·         Estilo de vida
·         Dieta
·         Desejos
·         Pensamentos e emoções

Quando a personalidade é equilibrada e não existem condições extremas na mente e corpo, a respiração será harmonizada.

Portanto, em nosso trabalho utilizamos a combinação terapêutica do kuṇḍalinī-yoga com a Āyurveda. Ao contrario do que muitos podem pensar, o kuṇḍalinī-yoga não é apenas um método de preparação para o despertar espiritual, mas também é uma ciência muito importante no campo da saúde e da cura. Desde os tempos antigos o kuṇḍalinī-yoga tem sido usado por yogīs e ṛṣīs para o alívio e eliminação de todos os tipos de doenças, distúrbios e defeitos. É verdade que as práticas exigem um pouco mais de tempo e esforço por parte do paciente do que as terapias convencionais. Os resultados são muito positivos, além de poupar o paciente de despesas enormes com medicamentos. Portanto, certamente vale à pena.

Anotações

1. Veja o artigo do autor Desobstruindo o Prāamaya Kośa. Revista Yoga Vidyā, Vol. 1, No. 4. Kaula Yoga Publicações, 2012. Veja também o artigo Prāa, Prāa Nigraha & Prāāyāma. Revista Yoga Vidyā, Vol. 1, No. 3. Kaula Yoga Publicações, 2011.

2. Kuṇḍalinī & Esquizofrenia. Artigo disponível no blog do autor: www.srikulacara.blogspot.com.

3. O kuṇḍalinī-yoga dá muita importância à consciência. Existem vários estados de consciência segundo o Tantra e é o objetivo do kuṇḍalinī-yoga transformar e elevar os estados mais densos de consciência para os níveis mais altos.

4. Nos tattvas de manifestação do universo, como os jñānendriyas (poderes de percepção) e karmendriyas (poderes de ação), os tanmātras surgiram do aspecto tamas de ahakāra (o ego) e servem como moldes para a percepção da mente no universo de múltiplas formas, nomes e cores. O nome tanmātra literalmente significa simplesmente (mātra) aquilo (tat) e refere-se ao fato de que um tanmātra é apenas algo sem nenhuma diferenciação em particular, sendo apenas uma forma de medida comparativa que estabelece padrões separados. P.e. rūpa-tanmātra é apenas uma cor paterna, e não uma cor em particular como o preto, branco, azul etc.

5. Desde a publicação dos artigos Kuṇḍalinī & Esquizofrenia, A Alquimia da Kuṇḍalinī & Transmutação sexual, Yoga & Espiritualidade, Tantra, Neotantrismo & Brahmacarya (todos disponíveis no blog do autor) e do último, Ghastha Brahmacarya & o Despertar da Śakti (Revista Yoga Vidyā, Vol. 1, No. 3), nós recebemos inúmeros relatos de pessoas que, de alguma maneira, segundo elas mesmas, passaram pela experiência da kuṇḍalinī. Infelizmente, o que comprovamos é que muitos dos relatos que chegaram até nossas mãos eram descrições irreais do processo, alucinações e devaneios. A maioria dessas pessoas demonstrou um profundo desequilíbrio psicológico e energético. Seus relatos afirmavam que a kuṇḍalinī, neles, despertou espontaneamente. Isso pode ocorrer, como enfatizamos no artigo Kuṇḍalinī & Esquizofrenia, mas são raros os casos. Pelo menos no Brasil nós não conhecemos nenhuma pessoa que tenha despertado a kuṇḍalinī completamente de forma espontânea. Conhecemos sim pessoas com desordens no despertar, o que é muito comum. A Āyurveda considera muitas das doenças mentais como desordens no despertar da kuṇḍalinī, mas isso não significa que todas as pessoas que tenham problemas mentais estejam passando necessariamente pela experiência do despertar e ascensão da kuṇḍalinī. Nós criamos um grupo no Yahoo e no Facebook para discutir essas experiências e o processo do kuṇḍalinī-yoga. Todos são bem vindos para participar.

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