Kuṇḍalinī Yoga Terapia & os Segredos Espirituais da Āyurveda
Por Purneś
Parte 1
No trabalho que desenvolvemos, eu e minha esposa Māḷikā, recebemos muitas pessoas precisando se curar. Na verdade, nosso
trabalho é de cura e foram poucas as pessoas que nos procuraram com outros
objetivos. Quando recebemos essas pessoas, primeiro tentamos encontrar a raiz
dos seus desequilíbrios nos doṣas (biotipos constituintes)
e traçamos um sādhanā (prática
espiritual) especial para sanar estes desequilíbrios, dependendo da natureza de
cada indivíduo. Este sādhanā ou dinacharya (conduta diária) inclui
práticas yogīs como āsanas, prāṇāyāmas, mudrās e bandhas. Para aqueles que são ritualisticamente
inclinados, orientamos um upāsana que
envolve a adoração de deidades tântricas e védicas, assim como a execução de mantras e meditações. Portanto, nosso
trabalho alia uma terapia com o kuṇḍalinī-yoga e os aspectos
espirituais da Āyurveda.
Mas a cura através deste processo espiritual requer
muito cuidado. Por exemplo, prāṇāyāma é um exercício muito
forte para a grande maioria das pessoas que não estão acostumadas com a prática
do Yoga e como o prāṇamaya-kośa (corpo energético ou invólucro prânico) dessas pessoas
está quase sempre obstruído, é preciso tomar as devidas providências para desobstruí-lo
a fim de que a execução do exercício respiratório não cause mais danos. Na
verdade, só podemos empreender avanços no campo do prāṇāyāma se o prāṇamaya-kośa estiver completamente
desobstruído.1
Como disse em um escrito anterior,2 muitas
das assim rotuladas doenças mentais pela medicina alopática moderna são, de
fato, desordens no despertar da kuṇḍalinī. Para compreender esse
processo através do kuṇḍalinī-yoga, precisamos examinar o
conhecimento da Āyurveda. A Āyurveda não é apenas um sistema médico
com propósitos de cura ordinária, ela também demonstra como as sutis energias
do corpo e da mente funcionam através da prática do Yoga. Assim, ela pode nos auxiliar a despertar estas energias de
forma apropriada, mantendo-as em equilíbrio. A prática do kuṇḍalinī-yoga sob uma perspectiva ayurvédica facilita sua eficiência. Muitos dos fundamentos práticos
do kuṇḍalinī-yoga são encontrados na Āyurveda enquanto que as práticas
espirituais da Āyurveda estão
conectadas ao kuṇḍalinī-yoga.
A Āyurveda
se baseia na teoria dos tridoṣas, o conceito de três
humores biológicos (doṣas): vāta – ar, pitta – fogo e
kapha – água. Estas três forças
poderosas do macrocosmo são forças que estruturam o microcosmo (o corpo).
Portanto, estes três humores aparecem como diferentes tipos constituintes. A Āyurveda vê o indivíduo como uma
manifestação predominante de um destes três humores. Mas não é a compreensão
destes humores corporais ou doṣas que nos fará entender as
desordens causadas pelo despertar da kuṇḍalinī, mas a sua contra parte
sutil ou espiritual: prāṇa, tejas e ojas. Através da
compreensão da contra parte espiritual dos humores corporais é mais fácil
entender também como essa energia sutil da kuṇḍalinī se torna ativa através
dos processos yogīs.
Os doṣas sutis: prāṇa, tejas e
ojas
As três essências sutis dos humores biológicos podem
ser definidas como:
1.
Prāṇa – que significa energia
ou força vital, cujo veículo é a respiração, como vāta, é a energia do ar, mas em uma forma sutil. Representa a
habilidade de movimentar os pensamentos e percepções. É a força mestre que guia
a inteligência por detrás de todas as funções psicofísicas. Responsável pela
coordenação da respiração, dos sentidos e da mente. É responsável também pela
expansão e harmonização dos elevados estados de consciência.
2.
Tejas – que significa fogo ou
brilho – como pitta, é a energia do
fogo ou digestão, mas em sua forma sutil, como o poder de digerir idéias ou
emoções. É a vitalidade através da qual digerimos impressões e pensamentos.
Governa a expansão de todas as elevadas capacidades de percepção.
3.
Ojas – que significa força
subjacente – como kapha, é a energia
da água em sua forma sutil, como o fluído essencial da reserva de energia de
toda a estrutura psicofísica ou a capacidade fundamental da paciência,
tolerância e persistência. É a energia sutil da água armazenada como essência
vital internalizada da comida digerida, água, ar, impressões e pensamentos.
Nós podemos dizer que prāṇa, tejas e ojas são as energias espirituais ou sutis dos elementos ar, fogo e
água. Eles são os elementos em sua forma sublimada e refinada, saturada com a
energia da consciência.3 Mais especificamente, são a raiz energética
por detrás de toda manifestação e criação, tanto com forma quanto sem forma. Eles
contém os poderes dos tanmātras
(elementos sutis dos potenciais sensoriais, i.e. os órgãos de ação e percepção).4
O kuṇḍalinī-yoga integra uma ciência sutil e uma tecnologia
que promove o desenvolvimento de poderes elevados latentes além do complexo
corpo-mente. Ele ensina que nós somos o laboratório. Nosso próprio complexo
psicofísico é o campo de experimentação. Não podemos esperar desenvolver as
habilidades supra-sensíveis da kuṇḍalinī se não cultivarmos a paciência e a
determinação de um cientista. Caráter maduro, mente unidirecionada e
continuidade de propósito são necessários.
Se alguém tenta desenvolver tejas ou prāṇa sem o suporte adequado de ojas muitas dificuldades podem aparecer no processo. Essa é a causa
das muitas assim chamadas desordens
na experiência da kuṇḍalinī que aparecem hoje em dia. Tais desordens usualmente envolvem
o desarranjo de prāṇa, tejas e ojas, energias sutis conectadas a
experiência da kuṇḍalinī que, muito raramente, expande ou ascende acidentalmente.5
Através de ojas
temos a capacidade de adquirir e preservar grande quantidade de energia. É como
uma grande quantidade de watts em
nossa lâmpada (a mente). Tejas é como
a corrente elétrica que passa através da lâmpada, enquanto prāṇa é avelocidade da corrente. Se ocorre o
aumento de tejas e prāṇa no organismo, mas sem o equivalente em ojas, é como tentar colocar mil watts em uma lâmpada de cem watts. A lâmpada irá explodir! Portanto,
muitas das desordens meditativas e principalmente na experiência da kuṇḍalinī ocorrem por insuficiência de ojas no organismo. Isso causa um
desequilíbrio que impossibilita ainda mais a capacidade de desenvolver as potentes
energias que todos buscamos manipular.
A menos que controlemos nossa energia sexual, a menos que
nossa dieta seja pura e nutriva, a menos que tenhamos fé, equanimidade e
devoção – a menos que ojas seja
apropriadamente cultivado e preservado – nós não teremos a fundação apropriada
para empreender práticas intensas de prāṇāyāma, mantra e
meditação, mesmo que compreendermos a prática conceitualmente. Se nos lançarmos
a estas práticas sem essa fundação nós podemos até conquistar determinadas
experiências, mas elas muito provavelmente serão corruptas, ilusórias ou
enganosas. Não é suficiente para nosso intelecto (tejas) ser perspicaz. Nós devemos ter um estilo de vida que suporte
uma quantidade suficiente de ojas que
proporcione a base para prática espiritual.
As assim chamadas desordens da kuṇḍalinī envolvem o movimento errado do prāṇa no corpo, o que causa disturbios mentais,
disfunções neuro-musculares ou o desenvolvimento prematuro de tejas que literalmente queima o sistema
nervoso. A perda do equilíbrio e a irregularidade do sistema digestivo é um
desarranjo de samāna-vāyu (o ar
equilibrante). O movimento descontrolado dos membros é um desarranjo de vyāna-vāyu (o ar difuso). Fala ou tosse
descontrolada é um desarranjo de udāna-vāyu
(o ar circulante). Hipersensibilidade é um desarranjo de śthūla-prāṇa-vāyu (o ar ascendente). Problemas com o sistema urogenital
é um desarranjo de apāna-vāyu (o ar
descendente).
Desequilíbrio em tejas
provoca queimação na região da cabeça, sensibilidade a luzes radiantes, mal
humor, irritabilidade e raiva. Estes desequilíbrios podem ser abrandados pelo
desenvolvimento de ojas que,
entretanto, leva tempo e requer paciência.
Nós notamos que os indivíduos com uma baixa taxa de ojas no organismo apresentaram
disfunções mediúnicas pela sobrecarga e inabilidade em controlar a mente e as
emoções. Tais indivíduos se tornam predispostos a possessão de espíritos e
entidades, sem controle algum sobre este processo, o que causa dano ao
equilíbrio corporal e mental. Esse desequilíbrio causa a falta de tejas, o que torna o processo mais
intenso e mais difícil de ser controlado, pois faltam percepção real e
discriminação acurada.
O processo de kuṇḍalinī-yoga envolve o despertar da
força mental sutil (iḍā) e da força prânica sutil (piṅgalā). Através de técnicas como āsanas,
prāṇāyāmas, mudrās e bandhas essas forças podem ser equilibradas. Muitas das pessoas que
nos procuram apresentam um profundo desequilíbrio nessas energias sutis. Quando
há um excesso no funcionamento de piṅgalā, ocorre um aumento de tejas, o
que satura pitta. O excesso de calor
gera raiva, orgulho e aumenta a atuação do ego na personalidade que, por sua
vez, cria hábitos e conduta tirânica, arrogante, insolente e soberba. Quando há
um excesso no funcionamento de iḍā, ocorre um aumento de ojas, o
que satura kapha. A pessoa passa a se
sentir pesada, preguiçosa e desenvolve habilidades que perturbam sua
constituição energética, bloqueando o prāṇamaya-kośa. Sob essas circunstâncias, ela pode apresentar estados emocionais
instáveis. Quando ocorre um desequilíbrio entre estas duas nāḍīs o indivíduo pode
apresentar desordens de vāta tais
como insônia, alucinação, medo e ansiedade. De acordo com o kuṇḍalinī-yoga essas desordens nas nāḍīs iḍā e piṅgalā podem ser corrigidas através da prática terapêutica do prāṇāyma.
A natureza da mente se compõe por três
qualidades ou modos de manifestação distintos conhecidos como guṇas: tamas, rajas e sattva. Tamas é inércia; rajas é dinamismo e sattva é estabilidade.
Por exemplo, uma rocha representa tamas,
o homem rajas e a espiritualidade sattva. A mente torpe ou sem consciência
é tamásica, i.e. inerte. A mente
oscilante que vai de um extremo ao outro, da consciência a total falta de
consciência é rajásica ou dinâmica.
Finalmente, a mente estável e unidirecionada é essencialmente satvica. Tamas é o primeiro estágio na evolução e seu caminho é ir em
direção a rajas e depois tornar-se sattva. No estado de tamas, tanto rajas quanto sattva são
forças potenciais. Em rajas há traços
de tamas e sattva e em sattva já não
existem traços de tamas ou rajas, não há mais influência deles.
Durante a prática de prāṇāyāma
a mente deveria estar estável, desperta, sem oscilar entre um pensamento e
outro. Dessa maneira, todo o sistema se torna receptivo a influência do prāṇāyāma.
Quando a mente se encontra inerte (tamas), algumas nāḍīs
permanecem inertes e fechadas. As impurezas depositadas obstruem a passagem da
energia. O mesmo ocorre com a mente oscilante (rajas). Mas quando a
mente se encontra estável (sattva), a consciência interior cresce
rapidamente e o prāṇa se acumula no organismo, pois a passagem da
energia pelos condutos (nāḍī) percorre todo o corpo.
Quando suṣumnā desperta,
aumentamos o caudal de sattva na
mente. Quando rajas é predominante, piṅgalā-nāḍī está operando
dinamicamente. Quando tamas é
predominante, iḍā-nāḍī está em
atividade. Portanto, prāṇāyāma é melhor aproveitado quando o fluxo de energia (prāṇa)
está fluindo por suṣumnā. Quando a respiração está fluindo
naturalmente através de ambas as narinas, significa que suṣumnā está ativa.
Geralmente nós não conseguimos respirar por ambas as narinas de forma equilibrada.
Usualmente uma narina se encontra aberta e a outra parcialmente ou
completamente fechada. A ciência chama isso de ritmos alternados. O Yoga
chama de swara.
A ciência do swara-yoga diz que o fluxo da respiração se alterna em iḍā e piṅgalā-nāḍī aproximadamente
a cada noventa minutos. A ciência já observou este processo de alternância respiratória
e o associou as funções dos hemisférios esquerdo e direito do cérebro.
Portanto, na medida em que o fluxo da respiração se alterna nas narinas, o
cérebro também altera suas atividades, de um hemisfério ao outro. Quando a
respiração flui através da narina esquerda, iḍā-nāḍī e o hemisfério
direito do cérebro estão em atividade. Quando a respiração flui pela narina
direita, piṅgalā-nāḍī e o hemisfério
esquerdo do cérebro estão em atividade.
Piṅgalā-nāḍī é de natureza
masculina, dinâmica. Iḍā-nāḍī é de natureza
feminina, passiva. O hemisfério esquerdo do cérebro opera com o dinamismo de piṅgalā-nāḍī. Processa informação
de maneira lógica, seqüencial e funciona de acordo com o tempo-espaço
estabelecido. O hemisfério direito do cérebro está concernido à intuição,
criatividade e orientação espacial (iḍā-nāḍī). Quando os dois
hemisférios funcionam simultaneamente a energia que antes oscilava de um
hemisfério ao outro agora opera consistentemente em todo cérebro. Ela passa
através da fina membrana entre os dois hemisférios conhecida como corpus callosum. Neste momento, todo o
cérebro passa a operar em sua capacidade máxima e a percepção do mundo já não
se limita a um modo distinto de processar as informações que vêm de dentro ou
de fora de nós.
De acordo com o swara-yoga, durante o fluxo de energia em iḍā, nós deveríamos
executar atividades que requerem criatividade e intuição. Durante o fluxo da
energia em piṅgalā, deveríamos executar trabalhos físicos
ou atividades intelectuais. Durante o fluxo da energia em suṣumnā, deveríamos
executar dhyāna (meditação) e yoga-abhyāsa (prática disciplinada e
contínua de Yoga).
Os fatores que influenciam o fluxo de prāṇa nas nāḍīs são:
·
Estilo de vida
·
Dieta
·
Desejos
·
Pensamentos e emoções
Quando a personalidade é equilibrada e
não existem condições extremas na mente e corpo, a respiração será harmonizada.
Portanto, em nosso trabalho utilizamos
a combinação terapêutica do kuṇḍalinī-yoga com a Āyurveda. Ao contrario do que muitos podem pensar, o kuṇḍalinī-yoga
não é apenas um método de preparação para o despertar espiritual, mas também é
uma ciência muito importante no campo da saúde e da cura. Desde os tempos
antigos o kuṇḍalinī-yoga tem sido usado por yogīs e ṛṣīs para o alívio e eliminação de
todos os tipos de doenças, distúrbios e defeitos. É verdade que as práticas
exigem um pouco mais de tempo e esforço por parte do paciente do que as terapias
convencionais. Os resultados são muito positivos, além de poupar o paciente de
despesas enormes com medicamentos. Portanto, certamente vale à pena.
Anotações
1. Veja o
artigo do autor Desobstruindo o Prāṇamaya Kośa. Revista Yoga Vidyā,
Vol. 1, No. 4. Kaula Yoga Publicações,
2012. Veja também o artigo Prāṇa, Prāṇa Nigraha
& Prāṇāyāma. Revista Yoga Vidyā, Vol. 1, No. 3. Kaula Yoga Publicações, 2011.
3. O kuṇḍalinī-yoga dá muita importância à
consciência. Existem vários estados de consciência segundo o Tantra e é o objetivo do kuṇḍalinī-yoga transformar e elevar os
estados mais densos de consciência para os níveis mais altos.
4. Nos tattvas de manifestação do universo, como
os jñānendriyas (poderes de percepção) e karmendriyas (poderes de ação), os tanmātras surgiram do aspecto tamas de ahaṃkāra (o ego) e servem como
moldes para a percepção da mente no universo de múltiplas formas, nomes e
cores. O nome tanmātra literalmente
significa simplesmente (mātra) aquilo (tat)
e refere-se ao fato de que um tanmātra
é apenas algo sem nenhuma diferenciação em particular, sendo apenas
uma forma de medida comparativa que estabelece padrões separados. P.e. rūpa-tanmātra é apenas uma cor paterna, e não uma cor em particular
como o preto, branco, azul etc.
5. Desde a
publicação dos artigos Kuṇḍalinī &
Esquizofrenia, A Alquimia da Kuṇḍalinī &
Transmutação sexual, Yoga & Espiritualidade, Tantra, Neotantrismo & Brahmacarya
(todos disponíveis no blog do autor) e do último, Gṛhastha Brahmacarya & o Despertar da Śakti (Revista Yoga Vidyā,
Vol. 1, No. 3), nós recebemos inúmeros relatos de pessoas que, de alguma
maneira, segundo elas mesmas, passaram pela experiência da kuṇḍalinī. Infelizmente, o que comprovamos é que muitos dos
relatos que chegaram até nossas mãos eram descrições irreais do processo,
alucinações e devaneios. A maioria dessas pessoas demonstrou um profundo
desequilíbrio psicológico e energético. Seus relatos afirmavam que a kuṇḍalinī, neles, despertou
espontaneamente. Isso pode ocorrer, como enfatizamos no artigo Kuṇḍalinī & Esquizofrenia, mas são raros os casos.
Pelo menos no Brasil nós não conhecemos nenhuma pessoa que tenha despertado a kuṇḍalinī completamente de forma
espontânea. Conhecemos sim pessoas com desordens no despertar, o que é muito
comum. A Āyurveda considera muitas
das doenças mentais como desordens no despertar da kuṇḍalinī, mas isso não significa que todas as pessoas que
tenham problemas mentais estejam passando necessariamente pela experiência do
despertar e ascensão da kuṇḍalinī. Nós criamos um grupo no
Yahoo e no Facebook para discutir essas experiências e o processo do kuṇḍalinī-yoga. Todos são bem vindos
para participar.
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