Os Primórdios do Śaivismo da Caxemira
Por Fernando Liguori
[O presente texto é uma adaptação para internet da introdução contida na Apostila de Estudo do curso sobre o Śivasūtra e do capítulo dois da Apostila de Estudo do curso sobre a Spandakārikā, ambos realizados pelo Espaço Kaula.]
Compilados no ínício ou em meados do Séc. IX d.C. na Caxemira, os Aforismos de Śiva e as Estâncias da Vibração apareceram no tempo em que as escrituras do Śaivismo – conhecidas como Āgamas ou Tantras – já formavam um corpo substancial conhecido como literatura sagrada. Este corpo, com suas maiores e menores subdivisões, formavam a base de um largo número de tradições tântricas de orientação Śaiva, algumas bem extensas e refinadas, outras bem pequenas e de menor expressão. Estes textos sagrados eram numerosos e muitos deles de tamanho substancial. Largamente orientados a prática ritualística e menos preocupados com a metafísica, eles traziam inúmeras descrições na maneira em que Śiva, nas Suas mais variadas formas, deveria ser adorado junto a uma miríade de deuses e deusas associados a Ele. Muito espaço era dedicado a apresentação de fórmulas mágico-ritualísticas (mantras) requeridas para execução de ritos de adoração (pūjā) e como os diagramas sagrados (maṇḍalas e yantras), no qual as divindades eram adoradas, deveriam ser pintados, além da descrição de templos e a localização de locais sagrados. Paralelamente, muito se discutia acerca do homem na condição de microcosmo e sua relação com o vasto universo populado por muitos deuses e deusas que circundavam a Consciência Suprema (Śiva) em ordens menores de criação. A influência desta literatura sagrada resultou em um olhar mágico sobre o mundo no qual a essência mais profunda do homem – a natureza mais pura de sua Consciência – convivia com poderosas forças divinas do universo que em que ele habitava.
Embora os Aforismos de Śiva e as Estâncias da Vibração não estivessem diretamente conectados aos Tantras do Śaivismo, eles emergiram fora desta rica cultura tântrica com uma claridade de insight profundo, regendo uma superioridade em sua mensagem que ao mesmo tempo era direta e libertadora na sua brevidade e concisão. Os complexos rituais tântricos deram passagem a prática mais refinada do Yoga, não o Yoga Clássico de Patañjali, que nos ensina como acalmar as flutuações da Consciência, levando-nos ao desapego da Natureza que nos circunda, mas o Yoga que desenvolve o reflexo interior das formas externas do ritual. O círculo sagrado (cakra) – no qual as deidades dos rituais tântricos eram adoradas – passou a ser compreendido como parte do universo cognitivo da Consciência do adepto cuja verdadeira natureza é Śiva, Quem passa a ocupar o lugar central no círculo como o Mestre Divino (cakreśvara) e a Deidade Suprema de adoração. A fórmula sagrada ou encantamento mágico-espiritual (mantra) se converteu na mente do adepto[1] que se expande para fora, como a Consciência Universal de Śiva, para imergir novamente em seu universo interior completamente preenchida com o poder divino [2] do Senhor. Portanto, tudo o que o yogī pensa, diz, sente ou realiza faz parte de sua incessante oração.[3] A deidade na qual o adepto deveria meditar no curso da execução ritualística é agora percebida quando ele realiza que o universo não passa de um jogo de sua própria Consciência.[4] Essa é a iniciação real que o qualifica a realizar os rituais sagrados.[5] A dádiva (dāna) que ele recebe do mestre na ocasião da iniciação é a transmissão do conhecimento de sua Verdadeira Identidade[6] e é este mesmo conhecimento que ele oferece como alimento (anna) aos deuses.[7] O voto assumido pelo discípulo no curso de sua iniciação, é habitar o corpo físico consciente de que é um com Śiva,[8] oferecendo a consciência de seu corpo condicionado como uma oblação no fogo do conhecimento.[9]
Às vezes, os Tantras fazem estes tipos de paralelo, afinal, para o leigo, estes são elementos na tradição que lhe chamam mais a atenção. O que distingue os Aforismos e as Estâncias dos Tantras não é somente o fato destes elementos terem sido isolados e sistematicamente eladorados de uma maneira mais refinada, mas porque foram compreendidos em uma dimensão muito mais profunda, metafisicamente e teológicamente. Isso permitiu uma posterior elaboração no rico e extensivo sistema Śaiva, tanto no contexto metafísico quanto no teológico, no qual profundas considerações sobre a natureza da realidade puderam ser consistentemente representadas como instruções práticas que, quando compreendidas e aplicadas, levavam o adepto diretamente ao insight libertador no qual Śiva – sua Verdadeira Identidade – e toda Realidade se tornam um.
Ao mesmo tempo, contudo, o ritual ou elementos de prática comuns provindos dos Tantras não foram simplesmente deixados de lado e considerados inúteis. Eles não apenas foram interiorizados, mas a fonte de seu poder e eficácia (que nunca é contestada) dirigiu-se para a infinita realidade da Consciência Absoluta que é ao mesmo tempo Śiva, o homem e o universo. Alguns comentadores da Spandakārikā se referiram a eficácia da projeção visualizada dos sons mântricos nas partes do corpo (nyāsa)[10] e como fórmulas ritualísticas têm aplicação prática, tanto no contexto de iniciações de níveis mais elevados a cura por uma picada de escorpião.[11] Eles mantinham que o ritual é essencial, pelo menos aqueles que as escrituras consideravam importantes para serem realizados com regularidade.[12] Entretanto, é impotante mencionar que os ritos e suas fórmulas mágico-espirituais somente são efetivos se forem vitalizados pela vibrante (spanda) energia da Consciência que é inerente a sua natureza mais íntima, a qual é o verdadeiro agente ritual (kartṛ) que atua universalmente como o agente universal (kartṛtā) da Consciência e portanto está contida em cada ser existente.
Aqui, Śiva em Si mesmo não é apenas o agente universal, mas o puro sujeito (upalabdhṛtā) perceptível, o qual é a Consciência pura da mais autêntica Identidade do homem.[13] Ele é assim toda alma individual (jīva), o que, de acordo com o ponto de vista idealístico, é por sua vez todas as coisas, na medida em que o ato de percepção provê a existência do mundo como um objeto da percepção. O mundo, percebido desta maneira, é um com a Consciência que é a alma individual e que, por sua vez, é da natureza de Śiva.[14] O fluxo e refluxo de cada ato cognitivo expande e contrai todas as coisas e assim elas ascendem e caem no campo da Consciência através da expansão e contração da vontade daquele que percebe (didṛkṣā). Esta atividade é a energia oculta da Consciência que a impele dirigir sua atenção para o mundo da objetividade fora de si e que não passa da projeção de sua própria natureza. Esse é o ritmo ou a pulsação da energia de Śiva cuja verdadeira natureza é conhecida como Consciência Universal. No Śaivismo da Caxemira isso é conhecido como Spanda, que significa vibração ou pulsação e é descrita como o movimento sutil (kiñciccalana) da Consciência, distinta de seua contra parte mais grosseira, o movimento físico da ação.
Os comentadores dos Aforismos de Śiva e das Estâncias da Vibração procuraram transmitir essa realização explicando o seu significado mais profundo a partir de pontos de vista que representam em contém em si, de uma maneira ou de outra, todos os componentes do monismo Śaiva da Caxemira. Alguns comentadores se esforçaram em transmitir que Spanda é Śakti, o divino poder de Śiva, o que levou um número de escolares modernos a pensar que a Doutrina da Vibração, conforme ensinada nas Estâncias da Vibração, é de inclinação Śākta, não Śaiva. Ao que parece, eles encontraram suporte nas interpretações que encontravam paralelos entre o corpo do texto e a tradição disseminada pelas escolas Śāktas. Convenientemente, outros comentadores repetitivamente colocaram ênfase na semelhança entre os ensinamentos transmitidos pelas Estâncias e a teologia monista Śaiva contida na Filosofia do Reconhecimento (Pratyabhijñā) conforme elaborada por Somānanda, Utpaladeva e Abhinavagupta entre os Sécs. IX e XI d.C. Mas um dos comentários mais intrigantes das Estâncias da Vibração, conhecido como Spandapradīpikā (Candeia sobre Spanda) nos chama muita atenção. Ele é repleto de referências a fontes tântricas Vaiṣṇavas, o que claramente demonstra uma tentativa de aproximação entre o monismo idealista Vaiṣṇava com sua contraparte Śaiva.[16]
A redação dos Aforismos e das Estâncias junto a seus respectivos comentários se deu no estrito epaço de quase dois mil anos entre os Sécs. IX e XI d.C. As Estâncias da Vibração representam uma escola independente no contexto Śaiva da Caxemira.[17] Ao mesmo tempo, os primórdios do Śaivismo da Caxemira, como distinto de outras formas de Śaivismo conhecido e ainda praticado em diferentes partes da Índia, pode ser conectado ao surgimento do Śivasūtra. Ademais, o Śivasūtra e a Spandakārikā são verdadeiramente as primeiras obras do monismo Śaiva e portanto inauguraram o limiar de um novo mundo cujo escopo discursivo nele contido levou pelo menos dois séculos para ser desenvolvido de forma profunda e refinada nas mãos de Abhinavagupta, quem foi não apenas o maior mestre do Śaivismo da Caxemira, mas também, sem dúvida alguma, um dos pensadores mais brilhantes da Índia. Kallaṭabhaṭṭa, quem escreveu uma Breve Explanação (vṛtti) sobre as Estâncias e possivelmente seja o autor delas, foi um dos primeiros a iniciar este rico desenvolvimento, enquanto Kṣemarāja, discípulo direto de Abhinavagupta e o autor do último comentário sobre as Estâncias, testemunhou este clímax triunfante. O que os comentários fazem, de fato, é refletir este crescimento. Assim, embora nos primórdios da tradição os Aforismos de Śiva e as Estâncias da Vibração aparentassem ser não mais que simples, curtos e elementares textos, a história reivindica sua importância reservando para eles um lugar único no desenvolvimento do Śaivismo da Caxemira.
Notas:
[1] Cf. Ś.Sū., II: 1.
[2] Cf. Sp.Kā., 26-27.
[3] Cf. Ś.Sū., III: 27.
[4] Cf. Sp.Kā., 30-31.
[5] Cf. Sp.Kā., 32.
[6] Cf. Ś.Sū., III: 29.
[7] Cf. Ś.Sū., II: 8.
[8] Cf. Ś.Sū., III: 26.
[9] Cf. Ś.Sū., II: 8.
[10] Cf. os comentários da Estância 31.
[11] Cf. os comentários de Kallaṭabhaṭṭa e Rājānaka Rāma nas Estâncias 26 e 27.
[12] Cf. os comentários da Estância 31.
[13] Cf. Ś.Sū., I: 1.
[15] Cf. Sp.Kā., 28.
[16] Veja Nota sobre a Metodologia de Tradução, Interpretação e Anotações, Os Aforismos de Śiva & as Estâncias da Vibração e Bhāskara & Kṣemarāja: Duas Visões, Uma Verdade.
[17] Veja Nota sobre a Metodologia de Tradução, Interpretação e Anotações.
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