terça-feira, 27 de setembro de 2005

Yoga vs Ego Yoga = Postura vs Pose



Por Fernando Liguori

Um artigo da série Yoga, Espiritualidade & Moralidade

EM 2009 eu comecei a escrever uma série de artigos sobre aquilo que Patañjali definiu como mahāvratam (o grande voto) no aforismo 31 do segundo capítulo de sua magna obra, o Yogasūtra. Iniciamos a jornada com dois artigos sobre brahmacarya, com um terceiro em 2011.1 Na seqüência sobre o grande voto de Patañjali, iniciamos outra série de artigos sobre satya.2 O presente escrito é um texto da série de artigos sobre satya, a veracidade. Aqui, de maneira breve, procuramos nos concentrar na atual forma mentirosa de se praticar o Yoga, mas também reservamos um espaço para a solução do problema.

No artigo anterior, Yoga Postural não é Yoga, é Ego Yoga, postulamos que no Ocidente a prática de āsana foi descaracterizada. A postura, que deveria revelar a nossa natureza interior, tornou-se pose, o que fortifica o ego, o que é, portanto, uma forma hipócrita e fingida de se praticar o Yoga, ou pelo menos suas posturas. Assim, vamos nos concentrar novamente neste tema, a prática das posturas ou poses do Yoga.

Mas o que é uma pose? No contexto do Yoga, pose denota uma demonstração corporal, algo que gostaríamos de mostrar a outras pessoas. Nessa condição, estamos dependendo da avaliação de terceiros para obter sucesso, fortificando assim a estrutura egóica. Portanto, quando praticamos poses de yoga, estamos cultivando a artificialidade, o fingimento e a simulação.

E o que é uma postura? Também no contexto do Yoga, postura denota a atitude de se realizar uma ação com menor esforço possível. A ação da postura está conectada a sua execução e nada mais. Não existe o desejo de impressionar terceiros ou conquistar status. Portanto, postura é uma atitude, um comportamento que, segundo Patañjali, é estável, cujo esforço é relaxado. Estável, aqui, denota imobilidade. Mas essa imobilidade não é inatividade. A ação que está por trás da imobilidade é o que podemos chamar de Yoga.

Portanto, o foco exclusivo na aptidão física e na aparência de muitos pretensos professores de Yoga, que deliberadamente ignoram a ancestralidade espiritual desta tradição, pode ser classificado como um tipo de fingimento e, por essa razão, uma mentira. O que existe é uma hipocrisia deliberada no movimento contemporâneo do Yoga. Assim como em todas as áreas de nossa sociedade atual, o que circula no meio do Yoga enlatado contemporâneo é um relativismo moral que, como mencionei nos escritos anteriores desta série, é baseado em meias verdades e inviável como postura filosófica. O que vejo no movimento do Yoga atual é aquilo que chamei de conveniência profissional, i.e. para muitos professores de Yoga, a verdade (satya) é o que é conveniente. A palavra sânscrita satya (veracidade), tem relação com Sat, que podemos traduzir como Realidade ou Ser. O Yoga ensina que a condição da veracidade produz a verdade e esta, como uma virtude intrínseca ao Ser, é uma conduta a ser cultivada em todos os níveis da prática yogī.

O Yoga também ensina que o vício é um hábito que surge de uma mente não disciplinada. Através do discernimento (viveka), podemos cultivar uma mente virtuosa, que tenda de modo natural para transcendência do ego, o cultivo da veracidade. A veracidade purifica a mente e uma mente purificada está livre de programas mentais, repousando de forma espontânea na Realidade ou Verdade.

Como cultivamos, sob um ponto de vista espiritual, uma prática saudável de āsanas? A resposta é aquilo que chamamos de āsana-pratyāhāra.

Āsana Pratyāhāra

Āsana ou a postura do Yoga tem sido tema de estudo e pesquisas por muitos mestres, tradições e pesquisadores ocidentais, tanto no campo filosófico quanto no fisiológico.

Em um artigo anterior, nós postulamos que de acordo com os primeiros śāstras, o objetivo do āsana é revelar a verdadeira natureza de cada um de nós. A prática de āsanas deve conduzir a um estado de interiorização que permita a cada um de nós sondar os recessos mais profundos de nossa mente. Essa prática é conhecida como āsana-pratyāhāra, pois sua execução retira a mente das distrações e apegos do exterior, conectando-a com a postura. Isso aumenta a consciência e o poder de foco da mente.

De acordo com os ensinamentos dos antigos ṛṣīs e munis, a prática de āsana opera com as multi-camadas da mente, aspectos profundos de nosso ser. Em termos simples, nós podemos dizer que as posturas do Yoga exercem influência em níveis físico, mental e espiritual; podemos dizer também grosseiro, sutil e causal ou desperto, sonhando e dormindo. Mas a tradição do Yoga chama estas três dimensões de annamaya-kośa, manomaya-kośa e prāamaya-kośa. A prática de āsana-pratyāhāra atua diretamente no manomaya-kośa, o que nos permite conhecer o movimento, natureza, qualidade, intensidade, resistência, força e fraqueza da mente.

A experiência inicial de āsana-pratyāhāra é um profundo relaxamento experimentado durante sua execução e a tranqüilidade e paz de espírito que se desenvolve lentamente com a prática. Os āsanas começam a trabalhar todas as tensões armazenadas no corpo e na consciência, liberando-as gradativamente. Com o progresso na prática ocorre o desvelar dos condicionamentos de nossa mente e a partir daí nos tornamos mais conscientes dos padrões condicionados que regem nossa vida, podendo trabalhá-los de forma progressiva e terapêutica. Este autoconhecimento permite que nós possamos sair do modo de reação e começar a trabalhar a consciência em outros níveis para despertar as potencialidades internas de nosso Ser.

A ênfase primordial é a consciência interna. Os āsanas, na maioria das vezes, são feitos exclusivamente com os olhos fechados, o que sensibiliza e direciona a consciência para o interior. Portanto, não é um estilo de Yoga físico ou postural. O foco da prática está na experiência interior ao invés do desempenho exterior. É um aprofundamento da consciência realizado durante a prática de āsanas, mantendo a consciência interior e total atenção naquilo que se está sentindo a partir de dentro. Este é o conceito de āsana-pratyāhāra. Sua prática interioriza a experiência externa dos sentidos, o que impede a dispersão mental e aumenta o poder da mente em se concentrar e manter o foco no objeto requerido. Aqui começa o dhāraā.



Anotações

1. Os artigos são: Yoga, Espiritualidade & Moralidade (2009), Tantra, Neotantrismo & Brahmacarya (2009) como um adendo ao primeiro e Ghastha Brahmacarya & o Despertar da Śakti (2011). Todos estes artigos estão disponíveis no blog do autor. Em 2012 um quarto artigo na seqüência sobre brahmacarya será publicado: Ghastha Brahmacarya: A Sexualidade Espiritual do Yogī.

2. Os artigos são: Veracidade Yogī vs Conveniência Profissional (2010) e Yoga Postural não é Yoga, é Ego Yoga (2011). O primeiro artigo não foi ainda publicado, o autor acredita que muitas das idéias e alegações podem, de certa maneira, causar transtornos inoportunos com relação a outros profissionais da área. O artigo é uma crítica a posição estritamente física que alguns profissionais conduzem o Yoga, ignorando deliberadamente a ancoragem espiritual desta antiga disciplina. Por essa razão, convenientemente chamamos esse tipo de “yoga” de ego-yoga ou o yoga da mentira, o yoga da hipocrisia e do fingimento. O segundo artigo, bem menos provocante, está à disposição no blog do autor. O presente texto, Yoga vs Ego Yoga = Postura vs Pose é o terceiro artigo na série sobre satya, a veracidade.

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