segunda-feira, 28 de setembro de 2009

Kriyāyoga: Babaji vs Patañjali

Por Fernando Liguori

A MAIOR parte deste texto serviu como resposta a um tópico criado na comunidade Yoga no Brasil no Orkut com o título Pātañjala Yoga. O texto que abriu o tópico é de minha autoria, postado originalmente em minha página no Facebook:

Existe uma concepção equivocada de que o Yoga ensinado por Patañjali em seu Yogasūtra receba a denominação de rājayoga ou aṣṭāṅgayoga. Contudo, Patañjali não se referiu a nenhum destes termos para definir a sua doutrina. No capítulo dois (sādhanapāda), primeiro sūtra ele diz: Tapaḥ svādhyāyaīśvarapraṇidhānāni kriyāyogaḥ [pratica intensa, auto-análise e entrega ao senhor constituem o kriyāyoga]. No primeiro capítulo (samādhipāda), décimo segundo sūtra, temos: Abhyāsavairāgyābhyaṃ tannirodhaḥ [pela disciplina e pelo desapego [emerge] a cessação [da identificação com as flutuações da consciência]. Portanto, Patañjali prescreve que a prática do Yoga deve ser executada através da disciplina e do desapego. Contudo, como são poucas as pessoas dotadas de disciplina (abhyāsa) e desapego (vairāgyā), Patañjali prescreveu práticas preliminares que vão do segundo capítulo ao terceiro (II: 28 a III: 8). Estas práticas, conhecidas como aṣṭāṅgayoga, foram introduzidas no texto a partir de fontes desconhecidas, muito provavelmente anteriores até mesmo a Patañjali. Assim, ao contrário do que muitos estudiosos alegam, o Yoga de Patañjali, conforme exposto no Yogasūtra, denomina-se kriyāyoga, não aṣṭāṅga ou rājayoga, nem mesmo Yoga Clássico.

Desta minha pequena descrição sobre o Yoga de Patañjali surgiram algumas contra-respostas. Nada que pudesse acrescentar o texto. No entanto, foi citado em uma delas um possível envolvimento entre Patañjali e o adepto himalaico conhecido como Babaji, muito conhecido através da obra de Paramahansa Yogananda, Autobiografia de um Yogi. Como o assunto chamou-me a atenção, produzi o texto que se segue:

Nos dias de hoje, inúmeras são as pessoas que praticam algum “tipo” de Yoga. Contudo, na maioria dos casos, o que elas praticam pouco se assemelha a verdadeira tradição do Yoga, tal qual praticado nos últimos cinco mil anos na Índia. Portanto, existe hoje, mais do que nunca, uma necessidade de se encontrar vozes sinceras que apóiem o Yoga autentico, o Yoga que se preocupa com o grande ideal de transcendência espiritual, de profunda transformação espiritual e libertação.

Com relação ao tópico aqui apresentado, foi citado uma possível relação entre Patañjali e o kriyāyoga conforme transmitido pelo adepto himalaico conhecido pelo nome de Babaji, cuja tradição foi transmitida por inúmeras linhagens. É dito que Babaji tenha nascido por volta de 30 de novembro de 203 d.C. Ao que parece, ele fora discípulo de Pokanāthar (Boganathar em tâmil) que, por sua vez, presidia o templo de Karttikeyagrāma (Katirgama em tâmil), localizado no ponto mais estremo ao sul do Sri Lanka. Na tradição do kriyāyoga é dito que Babaji foi enviado por Pokanāthar ao grande adepto Agastyar, sob cuja orientação ele alcançou a liberação e a imortalidade, se apresentando, de tempos em tempos, em corpo físico, a inúmeros adeptos e lhes fornecendo iniciação.

Outro grande adepto desta tradição fora Tirumūlar, autor do famoso Tirumandiram e influente siddha do Śaivismo Tâmil. Nesta obra, Tirumūlar refere-se a si mesmo como discípulo de Naṇdi que, aparentemente, também ensinou um homem chamado Patañjali.

Entre os estudiosos, o Yogasūtra é situado entre 200 a.C e 200 d.C. Os estudantes que identificam Patañjali com o famoso gramático que recebe o mesmo nome, geralmente optam pela primeira data. No entanto, é crescente o número de estudiosos que optam pela última data, o que leva em consideração o fato de o Yogasūtra refletir a linguagem e o conceitualismo universal do Budismo Mahāyāṇa. Mas a tradição reconhece inúmeros outros indivíduos que recebem a alcunha de Patañjali, desde uma autoridade Sāṁkhya a criadores de sūtras que revelam caminhos ritualísticos. Mas nada se sabe sobre eles e o fato de Tirumūlar citar Patañjali como um amigo-discípulo confunde mais ainda os fatos históricos.

Estudiosos costumam situar Tirumūlar entre os Sécs. I e VII d.C. Mas as idéias e práticas apresentadas no Tirumandiram demonstram o estágio de desenvolvimento do Tantra hindu, o que sugere uma data entre os Sécs. VI e X d.C. Se isso for correto, o Patañjali ao qual se refere Tirumūlar como amigo-discípulo não seria o compilador do Yogasūtra.

Embora os ensinamentos de Patañjali tenham sido conhecidos como o “Yoga do Caminho Óctuplo” (aṣṭāṅgayoga), ele mesmo nomeou sua doutrina como o “Yoga da Ação Meritória” (kriyāyoga), pāda II: 1. Os sūtras que tratam precisamente do aṣṭāṅgayoga parecem ter sido citados por Patañjali ou adicionados ao texto subseqüentemente. Não há explicação real e satisfatória para o fato de Patañjali ter utilizado o termo kriyāyoga para sua doutrina. Mas se considerarmos que Patañjali foi de fato amigo-discípulo de Tirumūlar, temos uma ligação direta com a herança tântrica do sul da Índia, que entende o termo kriyāyoga como “atividade ou ação ritualística”.

Assim, temos uma oportunidade de tentar conectar as tradições e traçar similaridades como foco de estudo.

Podemos encontrar uma luz no fim do túnel quando compararmos o Yogasūtra com o Tirumandiram. Devido ao seu modo sucinto de expressão e o foco no essencial, o Yogasūtra necessita de estudo meticuloso. Sua abordagem é racional, sistemática e filosófica, delineando de forma peremptória a trajetória yogī de uma perspectiva psicológica. Mas o Tirumandiram, ao contrário, é extático, poético e repleto de sabedoria yogī. Ambos os trabalhos estão entre os mais antigos dentre aqueles que versam principalmente sobre Yoga. Os dois compartilham muitas similaridades filosóficas. Lidam extensivamente sobre os siddhis ou poderes miraculosos. Ambos descrevem práticas de Yoga, deixando muitas lacunas em aberto, o que é comum na tradição dos Siddhas do Śaivismo Tâmil, que deixavam os detalhes mais importantes a serem transmitidos durante as iniciações pessoais. Ademais, segundo a tradição do kriyāyoga de Babaji, ambos os autores figuram entre os 18 Siddhas Tâmil. Portanto, o kriyāyoga de Babaji, segundo seus adeptos, é uma materialização prática do sistema filosófico conhecido como Śaiva Siddhānta que, por sua vez, é uma síntese dos ensinamentos da tradição dos 18 Siddhas Tâmil, da qual ambos, Patañjali e Tirumūlar, foram membros famosos.

Segundo essa linha de pensamento, Patañjali e Tirumūlar foram amigos e tiveram o mesmo guru, conhecido pela alcunha de Naṇdi. Ao que tudo indica, ambos estiveram sob sua orientação no sul da Índia. É muito difícil dizer com precisão quando os dois trabalhos foram escritos. Estudiosos mais modernos costumam datar o Yogasūtra entre os Sécs. II e IV d.C. e o Tirumandiram entre os Sécs. IV e V d.C. Mas Tirumūlar afirma que foram necessários três mil anos para que ele completasse sua obra. Nela, ele celebra a visita de Patañjali em Chidambaram, onde residia. Os seguidores da tradição de Babaji celebram ambos os autores como notórios siddhas que compartilhavam muitos pontos de vista.

A maior pedra de tropeço no estudo das duas obras é que uma foi escrita em sânscrito (o Yogasūtra), a outra em tâmil (o Tirumandiram). Nenhuma das duas foram traduzidas para o idioma da outra e como a maioria dos eruditos tende a trabalhar apenas em um destes idiomas, o estudo comparado delas ficou comprometido até o início do Séc. XX quando, em 1911, o Tirumandiram foi traduzido para o inglês. Assim, com estas obras em inglês, hoje é possível fazer comparações interessantes.

Bom estudo!

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