Denominações Tântricas
Por Fernando Liguori
Na Índia existem inúmeras tradições, escolas e seitas tântricas. Algumas já se extinguiram; outras sobrevivem até os dias de hoje. Nós podemos classificá-las sob três denominações gerais: 1. o tantrismo Śaiva-Śākta; 2. o tantrismo Budista; e 3. o tantrismo Vaiṣṇava. Todas as escolas tântricas podem estar sob uma ou outra denominação. Por exemplo, a tradição Nātha de Gorakṣanātha e a tradição Aghora de Kīnārāma são alocadas sob a denominação do tantrismo Śaiva-Śākta. Similarmente, o culto Sahajiyā que floresceu na região de Bengala, originado da tradição Budista Sahajayāna e tendo posteriormente tomado a forma Vaiṣṇava, pode ser classificado como tantrismo Vaiṣṇava.
A tradição Bāul da Índia Oriental parece ser a combinação do Budismo tântrico, do tantrismo Vaiṣṇava e do Sufismo Islâmico. O termo bengali bāul ou bātul ou ainda bāvalā, no dialeto híndi, significa louco ou doido. É dito que a prática do Yoga tântrico esotérico leva a uma intoxicação divina ou a loucura do êxtase espiritual. Os yogī-s desta tradição andam e cantam como mendicantes.
A tradição Kāpālika que floresceu na Idade Média e que agora está virtualmente extinta em muitos de seus lugares ou assentamentos sagrados, é uma derivação do Budismo tântrico com elementos do tantrismo Śaiva-Śākta. O tantrismo Tibetano deve sua lealdade a tradição Budista Yogācāra Vijñānavāda. É dito que Padmasambhava, um brâmane de Nalanda que se converteu ao Budismo, viajou ao Tibet e Nepal propagando o Budismo tântrico na região dos Himalaias. O tantrismo Tibetano é essencialmente Budista.
Os cultos do tantrismo Śaiva-Śākta são divididos em duas linhagens: a Girnārī e a Newārī. Girnār, uma montanha na província de Gujarat, é a morada do Senhor Dattātreya. O Senhor Dattātreya é considerado o mestre original do tantrismo Śaiva-Śākta. Paraśurāma e Durvāsā, os mestres legendários do Śaivismo, estão na mesma linhagem. Os adeptos da tradição Aghora devem sua lealdade a Dattātreya, o Senhor de Girnār; eles são, portanto, chamados de Girnārīs. Os adeptos da tradição Nātha são, sobretudo, Newārī. Newār é uma região no Himalaia aos arredores do Nepal. Os gurus da tradição Nātha vivem nesta área. Mesmo hoje Gorakṣanātha é altamente estimado no Nepal. Portanto, seus adeptos, naquela região, são chamados de Newārīs.
Alguns acreditam que todas as formas de tantrismo originaram-se da tradição Budista Vajrayāna no período medieval. É verdade que a tradição Vajrayāna exerceu grande influência sobre outras tradições, mas não é correto dizer que ela é a fonte do tantrismo. De fato, o Tantra é uma corrente espiritual muito mais antiga, tendo existido muito antes de Buda. O que deve ficar bem claro é que a tradição tântrica é tão flexível e tão liberal que pode adotar qualquer forma, terminologia ou símbolos para sua expressão. Ela pode assumir uma forma Budista assim como qualquer outra. Quando o Tantra Budista sofreu influência da tradição Vaiṣṇava no período em que apareceu na região de Bengala, rapidamente se transformou em uma versão tântrica Vaiṣṇava. Assim, o Tantra é uma tradição consistente que apenas adotou diferentes formas e terminologias.
Embora haja uma espécie de disputa entre as denominações Śaiva e Śākta, eu não as considero como tradições separadas. Da maneira em que as duas palavras – Śaivismo e Śāktismo – são utilizadas na literatura tântrica, nós somos levados a pensar que elas denotam duas tradições distintas, filosoficamente separadas uma da outra. Metafisicamente, Śaivismo e Śāktismo vêm da mesma raiz. A posição ontológica das duas escolas é uma e a mesma. Śiva é tanto Śiva quanto Śakti em unidade. De fato, a Realidade Última, chamada de Śiva ou Śakti, é Consciência (citi ou samvit). Esta Consciência é concebida como uma força dinâmica e esse dinamismo da Consciência é chamado de Śakti. Assim, a Realidade é uma, seja chamada de Śiva ou Śakti. Para usar uma analogia, uma corrente de água é vista como corrente de água; ela pode ser vista como correnteza, i.e. o fluir da água. Similarmente, a Consciência pode ser vista como Śiva (jñāna) e também pode ser vista como uma força dinâmica, Śakti (kriyā). Śiva e Śakti são aspectos de uma mesma Realidade.
A única diferença entre o Śaivismo e o Śāktismo está na ênfase. Assim como uma corrente de água pode ser vista por uma pessoa como água e por outra pessoa como correnteza, o Śaiva vê a Realidade como Śiva, enquanto que o Śākta vê a Realidade como Śakti. Ainda, há uma ligeira diferença na forma da adoração. Os Śāktas adoram o Absoluto na forma da Mãe personificada como Durgā, Kālī etc. Os Śaivas adoram o Absoluto na forma de Śiva Śaṁkara cuja morada é a montanha Kailāsa, junto a sua consorte, Pārvatī. Mas estes são apenas símbolos. Os símbolos podem ser diferentes, mas isso não significa que representem diferença filosófica, pois denotam a mesma Realidade. A diferença na ênfase não representa diferença filosófica, pois a posição geral continua a mesma. O Śaiva não pode dizer que a Realidade não é Śakti. Da mesma maneira, o Śākta não pode dizer que a Realidade não é Śiva.
A posição histórica do Budismo Tântrico é um pouco desconcertante, pois ele parece não se enquadrar nas principais características do Budismo. A essência dos ensinamentos de Buda é a renúncia (tyāga) no sentido mais literal do termo, i.e. a renúncia das coisas do mundo. Alguém pode se perguntar como um Budista bhikkhu, que deveria ser um renunciante declarado, poderia seguir um caminho que faça utilização de indulgências, até mesmo a atividade sexual, que é uma prática que vai contra toda doutrina daqueles que vestem o manto ocre como símbolo da renúncia. O Śaiva e o Vaiṣṇava não encontram problemas em aceitar a indulgência, pois eles vêem o mundo como um jogo (līlā) do Senhor, e portanto eles não precisam se tornar renunciantes, mas o mesmo não pode ser dito acerca dos Budistas.
Uma possível explicação da emergência do tantrismo na tradição Budista é que o Tantra nasceu – na Idade Média – como uma reação a filosofia da auto-abnegação, servindo para contrabalancear o negativismo extremo desta filosofia. Contudo, há outra explicação. A origem do Budismo tântrico pode ser traçada desde os ensinamentos originais de Buda; é possível que Buda tenha ensinado suas idéias tântricas para uma classe superior de estudantes. Para o público geral ou para pessoas que se encontram em níveis inferiores de desenvolvimento espiritual, o ensinamento da renúncia é relevante, pois estas pessoas não conseguiam compreender os princípios elevados do Tantra, que prevê renúncia em meio a fruição. A filosofia da renúncia ordinária é apenas a primeira parte do sādhanā espiritual. A segunda parte é o Tantra, que sintetiza a renúncia e o gozo. O tantrismo não é, portanto, uma aberração incongruente na tradição Budista, mas a culminação do dinamismo interno do pensamento Budista.
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