quarta-feira, 28 de outubro de 2009

Conscientização Ambiental pela pratica do Yoga Verde


Por Fernando Liguori

ATUALMENTE existe um movimento yogī que está ressurgindo com uma nova maneira de enxergar o mundo. Quando digo ressurgindo quero dizer que, em meio à catastrófica interpretação ocidental acerca do Yoga, este movimento vem despertando no coração de muitos yogīs sinceros uma nova maneira de se relacionar com o meio que os cercam. Essa nova maneira de enxergar o mundo não é nova em realidade, mas tão antiga quanto o próprio Yoga e, assim como essa tradição, foi deturpada no percurso dos tempos.

Quando percebemos a unidade, interconectividade e interdependência entre todos os seres sensientes, surge do âmago de nosso ser uma responsabilidade mais profunda diante da vida. Assim, nossa relação com o meio ambiente (plantas, animais, ar, rios, seres humanos etc.) torna-se, gradualmente, mais consciênte.

Este novo movimento yogī, denominado Yoga Verde,1 acretita que é um fato inegável que nós, praticantes de Yoga, temos uma responsabilidade pessoal pela preservação e materialização de um futuro sadio para as próximas gerações. Uma das premissas centrais para que isso possa ser efetivado se segue: todos os seres vivos têm, em princpípio, o mesmo direito à vida. Esta é uma das idéias centrais desta nova propósta de visão da realidade cujas noções são igualdade e fraternidade aplicadas a todas as formas de vida vistas como portadores do mesmo valor intrínseco.

Quais são as implicações deste igualitarismo radical? Se todos os seres vivos têm, em princípio, igual direito à vida, esta verdade inclui tanto o yogī que faz suas práticas no alto de uma montanha como a grama que é machucada por seus pés, enquanto realiza āsana-s. Haveria aí uma incoerência?

Bem, eu venho ferindo continuamente milhares de indivíduos da pequena grama (Stenotaphrum secundatum) dos jardins da Universidade Federal de Juiz de Fora (UFJF) quando ministro, junto a minha esposa, aulas de Yoga Verde; venho ferindo também o cerrado rupestre (Kielmeyera rubriflora) de Ibitipoca em minhas práticas e caminhadas ecológicas. Contudo, não justifico meu comportamento adotando a tese de que estes seres vivos têm menos direito à vida, ou menor valor intrínseco – como seres vivos – do que os seres humanos. É simplesmente impossível viver em certas regiões sem pisar em algumas plantas, assim como é impossível praticar āsana-s na grama sem machucá-la.

Outra questão é: como podemos nos alimentar sem ferir o princípio do igualitarismo postulado acima?

O filósofo e escritor Allan Watts, um exímio estudante da religião comparada, afirmava ser vegetariano porque as vacas gritam mais alto que as cenouras. Com esta alegação ele queria dizer que os vegetais devorados por nós também são seres vivos. A lei da igualdade universal entre todos os seres indica a necessidade de causar o menor dano possível, quando o dano for necessário. Prabhat Rainjan Sarkar, também conhecido como Śrī Śrī Ānandamūrti, fundador da organização socioespiritual Ānanda Mārga, enfatiza que na medida do possível, os alimentos devem ser selecionados dentre aqueles seres que têm consciência muito pouco desenvolvida, isto é, se os vegetais estiverem disponíveis, os animais não devem ser abatidos. [...] antes de se abater um animal [...] deve-se considerar se é possível viver uma vida saudável sem sacrificar tal animal.2 As plantas não são capazes de sentir a mesma dor dos animais. O arroz, feijão, trigo e verduras, entre muitas plantas, possuem um determinado ciclo vital que já está praticamente encerrado no momento de serem colhidos pelo homem. Sem falar no mel e principalmente nas frutas, alimento puramente sattvíco tão fundamental a estabilidade e equilíbrio do yogī.3

O corpo humano é cosntituído de inúmeras células vivas. Estas células crescem e se desenvolvem com o auxílio de entidades vivas similares. A natureza das células vivas será formada de acordo com o tipo de alimento ingerido. Em última análise, todos estes aspectos afetarão a mente. Se as células do corpo humano se desenvolvem a partir de alimentos podres ou da carne de animais nas quais predominam as tendências tamásicas e rajásicas mais inferiores, é natural que a mente seja saturada com estas tendências. O hábito de se comer (leia-se consumir) qualquer coisa disponível, sem fazer o devido discernimento digno a um praticante de Yoga, não pode ser apoiado de modo algum. O Yoga Verde preza pela conduta sattívica, pois nela estão assentados os princípios fundamentais da prática yogī. É por meio desta conduta que o yogī desenvolve o discernimento (viveka), que ativa a mente superior (buddhi) ou a faculdade da sabedoria. Buddhi vem da palavra budh (despertar ou estar desperto) e é a mesma raiz a partir da qual deriva o partícipio passado Buddha, i.e. desperto. Portanto, o discenimento, a lucidez, são fatores primordiais na transformação da consciência; por este motivo devemos cultivá-lo em todos os momentos de nossa existência.

Georg e Brenda Feuerstein são os principais articuladores do Yoga Verde, um movimento que hoje está presente em muitos países. Eles vêm promovendo na comunidade yogī uma série de seminários e workshops através do Green Yoga Initiative [Iniciativa Yoga Verde]. É um trabalho de conscientização ambiental e ecológica. Convencidos de que a destruição dos sistemas naturais – que tornam a vida possível – é uma das principais fontes de anciedade nos tempos atuais, eles criaram dinâmicas de grupo, práticas espirituais, meditações etc., para que os praticantes de Yoga pudessem ouvir em si mesmos o som da Terra chorando. Estas práticas de Yoga Verde incluem diálogos com rios, montanhas, nuvens, plantas, animais e todas as criaturas sensientes.

Uma das propóstas fundamentais do Yoga Verde é derrubar o aparente muro de insensibilidade que acomete os praticantes de Yoga. Eu chamo isso de apatia yogī diante da ameaça ecológica. Muitos pensam que os praticantes de Yoga não mudam sua postura ética e filosófica perante o meio ambiente porque não tiveram acesso à informação. Mas isso não é real; a apatia não vem da ignorância ou indiferença. A maior parte de nós está profundamente consciente da destruição do planeta, mas não somos capazes de enfrentar este fato, não reagimos porque temos medo de experimentar o desespero que esta informação nos apresenta. Portanto, temos a nossa frente um dilema: como transcender um nível de denúncia que, embora sério e real, desperta um medo paralizante, imobiliza o cidadão ou, às vezes, estimula um fatalismo passivo e até cômodo? E isso porque verdadeiros tabus foram erguidos para bloquear a expressão desta angústia.

Essa impossibilidade de sentir – muitas vezes traduzida em uma prática de Yoga estéril e amorfa – que acomete o praticante de Yoga tem conseqüências negativas, empobrecendo sua percepção da realidade. Isso diminui a capacidade de processar e responder às informações que recebe sobre o problema planetário ou qualquer outra questão vital; pior ainda, aquela intuição ou insight tão necessária a transcendência do complexo ego-personalidade torna-se completamente aniquilada.

Em seu Yogasūtra (II: 15) Patañjali afirma que tudo é sofrimento [duḥkha] para aquele que discerne. A palavra “discernir” (vivekin), como acima demonstrado, nos mostra que devemos ser dotados de um grau de sensibilidade mental, ou discernimento, para reconhecer que todas as circunstâncias incluem um elemento de sofrimento, pois seu resultado, em nós, é um estado de anseio, passada a experiência. Em sua magnífica experiência mística, Śāmbhavī Lorain Chopra nos relembra que a menos que nos aprofundemos em nosso sofrimento, não podemos nos livrar do aprisionamento da vida.4 Sem a dor intensa de quem vive pessoalmente a destruição da vida no planeta, a rotina cômoda não se repetiria. Contudo, o desespero, sem a vivência do poder transcendente da pratica do Yoga, seria tão paralisador quanto a indiferença.

O pó de rochas produzido pelas geleiras de muito tempo atrás demorou 25.000 anos para transformar-se em solo fértil; mas nos Estados Unidos metade desse solo vivo já foi destruído, e isso em apenas 150 anos. Contudo, lançar dados estatísticos como este na mente dos praticantes de Yoga tem muito pouca utilidade, mas promover práticas espirituais como a vocalização mântrica e o cântico de kīrtans ao redor do forgo sagrado, danças sagradas como bhanjan, tāndava e kaoshiki, a realizações de meditações prāṇāyāmas e āsanas etc., na natureza, pode trazer a compreensão necessária para os níveis mais profundos da consciência, criando no âmago de cada praticante, uma forte conexão com a Mãe Terra.

As experiências em grupo na prática de Yoga Verde vêm demonstrando que às informações sobre a destruição ambiental no planeta correspondem a fortes sentimentos de tristeza, desespero e raiva. Mas que estes sentimentos podem ser confrontados, vividos e canalizados criativamente. Em vez de sentirem-se esmagados pela angústia, os praticantes de Yoga Verde sentem muito mais energia, contentamento e criatividade. Pela prática, o desbloqueio de tais sentimentos possibilita experimentar a interconexão fundamental entre todos os seres sensientes. Desta maneira, abrem-se as portas para um novo modo de vida. O Yoga Verde vê toda a vida como um único fluxo, cuja subdivisão em entidades individuais é ilusória. Portanto, sua prática procura ampliar cada vez mais a autopercepção humana, de modo que ela inclua o ambiente natural e outras formas de vida.

Em 1855 o cacique Seattle, em resposta ao presidente norte-americano Franklin Pierce que pretendia comprar (leia-se apropriar) as terra indígenas da tribo Duwamish, do Estado de Washington, disse: Os cumes rochosos, os sulcos úmidos nas campinas, o calor do corpo do potro, e o homem – todos pertemcem à mesma família. [...] Esta água brilhante que corre nos rios e regatos não é apenas água, mas sim o sangue de nossos ancestrais. [...] O murmúrio das águas é a voz de meus ancestrais.5 Identificando-se pessoalmente com os rios, e ouvindo o murmúrio das águas como a voz de seus antepassados, o chefe indígena rompia simultaneamente com as noções de espaço-tempo da civilização ocidental materialista. Ver o espaço-tempo como realidades amplas e não-compartimentadas é um dos aspectos centrais do Yoga Verde. Só com uma visão fragmentada da realidade é que poderíamos aceitar a lógica da sociedade atual como algo natural.

Portanto, um dos exercícios de meditação do Yoga Verde consiste em ver-se como parte dos grandes ciclos naturais intercomunicados da água, do solo e do ar. Nosso sangue é água, bebida direta ou indiretamente dos rios, e a ele voltará. A água está presente na lágrima, no muco, no suor e na linfa humana. Está lá, mas não para sempre. Ela passa pelo corpo humano, pelo rio, pelo oceano, pela nuvem, pelo solo, pelo lençol subterrâneo e pelo regato. O solo está presente no corpo físico, porque dele vem todo alimento e a substância das nossas células. Ingerimos, absorvemos e excretamos a terra. Somos feitos dela. O ar, matéria-prima do alento vital, sem o qual sobrevivemos, é o meio pelo qual se dá a troca mais imediata com o meio. É ele quem traz, para nós, o alimento prânico essencial.

Que este opúsculo de meditação possa ajudar muitos praticantes a se conscientizarem da atual situação em que nos encontramos e que eles possam ter forças para agir. Peço a presença do espírito de Gaia no coração de cada um, orando sempre para que o sopro da vida continue a habitar nossa casa planetária.


Fernando Liguori
Diretor do Movimento Yogī Ambiental

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Anotações

1. O termo Yoga Verde foi cunhado por Georg e Brenda Feuerstein pela primeira vez no livro Green Yoga, publicado pelo Traditional Yoga Studies (TYS), 2007.

2. Prabhat Rainjan Sarkar, Um Guia para Conduta Humana, p. 18. Ānanda Mārga Publicações, 2001. Esse pequeno livreto fala acerca daquilo que Patañjali chamou de mahāvratam (o grande voto) em seu Yogasūtra (II: 31): Quando estes refreamentos não dependem das condições de tempo, lugar e condição de nascimento, e se estendem a todas as coisas terrestres, são denominados “o grande voto”. Trata-se dos cinco refreamentos conhecidos como yama-s aos praticantes de Yoga. Contudo, o pensamento de Sarkar sobre os yamas, principalmente no primeiro e mais importante, ahi (não ferir), não parece ser tão lúcido, ao passo que reflete, de certa maneira, a postura revolucionária de seus ensinamentos e portanto da organização por ele fundada que, na década de 70, pegou em armas para lutar contra os comunistas. Ele enfatiza, no mesmo texto (p. 17) que o significado de ahi se limita a assegurar-se de que seus pensamentos ou ações não causem dor ou injustiça a alguem, e que a manutenção da vida implica a destruição de certas formas de vida inferiores (p. 18). Ao defender a idéia de que a atitude em prol da não-violência somente para não admitir a própria fraqueza frente ao opositor deve servir a um propósito político, porém não garante a santidade da retidão (p. 17), explicando sobre o dilema vivido por Arjuna na batalha de Kuruketra, nega a verdadeira essência da estabilidade do dharma no planeta assim como do svadharma de cada ser vivo. Este é um assunto extenso em demasia para ser tratado aqui e sua extensão fugiria ao escopo desta apresentação.

3. Como acima mencionado, o fator predominante na natureza é a interdependência. É um fato que a existência humana implica, de qualquer modo, uma restrição a outras formas de vida. Mas essa é uma acomodação recíproca entre as espécies que produz benefícios mútuos e é condição inevitável a vida física.

4. Śāmbhavī Lorain Chopra, Yoginī, Revelando a Deusa Interior. Log On Editora Multimídia, 2008.

5. Esta carta foi escrita, em 1855, por um índio norte-americano, de nome Seattle, cacique da tribo Duwamish, para o então Presidente dos Estados Unidos, Franklin Pierce. A carta pode ser visualizada na web no seguinte endereço:

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