quinta-feira, 17 de abril de 2008

Introdução a Ciência do Haṭha-Yoga



Por Fernando Liguori

[Este artigo foi previamente publicado em 2008. Em 2010, ao redefinirmos os objetivos deste blog, ele foi tirado do ar. Agora nós o apresentamos de maneira revisada.]

Palavras iniciais

NO OCIDENTE, o ramo mais destacado e conhecido da tradição do Yoga é o haṭha-yoga, o Yoga da Força.[1] Este método preconiza o caminho da realização espiritual pela disciplina rigorosa. A palavra haṭha é composta de ha, o Sol (sūrya), e ṭha, a Lua (candra).[2] Assim, conforme a literatura da tradição, o haṭha-yoga tem como objetivo equilibrar o fluxo das energias solares e lunares no organismo humano. Inclui em seus estágios mais elevados a concentração, a meditação e o êxtase. Busca a libertação por meio de um corpo imune a doenças e livre das limitações que caracterizam a encarnação corpórea. Para atingir este objetivo, a prática do haṭha-yoga remove o embotamento psíquico e as impurezas corporais, mentais e emocionais. Quando isso ocorre, a lua (candra) interna do yogī derrama seu néctar da imortalidade (amṛta), tornando o corpo vigoroso e dotado de siddhis. Esta ciência nasceu no seio da tradição tântrica por volta dos Sécs. IX & XI d.C.,[3] um período de grande revolução religiosa, pois os adeptos do Tantra apresentavam uma visão revolucionária e dinâmica do universo a uma Índia apegada e condicionada a um arcaico ritualismo bramânico. A nova visão tântrica do corpo reascendeu a chama e novamente o ímpeto à busca pela consecução espiritual. Para o tântrico, o corpo não mais é a causa de pecado ou perdição, mas o veículo para transcendência e a realização da natureza divina no homem.[4] Como o resultado de um grande movimento revolucionário pela busca e aperfeiçoamento do veículo físico pelo ideal do corpo diamantino, nascia então a ciência do haṭha-yoga, um conjunto de disciplinas rigorosas capazes de levar o sādhaka ao estado de unmanī avasthā.[5]

Empreender a escrita de um texto sobre a ciência e a história do haṭha-yoga não é uma tarefa fácil. Para tal, um estudo sistemático e regular dos ensinamentos deixados pelos proto-haṭha-yogīs – os nātha-siddhas Matsyendranātha e Gorakṣanātha –, da tradição tântrica e os princípios filosóficos do Śaivismo da Caxemira e suas escolas é mais do que necessário, merecendo um exame bastante cuidadoso. Com efeito, todas as escolas de pensamento favoráveis à posição filosófica dos alquimistas e à ciência da alquimia, tal como usualmente cultivadas na Índia Antiga, teriam que ser estudadas.

O escopo deste pequeno opúsculo de meditação não é, contudo, tão amplo. Trata-se apenas da iniciativa em empreender um registro acerca das práticas que envolvem a ciência do haṭha-yoga e seu objetivo; assim como sua história e literatura associada à doutrina dos nātha-siddhas.

Alguns aspectos da Filosofia do Haṭha-Yoga

Conforme a tradição nos ensina, a filosofia do haṭha-yoga fora elaborada por uma corrente de adeptos chamada nātha-siddha. Brahmānanda em seu comentário da Haṭhapradīpikā (I: 4) cita que os mistérios do haṭha-vidyā são apenas conhecidos aos mestres Matsyendranātha e Gorakṣanātha. Ele adiciona ainda os nomes de Jālaṃdharanātha, Bhartṛharinātha e Gopī Cand Nātha. O nome destes mestres sempre estiveram conectados aos nāthas.[6] Como citado acima, os proto-haṭha-yogīs foram os dois primeiros mestres da tradição, Matsyendranātha e Gorakṣanātha e algumas das práticas do haṭha-yoga estão associadas aos nomes de alguns mestres da escola dos nāthas. Encontramos p.e. matsyendrāsana em homenagem a Matsyendranātha; padmāsana em homenagem a Padmanātha; o jāladhara bandha em homenagem Jālaṃdharanātha; gorakṣāsana em homenagem a Gorakṣanātha e muitas outras.

Ao empreender um estudo sobre o haṭha-vidyā e seu florescimento é necessário ater-se cuidadosamente a afirmação da Haṭhapradīpikā I: 1 – शरी आदि नाथाय नमो|अस्तु तस्मै येनोपदिष्ह्टा हठ योग विद्या विभ्राजते परोन्नत राज योगम आरोढुमिछ्छोरधिरोहिणीव (Reverencio Śrī Ādinātha, que ensinou a sabedoria do haṭha-yoga como o primeiro degrau para o cume do rāja-yoga). Conforme a tradição, todo vidyā (ciência) emana do Senhor Supremo. Como usual na cultura indiana, a corrente nātha reivindica uma origem divina. Brahmānanda,[7] em seu comentário, denominado Jyotsnā, sobre a Haṭhapradīpikā (I: 4), afirma que Ādinātha, ou Śiva, foi o primeiro de todos os nāthas e que, de acordo com uma tradição preservada na literatura nātha, a Ordem foi fundada pelo próprio Śiva.

Alguns estudiosos enfatizam que a corrente espiritual dos nātha-siddhas era conhecida pelo nome de Nāthapanṭhī. Contudo, na literatura esta é conhecida como siddha-mārga ou avadhūta-mārga. E como os ācāryas[8] desta escola enfatizam a prática do haṭha-yoga como um recurso na direção da realização da perfeição, a corrente também passou a ser designada de yoga-mārga.

Um outro movimento espiritual conectado ao Śaivismo e conhecido como Kāpālika[9] se assemelha em alguns aspectos ao culto dos nāthas, mas, no geral, transita num caminho um tanto distinto. Embora sua origem seja atribuída a Ādinātha, seus principais ensinos e práticas têm um caráter próprio e particular. O Tantrasābara fornece uma lista de vinte e quatro kāpālikas – doze mestres e doze discípulos. Alguns desses nomes, sobretudo os dos discípulos, são os nomes dos mais conhecidos nātha-siddhas.

Apesar de a origem espiritual da tradição nātha vir, supostamente, de uma fonte divina, sua fundação histórica é relacionada à Matsyendranātha.[10]

Duas são as indagações a serem emitidas: primeiro, o que é o haṭha-yoga e qual o seu objetivo? Essa é uma indagação central em todos os textos desta tradição que se encontram a disposição, sejam eles antigos ou modernos e a resposta é obtida sob várias perspectivas diferentes. Contudo, seja qual for à forma com que encontremos a resposta, a concepção central permanece a mesma. Como visto acima, a palavra haṭha é constituída de duas palavras, ha (o sol) e ṭha (a lua). Esta definição fora dada pelo próprio codificador do haṭha-vidyā em seu Siddha-Siddhānta-Paddhati. Respectivamente, o sol e a lua representam prāṇa e apāna, e sua união dá-se pela prática do prāṇāyāma. Pode ser dito que o haṭha-yoga e seu objetivo, sua essência, é a conquista do vāyu e, portanto, do despertar da kuṇḍalinī. Em outras palavras, o objetivo do haṭha-yoga é interceptar a corrente oscilante da energia vital dentro do próprio corpo. Normalmente, a energia vital circula pelas nāḍīs (principalmente em idā e pingalā) mantendo as atividades corporais e produzindo todos os fenômenos da consciência ordinária, esteja ela acordada ou não. O haṭha-yogī procura concentrar esta força corporal inata impedindo que ela se dissipe. Ele se esforça a direcioná-la ao longo da suṣumṇā-nāḍī. Isto desperta o poder latente da kuṇḍalinī-śakti no mulādhārā-cakra, conduzindo-a até ao sahāsrarā-cakra. Este assento coronário é a morada de Śiva, a Suprema Consciência Transcendente. A união do princípio feminino na forma de kuṇḍalinī-śakti com Śiva, o princípio masculino, produz o estado de nirvikalpa samādhi.

Segundo, qual era a necessidade de se elaborar o haṭha-yoga quando o Pātañjala Yoga estava em uma condição de franco florescimento? Nós podemos dizer, quando nos baseamos nas escrituras da tradição, que o haṭha-yoga leva ao estado de rāja-yoga (i.e. samādhi), tal como admitido pelos próprios nātha-siddhas. Patañjali codificou sua doutrina baseado-se nas escolas de Yoga que antecederam seu Yogasūtra. Existem indícios ainda de que ele também fora inspirado pelo Budismo e pelo Jainismo. O movimento haṭha pode ser considerado uma contra-reforma necessária para o estabelecimento da prática psico-espiritual do Yoga codificado por Patañjali. Em outras palavras, através do trabalho de Gorakṣanātha, a tradição de Patañjali recebeu em seu escopo a influência do Tantra. Essa influência eclodiu na ciência do haṭha-yoga.

Como mencionado acima, a essência da prática do haṭha-yoga repousa na conquista do vāyu. O bindu,[11] vāyu,[12] e manas[13] estão intimamente relacionados entre si: ao restringir qualquer um deles os outros dois podem ser facilmente colocados sob controle. Na restrição do bindu, tal como executada pela prática do brahmacarya bem sucedido, os haṭha-yogīs dirigem o controle do vāyu como uma preliminar, ou antes, como um meio para a realização da quietude mental que é o objetivo final de todos os esforços. Mas para facilitar essa restrição (ou retenção) de vāyu – na prática do prāṇāyāma – eles recomendam o emprego de algumas outras práticas: āsana, mudrā, bandha e nāda-ānusandhāna.[14]

A contínua prática dos āsanas mantém a leveza e a graciosidade do corpo, assim como sua firmeza e estabilidade. Quando o sādhaka obtém estas qualidades elas invariavelmente agem sob os aspectos mais sutis da mente. As mudrās, por sua vez, agem de maneira a acessar camadas profundas do subconsciente liberando saṃskāras a serem queimados pelas ascensão da kuṇḍalinī. Nāda-ānusadhāna age diretamente sobre a mente destruindo suas turbulências e inquietações oscilantes. A mente tornando-se inativa por meio destas técnicas, o vāyu é completamente absorvido por brahmarandhra,[15] elevando o praticante a glória resplandecente da bem-aventurança (samādhi).

Contudo, a prática efetiva do nāda (nāda-ānusadhāna) somente dá indícios de seus resultados quando o sādhaka percebe audivelmente uma corrente de fluxo contínuo transpassando seu coração (i.e. o anāhata-cakra). Este som ou vibração muito sutil somente é ouvido quando o vāyu adentra a suṣumṇā-nāḍī; entretanto não é só isso. Todos os canais energéticos (nāḍīs) do corpo sutil devem estar purificados de suas impurezas. Quando isso ocorre à vibração imanente do anāhata-cakra torna-se completamente audível ao praticante. Esta purificação requer o constante prática de āsana, prāṇāyāma, mudrā, ṣaṭ-karmāṇi e demais técnicas oferecidas pelo haṭha-vidyā. Todo o processo se dá em conjunto e não em partes. Até mesmo a perfeição e o alinhamento na técnica dos āsanas requer certo grau de purificação, pois as impurezas operam como empecilhos a estabilidade e ao conforto das posições. Os mestres do passado admitem que é possível ascender a kuṇḍalinī quando os āsanas estão completamente dominados, pois este domínio advém através de um processo contínuo que se dá em conjunto com outras técnicas. Assim, estes processos mecânicos e psicofísicos do haṭha-yoga liberam e colocam em operação a Serpente de Fogo (kuṇḍalinī) que jaz adormecida como matéria, clarificando o caminho de fruição deste Poder (śakti). Este caminho no homem comum está bloqueado. O haṭha-vidyā o desobstrui.

O haṭha-yoga conforme preconizado pelos nātha-siddhas dá muita ênfase no aspecto físico da disciplina e embora isso possa parecer sem sentido para alguns – geralmente àqueles que denigrem a imagem desta prática como apenas uma técnica corporal – possui um profundo significado quando olhamos de dentro ou por dentro do sistema. O primeiro passo consiste na tomada de consciência do corpo, seus músculos, nervos e demais aparatos vitais. É o estabelecimento da consciência corporal através do reconhecimento gradativo da matéria em sua forma mais densa como experienciada sensorialmente no estado de vigília. Isto leva o sādhaka, inevitavelmente, ao reconhecimento das formas mais tênues que compõem seus corpos sutis. A consciência da natureza individual como uma dimensão emaranhada na matéria grosseira é idêntica à Consciência Absoluta. As técnicas do haṭha-yoga removem cuidadosamente as limitações provenientes da percepção mais grosseira da consciência individual. Assim, a idéia defendida pelos haṭha-yogīs da linhagem tântrica dos nātha-siddhas é de que o caminho mais seguro e portanto mais efetivo e rápido para transcender as limitações da incorporação física e grosseira é ascender o vāyu de um plano ao outro, até que a Consciência Cósmica no sahasrāra-cakra seja penetrada pelo Espírito-Matéria (kuṇḍalinī-śakti).

Os nātha-siddhas alegam que o ācārya, por si só, é capaz de evocar a Śakti adormecida no discípulo. Ele assim o faz inspirado, impulsionado e mobilizado sua Śakti ativa a qual é Shiva em ação. Esta tradição ainda acrescenta que um homem que obteve conhecimento, mas não siddhi (poderes paranormais), deverá se dirigir à influência santificada de um siddha e por sua graça, receber a iniciação nos mistérios do haṭha-yoga. Isso é absolutamente necessário para a realização de mokṣa.[16]

A importância do haṭha-yoga é insistentemente enfatizada porque sem esse instrumento a conquista do corpo físico não pode ser alcançada. Ninguém, além do verdadeiro yogī, pode elevar-se acima das limitações impostas pelo corpo.[17] Enquanto essas limitações persistirem – o que implica não somente nas paixões, mas também na dependência dos elementos da natureza – a estabilidade da mente e a conseqüente iluminação não serão possíveis. O organismo físico é afetado pela ação dos cinco elementos, é afligido pelo calor e frio, e é sujeito à decadência e à morte. No entanto, os yogīs preconizam que essa tendência inexorável de corrupção do corpo pode ser superada. E isso só pode ser alcançado por intermédio do haṭha-yoga.

A purificação física é primordial na prática do haṭha-yoga conforme estabelecido pela doutrina dos nātha-siddhas. Portanto, é plausível considerá-la em um contexto mais amplo. O corpo humano, com seus defeitos e corrupções, tal como ordinariamente conhecido por nós, é descrito pelos yogīs como imaturo (apākka). É possuído de todas as características da matéria física. O contato com esse corpo deve – se não trabalhado com a ciência do haṭha-vidyā – inevitavelmente resultar na experiência da dor e na dissimulação dos poderes inerentes ao Ser. Para um homem comum, portanto, torna-se praticamente impossível subjugar os sentidos e as paixões mesmo com as mais austeras auto-restrições. Os efeitos dos elementos da natureza fazem-no sentir, apesar de todos os seus esforços, fortes distúrbios mentais. Esse homem é um escravo das circunstâncias. Ele é incapaz de remover essas perturbações que, para um corpo físico denso, são incidentais. O corpo, portanto, requer ser purificado, refinado e amadurecido (pākka) por meio do haṭha-yoga.

A doutrina da imortalidade física, corolário imediato da purificação física, encontra um tratamento especial no sistema dos nātha-siddhas. Se os defeitos entrelaçados no organismo denso podem de alguma maneira ser eliminados, o corpo irá naturalmente tornar-se imune das doenças, da decadência e da morte e de todas as enfermidades e calamidades anexas à matéria física. Será livre do peso, capaz de mover-se pelo espaço com a velocidade do pensamento, assumir quaisquer formas e multiplicar-se em vários corpos. Atravessará uma superfície sólida e penetrará uma pedra. Não se afogará na água, não queimará no fogo, não será afetado pelo vento e será invisível no puro espaço. Será capaz de se expandir e de se contrair e será dotado de todos os poderes resultantes da conquista dos cinco elementos (bhūtajāyā). Diz-se que um corpo como esse é raro mesmo entre os deuses.

Pode-se enfatizar que a possessão de um corpo imortal desse tipo tem sido a aspiração de todos os místicos em todas as eras e lugares. Na literatura associada ao haṭha-yoga e ao Tantra encontramos freqüentes referências a esse corpo. Diz-se que como um metal ordinário pode ser transmutado em ouro (lohāvedha), o mesmo pode ocorrer com um corpo que se espiritualiza (dehāvedha).

O haṭha-yoga torna o corpo imortal, puro e livre. Mas não vai alem de suas fronteiras: levar a cessação da mente e o equilíbrio final adquirido através do samādhi. O samādhi ascende o sādhaka a um estado em que manas e vāyu continuam a permanecer estabilizados no ājñācakra, iluminado pela radiância branca da Luz Universal do sahasrāra-cakra. Esse estado dura um longo tempo – períodos incontáveis de tempo, talvez – durante o qual o upāsanā (prática de concentração, dhāraṇā) continuado tende a tornar a mente passível de submergir gradualmente no infinito. Fica evidente, portanto, que o verdadeiro estado de samādhi vem somente após o término dos processos alquímicos do haṭha-yoga. Ele culmina na Iluminação Final da Sabedoria Perfeita, onde somente um organismo plenamente purificado, tal como o de um siddha-dehā, pode sustentar. Um corpo natural e corruptível é, portanto, totalmente desajustado para receber a Sabedoria, sendo negativo, incapaz de praticar a meditação contínua que precede aquele estado.

Palavras finais

O Hatha Yoga[18] é uma parte da soteriologia indiana,[19] i.e. um sistema técnico que propõe o alcance da liberação, libertação ou salvação a seus adeptos. Existem inúmeros termos sânscritos que descrevem este objetivo, dentre eles os mais comuns são mokṣa e kaivalya. O termo em português que mais utilizo para traduzir este objetivo do haṭha-yoga – e do Yoga em um sentido geral – é auto-realização, o que é uma abreviação do conceito de realização da verdadeira natureza do Ser. O Ser (com letra maiúscula) sendo paramātman (o mais elevado ou supremo Ser) que, de acordo com a filosofia do Yoga, é idêntico a Brahman (o Absoluto).

O objetivo principal da prática hatha-yogī é estabelecer a retenção e união (yoga) de dois pólos prânicos, a força sutil que permeia todo complexo corpo-mente: prāṇa e apāna. O praticante fecha vários orifícios através dos quais o prāṇa pode escapar. Isso ele faz por meio de contrações musculares conhecidas como selos (mudrā) ou fechos (bandha) empenhando-se em fazer prāṇa e apāna se movimentarem em direções contrárias, causando sua união dentro do canal central conhecido como suṣumṇā-nāḍī. O calor (tapas) ou fogo (agni) que resulta desta poderosa união desperta uma força mais refinada e potente conhecida como kuṇḍalinī-śakti, caracterizada como a Deusa (Devī) e representada como uma serpente enrolada. Esta Serpente de Poder sobe através da suṣumṇā-nāḍī, perfurando e abrindo os centros de poder (cakras) unindo-se com Brahman (personificado como Śiva) em sua morada final, o sahasrāra-padma (conhecido como lótus de mil pétalas) localizado acima da coroa da cabeça.

Em um nível popular, a palavra haṭha é tida como um adjetivo que significa forte, vigoroso, potente, violento, impetuoso, energético, firme, persistente, agressivo, corajoso, valente ou esforçado. Portanto, uma interpretação literal para haṭha-yoga seria Yoga da Força ou Yoga Vigoroso. Essa pode ser uma tradução correta do termo na medida em que essa disciplina utiliza técnicas vigorosas, mas tal interpretação provê apenas um entendimento parcial, senão insignificante.

Para dar uma explicação mais profunda, os hatha-yogīs oferecem um folclore etimológico que consiste em dividir a palavra haṭha em dois bījamantras compostos, como mencionado acima. Ha refere-se ao sol (sūrya) e ṭha a lua (candra); daí surge à tradução união do sol com a lua ou harmonia entre os aspectos solares e lunares para o termo haṭha-yoga. Sol (sūrya), lua (candra ou soma) com fogo (agni), são potentes símbolos da mitologia indiana, principalmente na tradição do haṭha-yoga. No haṭha-vidyā, estes símbolos recebem várias associações e correspondências, as mais importantes sendo:

Sol – (a) o prāṇa que ascende através de pingalā-nāḍī (a direita de suṣumṇā), (b) pingalā-nāḍī, e (c) a energia sutil feminina calafetada conhecida como rajas (lit. espaço ou vazio) que deve ser unificada ou integrada com a energia masculina resfriada conhecida como bindu.

Lua – (a) apāna – o vāyu – descendente através de īdā-nāḍī (a esquerda de suṣumṇā), (b) īdā-nāḍī, e (c) bindu (lit. ponto ou semente), a essência sutil da energia masculina que se manifesta em um nível físico mais grosseiro como sêmen (śukra ou śukla).

Fogo – (a) a força transmutante da combustão interna que leva a união de prāṇa e apāna em suṣumṇā-nāḍī, (b) suṣumṇā-nāḍī, e (c) kuṇḍalinī-śakti que é despertada de seu sono pelos métodos do haṭha-yoga.


Notas

[1] Também conhecido como haṭha-vidyā, i.e. a ciência do haṭha. Literalmente, haṭha significa força, violência, esforço físico extremo. Esta ciência é conhecida como o Yoga da Força por prescrever uma rigorosa disciplina em busca da realização espiritual, em busca da união com o Supremo. Originada entre os Sécs. IX & XI d.C. aos auspícios de Gorakṣanātha – membro da tradição nātha sampradāya onde o cultivo do corpo possui posição central – a tradição revela que o haṭha-yoga surgiu como uma prática da Ordem dos Gorakṣakānphaṭa que unia elementos do Tantra a práticas ascéticas. Fundada pelo próprio Gorakṣanātha, a prática espiritual desta Ordem abrangia um vasto conjunto de disciplinas voltadas para a realização do Ser por meio do aperfeiçoamento do corpo. Portanto, o haṭha-yoga representa um aspecto importante do movimento pan-indiano que se deu através do Tantra. Ancorado no culto siddha tântrico, o haṭha-yoga promove a libertação espiritual (mokṣa) através do cultivo do corpo (kāya-sādhana) recebendo forte influência do Śaivismo e do Śaktismo na forma da doutrina da ascensão da kuṇḍalinī.

[2] Veja Siddha-Siddhānta-Paddhati, um escrito atribuído a Gorakṣanātha. Nesta obra o haṭha-yoga é discutido de maneira bem elaborada. Fora através de uma abordagem voltada para o cultivo do corpo que uma maior profusão de invenções na prática do haṭha fora criada através do tempo. Esta visão positiva do corpo exemplifica o espírito integral do tantrismo em sua melhor forma. Como uma genuína escola tântrica, o haṭha-yoga se propõe a ser uma prática de vida cujos ensinamentos estão voltados para as difíceis condições da presente era de escuridão (kali-yuga).

[3] O haṭha-yoga originou-se a partir do movimento nātha-siddha, uma linhagem espiritual proveniente do Śaivismo Tântrico da Caxemira. Veja A Tradição Tântrica dos Nātha-Siddhas & a Culminação do Haṭha-Yoga.

[4] Tornar o corpo um instrumento e parte do desenvolvimento espiritual ao invés de rejeitá-lo e esquecê-lo fora uma conquista e uma inovação dos yogīs tântricos que propuseram uma mudança religiosa e cultural na perspectiva dominante da Índia medieval que dava as costas à manifestação corpórea. Desta forma, os haṭha-yogīs tântricos mesmo dedicados ao sādhana não renunciavam a vida em sociedade e ao mundo real, pois para eles o nirvāṇa era equivalente ao saṇsāra. Em outras palavras, no Tantra, e portanto no haṭha-yoga, a iluminação é uma questão que envolve o corpo inteiro. Essa abordagem é resumida na noção tântrica de que a libertação (mukti) e o prazer (bhukti) são perfeitamente compatíveis.

[5] Literalmente, estado de exaltação. Esta é a última etapa do caminho do Yoga segundo a Haṭhapradīpikā. Seu equivalente, no Pātañjala Yoga, é o nirvikalpa samādhi.

[6] Após a iniciação, o discípulo, invariavelmente, recebe um nome que termina com a partícula nātha.

[7] O período em que viveu Brahmānanda não é conhecido. Mas como ele se refere ao Nārāyāna Tirṭha, em seu comentário (I: 4), deve ter vivido no início do Séc. XVIII d.C. ou mesmo após.

[8] Preceptor iniciático, mestre ou guru. Literalmente, aquele que ensina pelo exemplo.

[9] Corrente espiritual também denominada soma-siddhānta proveniente do Śaivismo do sul da Índia e remonta aos primeiros séculos da era cristã. O nome Kāpālika significa o portador do crânio e se refere à prática de se carregar um crânio humano (kapāla) que serviria para o consumo de bebidas enteógenas consagradas. Outro componente que caracteriza um Kāpālika é a baqueta unida ao crânio (khaṭvānga) que eles carregam junto ao crânio humano. Esta Ordem recebeu fortes influências da Tradição Krama e Kaula do Śaivismo tântrico (i.e. Trika) da Caxemira, uma vez que seus aderentes praticam o Ritual dos Cinco Ms (makāras) onde há o consumo de carne (māmsa) e vinho (mādya) associado a cópulas sexuais (maithuna). Outras observâncias eram permanecer em locais de crematório ou em lugares distantes da população e cobrir todo o corpo com cinzas retiradas das piras funerárias. Os membros desta corrente espiritual eram taxados como impuros por aderirem ao seu sādhana práticas malignas. Seu acesso aos Vedas não era permitido por conta de suas práticas. Assim, eles adotavam o caminho dos Āgamas (escrituras reveladas por Śiva). Como qualquer tradição śaiva, eles acreditam que Śiva é a Última Realidade Transcendente. Aspiram o mokṣa (libertação do saṃsāra) como último objetivo (puruṣārtha) da vida humana. Contudo, seu conceito de mokṣa não era negativo como duḥkhānta (fim da miséria), mas um conceito extremamente positivo como implicado em seu epíteto, soma-siddhānta. O termo soma (as + umā) significa Śiva em íntimo contato sexual com Umā. E o grande êxtase (mahā-sukha) é alcançado no ápice da felicidade sexual. Assim, aqueles que acreditam neste soma-siddhānta são chamados de soma-siddhāntins. Não restam escrituras desta escola e seus membros preferem permanecer no anonimato. Como um grau secreto dentro de uma outra escola tântrica, a Ānanda Mārga, os ensinamentos desta tradição continuaram preservados, de forma ligeiramente corrompida.

[10] A história deste mestre sempre esteve tão intimamente entrelaçada com as lendas que é muito difícil chegar a uma conclusão adequada. É certo que ele fora um grande yogī e que seus feitos eram dignos de um santo. Em uma outra oportunidade nos caberá empreender um estudo sobre sua vida.

[11] Essência do corpo físico na forma de viryā, sūkra ou fluido seminal.

[12] As correntes vitais intra-orgânicas.

[13] Mente ou princípio do pensamento.

[14] Literalmente: cultivo do som interior. Prática também conhecida como nādaupāsana, i.e. veneração através do som. Segundo a Haṭhapradīpikā (IV: 66), esta é a única prática para se atingir (laya) o som interior (nāda). É uma prática de quatro estágios (anasthā).

[15] Literalmente: Orifício de Brahmā. Ponto sobre o qual o yogī exerce saṃyama no centro do cérebro ou tálamo. É a extremidade superior da suṣumṇā-nāḍī no sahāsrarā-cakra.

[16] As limitações são os produtos das tensões causadas pelo Impulso Criativo do Supremo Senhor na Matéria. A alma pura, que é um aspecto do Absoluto e, na verdade, consubstancial com ele, permanece contida no estágio mundano no interior de duas camadas: manas (pensamento) e bhūtas (espaço, ar, fogo, água e terra), representando dois aspectos da matéria sutil. A palavra manas é utilizada aqui em um sentido amplo, incluindo buddhi (intelecto superior), ahaṃkāra (o ego ou sentido de individuação), etc., conforme descrito nos tattvas de manifestação do Sāṃkhya. Os sentidos desenvolvidos posteriormente são somente variações funcionais de manas. A palavra bhūta representa aqui, a matéria bruta em um estado de relativo equilíbrio. Esta sustenta em si o denominado tanmātra (partículas prânicas, núcleos energéticos infinitesimais que determinam e qualificam a realidade), i.e. śabda (som), sparśa (toque), rūpa (forma ou cor), rasa (sabor) e gandha (odor) que não são ainda distinguíveis enquanto tal. Cada um dos cinco tanmātras têm seu próprio centro; ponto em torno do qual é capaz de se expandir ou contrair. A alma, em seu curso descendente ou de partida assume, como necessidade vital, essas camadas da matéria sutil. Embora sua pureza inata vá se diluindo no decorrer do percurso descendente, a Alma ainda retém uma auto-consciência suficiente e os poderes conseqüentes. O total esquecimento toma lugar somente quando ela emerge para o interior de um outro mundo; o mundo da matéria densa, resultado de uma combinação – por meio de um processo chamado panchicarana – de finas e radiantes partículas lançadas para fora dos centros tanmātricos. O movimento descendente da alma para a matéria sutil acontece, por assim dizer, em linha reta. Mas o nascimento dentro do mundo externo é produto de um movimento oblíquo no vāyu. Assim que a Consciência se encontra encapsulada na matéria densa ou sensível, manas se desenvolve dentro de sentidos que começam a operar, cada um deles, em sua própria linha de referência, linha esta correspondente a cada um dos aspectos desta matéria. É por essa razão que os sentidos não podem apreender nada além da matéria densa. Contudo, manas, com a abstração dos sentidos, é capaz de possibilitar e garantir a elevação na direção do conhecimento supersensível. E quanto maior a abstração, mais apurada a qualidade desse conhecimento. A abstração de manas dos sentidos se dá pela concentração e conseqüente purificação através das práticas do haṭha-yoga. O chamado divyachaksu (clarividência obtida através do desenvolvimento completo do ājñā-cakra), o olho celestial ou o terceiro olho de Śiva, nada mais é do que essa mente concentrada e purificada.

[17] Como diz a Haṭhapradīpikā (I: 9), इत्यादयो महासिद्धा हठ योग परभावतः खण्डयित्वा काल दण्डं बरह्माण्डे विछरन्ति ते (Assim, estes grandes siddhas que deram origem ao haṭha-yoga, quebraram o bastão de kāla e ainda vagam neste mundo).

[18] Haṭha-yoga deveria ser fortemente pronunciado como hut-huh yo-guh. Em sânscrito, o ponto embaixo do na palavra haṭha indica que a letra deve ser pronunciada com a ponta da língua virada para trás tocando o palato duro.

[19] Soteriologia vem da palavra grega soteria (salvação), sendo referida como o estudo da (ou os meios para se obter) salvação. No contexto indiano, salvação deve ser compreendida como auto-realização, não como uma vida-além-da-morte no céu.

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