Xamanismo vs Tantra
Om Náth Uttara Kaula Sampradáya!
[Nota: o presente texto são extratos de uma pesquisa realizada por volta de 2004 enquanto estudava as similaridades entre a tradição Uttara Kaula e os movimentos xamânicos da Índia aborígene.]
Os xamãs surgiram nos primórdios da estrutura mental da consciência e ajudaram a fazê-la predominante. Sua tecnologia extática psicoespiritual é o produto da estrutura mental da consciência em seu alvorecer.
O xamanismo é a arte sagrada de mudar o próprio estado de consciência a fim de penetrar em outros domínios da realidade, nos quais habitam os espíritos. A palavra shaman ou xamã é de origem siberiana (Tungúsia) e denota ‘aquele que tem experiência em viajar pelos mundos dos espíritos’. Ao concentrar-se no som de um tambor, de um maracá ou de outro instrumento de percussão, ou então pela ingestão de substâncias psicotrópicas (como o cogumelo amanita muscaria), os xamãs mudam radicalmente o seu campo de percepção para que possam se comunicar com o mundo dos espíritos. Nisso, não são movidos pela curiosidade vã; antes, buscam obter poderes e conhecimentos essenciais para o bem-estar psíquico e corpóreo da comunidade a qual pertencem.
De acordo com algumas autoridades, o xamanismo é de origem africana. Outros vêem o xamanismo como uma tradição de âmbito mundial que surgiu independentemente em diversas culturas. Pessoalmente, inclino-me a aceitar a primeira opinião, que associa o xamanismo especificamente ao pano de fundo cultural da África e da Ásia Central.
O xamanismo siberiano sofreu, na Ásia Central, as mesmas discriminações que sofreram os adoradores da deusa no Egito e África. Aqui novamente ocorre o núcleo de uma renovação espiritual que atingiu a Índia. O tantra contém elementos do xamanismo siberiano. A transição do xamanismo ao tantra aconteceu na época em que surgiram no Oriente as primeiras cidades-estado e os xamãs passaram a ser perseguidos e mortos pelos representantes da religião oficial. Para não serem encontrados, eles tiveram de parar de bater seus tambores e, obrigados pela situação, elaboraram métodos silenciosos de alteração da consciência. Foi assim que surgiu a tradição tântrica.
Em geral, os xamãs ficam estimulados durante as viagens e, às vezes, dançam ou ficam extremamente agitados. No samádhi, a calma chega a ser tão profunda que muitos processos mentais param de se desenrolar por algum tempo.
O enfraquecimento da tradição xamânica determinou a ascensão das cidades-estado e o concomitante colapso das comunidades tribais às quais os xamãs serviam. Para bem compreender esse colapso, podemos encará-lo como sinal de uma mudança de consciência que intensificou e individualizou mais a autopercepção do homem. Tudo isso está associado ao surgimento da estrutura de consciência mental.
O xamã, quase sempre um homem, é um tecnólogo sagrado privilegiado que trabalha em prol da sua comunidade. Essa função é partilhada pelo sacerdote tântrico que cumpre os seus sacrifícios e demais rituais para o bem dos outros, quer sejam os espíritos dos seus ancestrais, quer a sua família imediata, quer toda a comunidade tântrica.
A hipótese que faz derivar o tantra de um xamanismo proibido pelo Estado é problemática, mas não há dúvida de que muitos aspectos e temas centrais do xamanismo se encontram também no tantra. Dentre os elementos que constituem o xamanismo e lhe são peculiares, temos de considerar estes como os mais importantes: (1) uma iniciação que compreende o desmembramento, a morte e a ressurreição simbólicas do candidato, e que implica, entre outras coisas, uma descida dele aos infernos e sua posterior ascensão aos céus; (2) a capacidade que o xamã tem de fazer viagens extáticas na qualidade de médico e “psiconauta” (ele sai em busca da alma do doente, roubada pelos demônios, captura-a e devolve-a ao corpo; conduz a alma do morto a Amenta, etc.); (3) o “domínio do fogo” (o xamã encosta no ferro quente, anda sobre brasas, etc., sem se queimar); (4) a capacidade do xamã de assumir a forma de diversos animais (voa como os pássaros, etc.) e de ficar invisível.
O tantra é uma tradição iniciática. É governado pela idéia da progressiva transcendência (“desmembramento”) da personalidade egóica humana. Encontramos ensinamentos tântricos que expõem o seu processo como um “desmantelamento” gradual da consciência ordinária. Isso corresponde ao desmembramento associado a “fórmula da corda” xamânica, uma hipnose coletiva; o xamã, levando na boca uma faca afiada, sobe pela corda atrás de um menino até ambos sumirem de vista. Depois de algum tempo, os membros cortados do menino caem lá de cima. O drama termina quando o menino é ressuscitado pelo xamã. Uma fotografia tirada durante o processo só revela o xamã sentado no chão, sozinho e talvez com um sorriso astuto nos lábios.
A introversão extática e a ascensão mística do tântrico equivalem ao vôo extático do xamã, e a função de ensinar do tântrico corresponde à função xamânica de guiar as almas. Além disso, muitos poderes xamânicos são reconhecidos pelo tantra, que os chama de siddhis: entre eles conta-se o poder de invisibilidade, que também é atribuído aos xamãs. Por fim, o domínio que o xamã tem sobre o fogo — uma proeza exterior — tem o seu paralelo no domínio do tântrico sobre o “fogo interior”, especialmente sobre o calor psicofisiológico gerado quando da ascensão da força vital no Kundaliní Yoga.
Também uma das técnicas mais conhecidas do Yoga — o sentar-se de pernas cruzadas em alguma das diversas posturas yogis (ásana) — tem a sua prefiguração xamânica. No livro Where the Spirits Ride the Wind, a antropóloga norte-americana Felicitas Goodman examinou diversas posturas xamânicas que são usadas para provocar estados de êxtase ou viagens astrais. Cada postura tem um efeito específico sobre a mente.
Se os xamãs demonstram o seu domínio sobre o fogo pegando brasas ardentes nas mãos, como os sacerdotes Kahuna da Polinésia, os tântricos destacam-se na arte do “auto-aquecimento” disciplinando-se a ponto de fazer correr suor de todos os poros. Há uma antiga prática xamânica que consiste em ficar sentado no meio de quatro fogueiras em pleno verão, com o sol escaldante brilhando lá em cima. Eu pratiquei essa antiquíssima técnica por um longo período. Quer através da prolongada retenção da respiração, quer através da transformação do impulso sexual em energia vital (ojas), os tântricos buscam do mesmo modo canalizar as tendências naturais do corpo-mente e criar assim uma pressão interior que se traduz em calor fisiológico. Eles se sentem como se estivessem consumindo-se em chamas. Então quando a experiência chega ao seu ponto máximo, ocorre uma radical mudança de estado e todo o ser deles fica iluminado. Eles descobrem que são essa luz, a qual não tem fonte, mas é ela mesma a fonte de todas as coisas.
O estado de iluminação é para o tântrico o que a viagem mágica para outros mundos é para o xamã. Ambas as experiências se diferenciam radicalmente da realidade e da consciência convencional. Ambas têm um profundo efeito transformador. No entanto, o tântrico, que viaja para dentro, descobre o quão inúteis são, no fim, todas as viagens, pois percebe que não há viagem que possa aproximá-lo ou afastá-lo da própria Realidade eterna e onipresente que é a meta da sua odisséia espiritual.
O xamã vive no ambiente dos mundos sutis da existência, os quais procura dominar. A marca distintiva do êxtase xamânico é a experiência do vôo da alma, ou da ‘viagem’, ou do ‘sair do corpo’. Em outras palavras, quando estão em êxtase, os xamãs sentem que o seu ser inteiro está voando pelo espaço e viajando, quer para outros mundos, quer para rincões longínquos deste mundo. Seu poder serve para efetuar mudanças no mundo material mediante a alteração das condições dos mundos sutis. A finalidade última do tântrico, porém, é a de ir além dos níveis sutis da existência explorados pelo xamã e realizar o Ser transcendente, transdimensional e não-qualificado, que o tântrico sabe ser a sua identidade mais profunda. Assim, ao passo que o xamã é um médico ou taumaturgo, o tântrico é antes de mais nada um “transcendente”. Mas, na subida espiritual que o conduz à Realidade Suprema, o tântrico tende também a obter muitos conhecimentos acerca dos mundos sutis (súkshmaloka). Isso explica o porquê de muitos tântricos terem demonstrado capacidades extraordinárias e terem sido considerados como taumaturgos e magos poderosíssimos pelos indianos.
Om Namah Shivaya!
Fernando Liguori
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