terça-feira, 26 de fevereiro de 2008

Nāda-Ānusandhāna



Cultivando o Som Interior

Por Fernando Liguori

[A prática do haha-yoga, em sua forma clássica, opera fundamentalmente através do prāa, visando canalizar e conter esta força vital, progressivamente aumentando a duração do tempo em que ela permanece retida no corpo sutil. Através da kumbhaka (retenção do prāa) e da mudrā (selamento, i.e. o ato de conter o prāa), o haha-yogin se esforça em intensificar o calor interno, despertando assim a kuṇḍalinī-śakti. Na medida em que seu poder serpentino ascende através de suumna-nāī, o haha-yogin fixa sua consciência em seu som sibilante (nāda), o que leva sua mente a ser absorvida e suportada pelo estado silencioso da identidade com Brahman. Neste texto iremos abordar uma esquecida prática do haha-yoga denominada nāda-ānusandhāna, o cultivo do som interior. Esta prática aparece na quarta lição (caturthopadeśa) da Hahapradīpikā como a meditação que leva ao último objetivo do Yoga, o samādhi, total absorção cognitiva.]

मुक्तासने स्थितो योगी मुद्रां सन्धाय शाम्भवीम्
शृणुयाद्दक्षिणे कर्णे नादमन्तास्थमेकधीः

muktāsane sthito yogī mudrā sandhāya śāmbhavīm
śṛṇuyāddakie kare nādamantāsthamekadhī

O yogī, sentado em muktāsana, concentrado em śāmbhavī-mudrā, deverá ouvir atentamente o nāda que soa em seu ouvido direito.

Hahapradīpikā, IV: 67

Palavras iniciais

Brahmānanda em seu comentário da Hahapradīpikā, o Jyotsnā, descreve o processo do haha-yoga nos termos de uma gradual cessação da atividade humana ordinária. Os āsanas (posturas) engendram o controle sobre o corpo físico, capacitando o praticante a assumir uma postura estável por um longo período de tempo. Pela execução da kumbhaka, o haha-yogin regula e, eventualmente, contém o fluxo do prāa em seu interior, o que, em contra partida, facilita a concentração requerida para silenciar os vttis da mente. Do ponto de vista haha, é aumentando e prolongando a duração de kumbhaka que se atinge os estágios finais do aṣṭāga-yoga, i.e. pratyāhāra, dhāraā, dhyāna e saprajñāta-samādhi (Jyotsnā, IV: 11). Eventualmente, diz Brahmānanda, até mesmo as atividades de buddhi [o mais refinado aspecto da mente] se tornam estáveis e o que permanece é o purua apenas (idem).

A quarta lição da Hahapradīpikā contém instruções, em palavras bem claras, sobre a fusão da mente com o prāna. Esse processo é denominado como laya, estado no qual a percepção das dualidades fenomênicas cessa. A expiração e a inspiração ficam suspensas, um estado conhecido como kevala kumbhaka (suspensão absoluta do processo respiratório) que ocorre naturalmente, o que, por conseguinte, suspende os processos cognitivos do pensamento e as atividades mentais. Na Hahapradīpikā (IV: 31-34), Śrī Svātmārāma Yogīndra diz: Quando a inspiração e a expiração cessam, o desfrute dos sentidos é aniquilado, ocorre à imobilidade e imutabilidade, o yogī atinge laya. Todos os desejos proeminentes são findos definitivamente e se permanece imóvel. Laya torna-se acessível, que é apenas vivenciado, não há palavras que explique. Onde há visão, laya ocorre e controla os eternos órgãos dos sentidos. Os dois elementos, śakti e jīva, partem invisíveis para laya. [...] Mas qual a característica de laya? Laya é quando as vāsanās não retornam, é o lugar do esquecimento. Mais a frente, falando sobre o poder do nāda sobre a mente (IV: 91-92), ele diz: O ferrão afiado do nāda pode efetivamente controlar o elefante furioso de manas quando quer passear no jardim dos prazeres dos objetos dos sentidos. Quando manas se despediu de sua natureza caprichosa e foi agrilhoada pelo nāda, então citta torna-se totalmente imóvel como um pássaro sem asas. Quando a mente se funde com prāna, o estado de laya é obtido, resultando no cidānanda ou moka, diz a Hahapradīpikā (IV: 30).

Na disciplina do haha-yoga, segundo as instruções de Śrī Svātmārāma Yogīndra, é importante compreender que as práticas preliminares de prāāyāma (kumbhaka) são um meio efetivo de preparo para uma perfeita execução de nāda-ānusandhāna. Na verdade, prāāyāma é a técnica do haha-yoga – par excellence, e seu aspecto mais importante, a chave de todo o processo, é a kumbhaka. De acordo com a filosofia haha, o yogī experiente é capaz de controlar o ciclo respiratório e aumentar o volume do alento dentro de si, de maneira que possa suspendê-lo por horas a fio. Isso ele faz com a intenção de reter o prāa na profundeza mais recôndita de seu Ser – a suumnā-nāī – abrindo o infinito reservatório da kuṇḍalinī-śakti. Yogīndra discute o prāāyāma, o processo de conter a energia vital através da retenção (kumbhaka), na segunda lição (dvirtāyopadeśa) de seus apontamentos.

Nāda-Ānusandhāna

Como falei acima, a kumbhaka é a principal técnica do haha para se conter o prāa dentro do corpo, instigando o profundo calor interno e excitando a kuṇḍalinī adormecida a sair de seu sono. Enquanto a kuṇḍalinī ascende através da citriī-nāī e penetra os cakras e granthis, o yogin em profunda introspecção é capaz de escutar um som sutil e interno (nādam-anta) com o ouvido direito – ou seu equivalente sutil (Hahapradīpikā IV: 67). O nāda (ou śabda) é considerado ser a própria kuṇḍalinī-śakti manifestada como som ou vibração, tendo como um de seus títulos o termo śabda-brahman (a palavra ou som de Brahman). Na medida em que ela ascende pelo canal axial, seu som se torna incrivelmente mais refinado e a mente do yogin completamente absorvida no sibilo que ela produz.

Anusandhāna, às vezes pronunciada anusadhāna, é traduzida como atingir algo, ter a intenção de, observar ou prestar a atenção. Portanto, a prática de nāda-ānusandhāna (nāda + ānusandhāna) sugere a fixação da atenção no som interior. O propósito final da prática é equivalente ao propósito final proposto no kriyā-yoga de Patañjali, i.e. reduzir e dissolver a turbulência da consciência (citta-vtti). O resultado final sendo conhecido como laya (absorção). De acordo com a Hahapradīpikā (IV: 66), o número de métodos para se conquistar o estado de laya conforme deliberados por Ādinātha (Śiva) é 1,25 milhões (sapāda-koi), nāda-ānusandhāna sendo considerado o mais refinado de todos.

श्रवण पुट नयन युगल घ्राणमुखानां निरोधनं कार्यम्
शुद्ध सुषुम्णा सरणौ स्फुटममलः श्रूयते नादः

śravaa pua nayana yugala ghrāamukhānā nirodhana kāryam
śuddha suumā saraau sphuamamala śrūyate nāda

Fechando os ouvidos, nariz, boca e olhos, então ouvirá claramente o nāda se movendo na suumā purificada.

Hahapradīpikā, IV: 68.

O método envolve sentar-se na postura de liberação (muktāsana, também conhecida como siddhāsana) enquanto se assume śāmbhavī-mudrā, i.e. a concentração no objeto interior (Hahapradīpikā, IV: 66). A atenção mental deve estar retraída das informações sensoriais externas, completamente focada no nāda, um processo que é conquistado, segundo a Jyotsnā (IV: 68), fechando os ouvidos com os polegares de cada mão e utilizando os outros dedos para fechar os olhos, as narinas e a boca. Isso implica que, inevitavelmente, ocorra kevala kumbhaka. A mente (citta), diz a Hahapradīpikā (IV: 90), deve estar absorta no nāda assim como uma abelha está absorta no trabalho de colher o néctar das flores, não se distraindo com seus perfumes, i.e. as experiências sensoriais externas.

Estágios do nāda-ānusandhāna

A Hahapradīpikā (IV: 69 ss) identifica quatro estágios (avasthā) principais da experiência intrapsíquica que ocorre com a prática do Yoga. Cada um destes estágios é caracterizado pela escuta de uma manifestação particular do nāda. Na medida em que o haha-yogin avança por estes estágios sucessivos, um aspecto mais sutil do som é escutado e a absorção da mente se torna mais intensificada. No primeiro estágio, denominado ārambha, termo que se traduz como começar ou iniciar, o brahma-granthi é perfurado na região do anāhata-cakra,[1] o que engendra um estado de bem-aventurança, levando o yogin a experimentar o vazio (śūnya).[2] Simultaneamente, vários sons musicais são percebidos emanando do interior do corpo como o som de guizos (anāhata-dhvani), de onde o cakra do coração deriva seu nome (Hahapradīpikā, IV: 70). Ao se iniciar este estado de śūnya, o yogin passa a emanar uma deliciosa fragrância celestial, seu corpo torna-se divinamente radiante (divya-deha) e seu coração completamente cheio de vida e felicidade (sapūra-hdaya), ensina a Hahapradīpikā, IV: 71.

O segundo estágio de nāda-ānusandhāna é nomeado ghaa-avasthā, que significa pote [de água] e é caracterizado pela perfuração do viṣṇu-granthi na região do viśuddhi-cakra e pelo escutar ou perceber no centro (suumnā) o vazio mais elevado (ati-śūnya) e o ressoar de um timbale (bherī).

O próximo estágio é paricarya-avasthā que se traduz como familiaridade [i.e. compreensão do som], no qual, é dito, o nāda é como o som de um tambor (mardala), sendo emanado de mahā-śūnya (o grande vazio), morada de todas as siddhis, diz a Hahapradīpikā, IV: 74, localizada no ponto entre as sobrancelhas. Aqui o rudra-granthi é perfurado e, no quarto estágio, nipatti (imobilidade), um som semelhante a uma vina é escutado.

Estes quatro estágios (avasthā) podem ser classificados como diferentes níveis de saprajñāta-samādhi, i.e. samādhi com suporte cognitivo, pois o nāda provê um foco de atenção para a mente que, a cada estágio progressivo, testemunha o desvelar de um aspecto mais sutil e refinado (sūkma) do som (Hahapradīpikā, IV: 84). O nāda também pode ser caracterizado como um veículo que carrega a mente através de sucessivas camadas de auto-identidade até o último estado do som completamente inaudível (niśabda) de Parabrahman (o Absoluto Supremo), a realização do mais elevado Ser (paramātman), Hahapradīpikā, IV: 101. Este estado final, além do som ou qualquer outro fenômeno, é o asaprajñāta-samādhi referido por Vyāsa em seu Yoga-Bhāya (I: 1) e outro (anya) estado mencionado por Patañjali em seu Yoga-Sūtra (I: 18) como a condição em que nenhum novo saskāra é gerado e onde purua ou ātman reside em sua própria natureza.

Nós podemos ver que pela técnica discutida neste texto, o haha-yoga é uma disciplina que compreende em seu escopo os mais elevados ideais do Yoga conforme apresentados nas primeiras Upaniads e posteriormente no sistema codificado por Patañjali, assim como nas Upaniads do Yoga[3] que apareceram após o período conhecido como Yoga Clássico.

Notas:

[1] Em outros textos tântricos como o a-Cakra-Nirūpaa, o brahma-granthi é localizado no mūlādhāra-cakra.

[2] O significado literal de śūnya é vazio, vácuo, livre. Quando o termo é aplicado a um estado intrapsíquico, estas traduções falham em capturar seu verdadeiro significado. Como ākāśa, śūnya é melhor traduzido como uma expansibilidade ou espaço, que carece de um conteúdo individualmente objetivo.

[3] No que concerne as Upaniads, é uma má compreensão identificar o Yoga como uma categoria distinta de Upaniad, pois o tema central de todas as Upaniads é Yoga, i.e. se entendemos o Yoga como um meio de união e identidade de ātman com Brahman e o caminho para se atingir essa última realização. Entretanto, Upaniads do Yoga é uma maneira conveniente e abreviada de se referir àquelas Upaniads menores que tratam mais especificamente dos canais de energia (ī), os centros de poder (cakra) do corpo sutil, a repetição (japa) de mantras, a meditação sobre o sagrado o, bem como práticas de āsana e prāāyāma. Estes textos apresentam um conteúdo primordial que foi, com o passar do tempo, diretamente associado às práticas do haha-yoga, tendo sido tratado apenas de forma oblíqua ou fragmentada nas Upaniads mais antigas. No que se relaciona ao presente estudo, podemos fazer um paralelo com a Maitri-Upaniad, conectada ao Kṛṣṇa-Yajur-Veda (Yajur-Veda negro), pois, de todas Upaniads anteriores, ela é a que contém uma descrição mais explícita da metodologia que se assemelha aquela apresentada nos trabalhos de haha que surgiram posteriormente. Nesta Upaniad é considerável notar a íntima conexão entre o fluxo do prāa e a instabilidade da mente, a ênfase no prāāyāma como o método mais efetivo de concentrar e silenciar a mente (Maitri-Upaniad, VI: 19), assim como a menção de levar a ponta da língua no palato mole atrás da úvula, estancando a descida do bindu, o néctar sutil e vital liberado através do soma-cakra. Atenção é dada a canalização do prāa ao longo de suumnā-nāī, que é dito penetrar através do palato mole focado na potente sílaba o, conduzindo a mente a morada de Brahman (Maitri-Upaniad, VI: 21). Imergindo-se no som interior, nesta Upaniad referido como śabda-brahman, o adepto é lançado a condição inaudível do puro Brahman (Maitri-Upaniad, VI: 22). Isso nos parece ser exatamente o mesmo método referido como nāda-ānusandhāna discutido enfaticamente na Hahapradīpikā.

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