segunda-feira, 6 de outubro de 2008

O Ideal Tântrico da Perfeição


Por M.M. Gopináth Kaviraj
Traduzido do Bengali por Pt. H. N. Chakravorty
Revisão e notas por Fernando Liguori


Os antigos filósofos da Índia sempre discutiram sobre o objetivo supremo do homem e sua aspiração no seu sādhana. Neste tópico que se segue tentaremos entender o ponto de vista tântrico em comparação com a visão do Sāmkhya e do Vedānta.

Desprezamos o processo da vida colhendo sempre os frutos de prazer e dor e passando por inumeráveis transmigrações de uma vida a outra. O fator controlador da passagem para uma posição superior ou inferior é considerado pelas nossas boas ou más ações, e a transmigração resultante é o efeito. Quando uma posição superior é atingida, a saber, quando alguém vai para o céu, este alguém adquire a oportunidade de desfrutar o prazer e os poderes, e esse tipo de prazer dura para sempre. Mas imediatamente quando a virtude decresce no corpo nascido com virtude este cai como conseqüência por ter retrocedido às regiões mundanas dos jīvas.
[1] A região superior significa aqui svarga[2] que é de duas espécies: uma é o céu inferior cuja divindade regente é Indra. Este svarga inferior preenche o desejo daqueles que adoram a divindade com desejo (sakāma). Aqui o adorador encontra uma longa abertura de vida, a companhia de apsaras[3] favoráveis, a beleza divina, o perfume divino, uma corrente do suco de néctar; estes e outros tipos de prazer estão possivelmente disponíveis para ele. Pelo mérito das ações boas eles são desfrutados, mas como ele não tem o conhecimento da verdade, ele cai do reino de bhoga[4] assim que suas boas ações diminuem. Para eles há um Amarāvatī[5] espaçoso, o que dizer das outras divindades, elas têm suas regiões de prazer de acordo com seu respectivo poder e autoridade. Cada divindade oferece ao seu adorador a riqueza do prazer. Mas tudo isto depende do karma (ações) e a característica proeminente do movimento pelo caminho de pitryāna[6] não contem jñāna.[7] Acima da região de Indra e superior a esta agora descrita, existe um outro svarga superior. É também a região de prazer. Quando o prazer é alcançado em seus vários níveis, aquele que o sentiu não vivencia a dor da queda, mas vai para a região superior seguinte. Esta região se estende até Brahmaloka[8] para aquele que segue o caminho devayāna.[9] Assim como para o seguidor do caminho de pitryāna existe svarga para o usufruir o prazer, da mesma maneira há inumeráveis mundos inferiores para sofrer as dores e ele voltará ao mundo para nascer como um jīva.

Todo o problema do mundo nasce do karma. O mundo que se move e o que não e as almas que viajam através das 84 000 yonis
[10] nascem do karma, são em suma o alcance da criação. É possível somente ao ser humano atuar o karma. Antes de adquirir o manomāyākośa[11] i.e. não há possibilidade de se fazer uma ação com o annamāyākośa[12] e prānamāyakośa.[13] Pela força do karma no corpo humano, se jñāna se desenvolve gradualmente, ele adquire a aptidão de possuir o vijñānamāyākośa,[14] e seu desenvolvimento posterior o leva a adquirir o ānandamāyākośa.[15] Aqui o mundo ou samsāra[16] dos quais falamos acima é a região para o jīva colher o fruto da vida na forma de prazer e dor. Este samsāra é infinito, e consiste não só de vários estágios, como também são de natureza variada. Exatamente quando os inumeráveis svargas (infernos) e narakas são criados para o prazer e sofrimento através das ações feitas pelo corpo humano, da mesma forma, observando internamente, de acordo com a competência e aptidão de desfrutar ānanda e śakti (benção e poder), vários tipos de kośa chegaram a existir. Tudo isso engloba todo o sistema mundial. Inclui svarga, naraka, e a região dos pretas.[17] São as regiões para os jīvas que estão externamente propensos e onde eles desfrutam e sofrem os frutos de ações impuras, uma vez que, o mundo de vijñāna (consciência) e ānanda (beatitude) cujos respectivos kośas têm relação e são as regiões para aqueles que estão interiormente propensos. Uma pequena parte de samsāra é a região do karma e o resto é o lugar de bhoga (prazer).

Na origem da experiência de prazer e dor, que é chamada de bhoga, devido às ações praticadas pelo corpo humano e as várias regiões onde o jīva as vivencia, são criadas a fim de que possa colher o fruto de seus feitos passados. Contanto que ele não perceba a verdadeira natureza do eu ele é obrigado a vivenciá-las e fica incapaz de se livrar delas.

Conhecer o corpo como o Eu é ter uma noção falsa ou ājñāna. Considerar o corpo, a mente, a energia vital ou o intelecto como sendo o Eu verdadeiro de alguém é uma noção falsa de forma indiscriminatória. O homem percebe pela primeira vez com a ajuda de um julgamento discriminador que o Eu não é nem este corpo grosseiro, nem o sutil e nem mesmo pertence a qualquer categoria de prakrti
[18] individual ou coletivamente. Primeiro ele percebe isto no nível intelectual com a ajuda de um julgamento intelectual, mas no final, quando ele percebe intuitivamente que ele está separado não só das vinte e quatro categorias que pertencem a prakrti e do corpo feito de vinte e quatro tattvas[19] e da próprio prakrti, neste estágio pode-se dizer que ele atingiu o perfeito julgamento discriminador. Depois do surgimento deste julgamento, quando o corpo é deixado de lado, e o eu está livre da associação com prakrti, ele atinge seu estado puro. O que resta dos feitos passados ou por causa de ājñāna (noção falsa) pela qual ele tinha uma forma e assumia um corpo, foi-se para sempre. Isto é, a cessação de ājñāna o fator que causa um corpo, o qual se deve ao surgimento de um julgamento discriminador. Neste estágio puruśa[20] como o Eu, estando livre da associação com prakti, repousa em seu próprio estado de cit. Isto é chamado de kaivalya.[21] Inumeráveis almas ou puruśas depois da obtenção de kaivalya repousam em sua glória imaculada de cit.[22] É um estado além de prakti (matéria causal). Como não existe nenhum traço residual da semente nascida do falso conhecimento (ājñāna), a ocorrência de nascimento é muito improvável. O número de almas é inumerável. Cada alma repousa isolada e não está conectada com nada mais e está dissociada de prakrti. Quando ele estava em sua natureza experimental, tinha um corpo para vivenciar o prazer e a dor através de diferentes ciclos de transmigrações. Mas agora todos os samskāras[23] de ações passadas são queimados pelo seu conhecimento discriminativo e como não há a possibilidade deles ocorrerem novamente, o estado de kavali[24] esta além do prazer e da dor. Mas com a condição que não se pode perceber sua própria identidade com Brahman deve-se ficar satisfeito com o estado de isolamento, i.e. neste estágio kaivalya no Sāmkhya parece ser o objetivo final do Ser.

Depois de passar o estágio de jñāna como proposto no sistema Sāmkhya, quando entra-se no estágio de jñāna como pregado no Vedānta, atinge-se Brahmabhāva.
[25] É um tipo de kaivalya. No estágio anterior, os cit manifestados antes eram muitos, enquanto que no último estágio encontramos cit em sua totalidade, livre de todas as impurezas.[26] Do ponto de vista do Advaita Vedānta isto é considerado ser a meta suprema. A teoria de conhecimento proposta no Vedānta é diferente daquela do Sāmkhya. Da mesma forma a teoria do erro vista no Sāmkhya é diferente de erro ou ājñāna exposta no Vedānta. Por causa desta diferença, pela visão Sāmkhya onde nenhum vestígio de avidyā[27] é percebido, ainda o é sob a visão do Vedānta. Este ājñāna não deve ser considerado como um tipo de conhecimento indiscriminativo. Enquanto este mūlavidyā[28] não cessar, o jīva (alma individual com ego) não pode atingir a Meta Suprema. Pode-se pensar que depois de se chegar ao nível de advaita, o esforço ou aspiração a uma aquisição posterior será inútil. Mas um sādhaka ou um yogi encontra na visão dos āgamas,[29] neste mesmo estagio, uma nova e mais ampla visão de advaita que se manifesta com toda a glória e esplendor. Aqui a visão advaita é para ser tomada como vista no Tantra ou nos āgamas. Pelo sādhana do Vedānta, a alma encontrou uma firme base na verdade de ekamevadvitiyam.[30] Mas isto é uma aparência de pūrnatā,[31] porque mesmo neste estagio por causa da falta de sphuratta[32] de cit. Śakti que é samvid,[33] ela própria, não pode ser chamada de completa (pūrnatā) porque onde há plenitude, surge uma absoluta irrelatividade. De acordo com esta visão a alma é a própria manifestação de Śiva por natureza. Há algumas duvidas sobre isto, mas é destituída de svaTantra,[34] embora seja a base[35] de māyā a qual não se identifica com parasamvit[36] que é o Livre Arbítrio por natureza. É verdade que māyā no Vedānta é capaz de parecer impossível, embora de acordo com aquele sistema māyā não se identifica com a alma. É indescritível e falso. De acordo com o Vedānta ātman como Brahman é destituído de Eu (ahanta). Ahanta (ego) nasce de māyā por esta razão é irreal. Na visão tântrica ahanta é a natureza (svarūpa) pertencente ao ātman que é conhecido como vimarśa (auto-reflexo). No caso da não existência de ahanta, ātman, embora sendo luz (prakāśa), permaneceria imanifesto. Bhartrhari disse:

Vagrupata Cdud kramedavabodharya sasvati
Na prakāśa as hi pratyavamarsini

Este vak ou paravak é o poder de liberdade que é vimarśa (insatisfação, impaciência) por natureza. O professor tântrico diz que jñāna no Vedānta não está em sua forma totalmente desenvolvida de jñāna (conhecimento, sabedoria). Quando jñāna brilha em sua totalidade, o ātman encontra-se não só na sua natureza advaita, mas percebe que é um estado de não dualidade e é completo de Livre Arbítrio (Pūrna Svātantrya). Este é o Eu total.

O que chamamos de criação ou de universo criado está em ātman como um e identificado com ele. O Eu é livre e como tal está livre para agir e fazer. Não é simplesmente um substrato consciente (adhikarana). É Śiva numa mão e Śakti na outra. Śiva é capaz de vivenciar uma sensação e Śakti também. Ātman como Śiva não tem spanda,
[37] mas, como Śakti, é cheio de spanda. Os estudiosos dos āgamas pressuporam Śiva e Śakti como dois princípios que estão na base do universo e sua composição. Se os dois são considerados como iguais então são conhecidos como o ātman. Com base nas trinta e seis categorias há dois tattvas, um que é Śiva e o outro que é Śakti. Śiva é destituído de liberdade (svantrya), mas tem cit (consciência), enquanto Śakti é cheia de liberdade mas não tem consciência (cit - consciência pura). Quando Śiva Śakti são considerados juntos, é a plenitude (pūrnatā). Isto se chama Paramaśiva ou Parasamvit. Esta é a verdadeira natureza[38] do Transcendente ou da Verdade Integral. Sob a visão não dualista dos śaivas chamamos de Paramaśiva aquele que possui a perfeita liberdade e sob a visão não dualista dos śaktas é a Liberdade superconsciente ou Mahāśakti.

Aquele que acredita firmemente na visão acima, percebe que sem atingir este ponto, a realização da vida humana não é possível. As visões no Sāmkhya, no Vedānta e outros sistemas parecidos são somente lances que conduzem a realização com liberdade e que é obtida, porque o esforço do homem não cessa até que ele atinja este objetivo. Visto daqui, como foi explicado antes, sabedoria (jñāna) no Sāmkhya não é a verdadeira sabedoria e da mesma maneira ājñāna também não é a ignorância real. Portanto com a ajuda da sabedoria real como sustentada pelo Sāmkhya, é possível neutralizar a ignorância e por um fim nela, ainda que a cessação dela seja só relativa e não total. De acordo com os tântricos o mesmo pode ser feito com relação à sabedoria e ignorância sustentadas no Vedānta. Os tântricos são da opinião que a verdadeira sabedoria é aquela que dissipa anavamala
[39] que o jīva possui tendo como conseqüência o seu completo estabelecimento em sua natureza de Śiva resultante de sua habilidade em adquirir liberdade plena.

Pode-se perguntar aqui qual é a verdadeira natureza da sabedoria. De acordo com o Sāmkhya sua natureza é que ātman é pura cit (consciência) e é diferente de prakrti de três elementos. O tipo de conhecimento discriminativo é considerado ser o conhecimento real. Como resultado deste conhecimento o espírito ou puruśa adquire a liberação ou kaivalya que está alem do nascimento e da morte. Mas para o tântrico o limite superior de ascensão no Sāmkhya não vai alem. Parecida com a visão do Tantra, a natureza da sabedoria de acordo com o sistema Vedānta consiste no eu estar além de māyā e sua natureza é Brahma que é sat-cit-ānanda (estado de consciência, bênção). Esta é a natureza imutável (kutastha – imutabilidade) do ātman (essência ou princípio de vida). O resultado da sabedoria perfeita é tornar-se livre de māyā (ilusão) e estar estabelecido nela (sabedoria). De acordo com este sistema a única realidade é ātman, mas māyā e seu resultado (kārya – efeito relativo ao karma) como é indescritível, é irreal. Por meio de kartrlva (ação, agente de ação) o mundo é imposto ao ātman por causa da superimposição (adhyāsa). Por causa deste Īśvara,
[40] que serve de apoio a māyā, faz-se existir. Mas realmente Brahma, transcendendo māyā é a suprema realidade, este é o conhecimento perfeito. O estudioso tântrico diz, ao contrário, que o conhecimento não termina aqui porque o conhecimento exposto acima é destituído de ahanta (Eu). A luz que é totalmente luminosa é invariavelmente da natureza do Eu completo. Isto é o que se denomina vimarśa,[41] por causa dele que o Eu (ātman) é o que brilha como Parameśvara. Cada alma individual contanto que não atinja esta posição, está desprovida completamente de sua natureza manifesta.

De acordo com a visão tântrica é śuddhavidyā
[42] a qual a natureza de conhecimento pertence. É distintamente diferente em característica de prakrti, māyā e mesmo de mahāmāyā. É atribuído ao jīva, o animal em escravidão pelo Paramaśiva na forma de Guru, o mestre. No caso da impossibilidade do jīva receber śuddhavidyā, ele é incapaz de se tornar um Śiva. A menos que ele não receba śuddhavidyā na forma de supremo mantra do Guru ele tem que se contentar com ideais inferiores como kaivalya e etc.

A transferência de śuddhavidyā vem do Grande Senhor. Pode acontecer ou durante a criação ou dissolução quando a criação cessa. Mas quando ocorrer, tão logo a alma adquire forma para recebê-lo, o Grande Senhor lhe oferece. Embora não haja restrição de tempo, ainda existe uma diferença de opinião sobre a qual a forma do recipiente deste conhecimento superior depende. Apesar da diferença de visões cada opinião tem sua verdade ainda que para um entendimento claro do assunto somente três visões foram discutidas aqui. Dentre elas uma é o amadurecimento dos malas,
[43] a segunda é o equilíbrio do karma e a terceira é o livre arbítrio svātantrya de Deus. Sob a visão dualista o amadurecimento de mala e o equilíbrio do karma são considerados serem os fatores, mas na visão advaita o livre arbítrio de Deus é à base dele. Em relação à lucidez tentaremos explicar “amadurecimento de mala” pelo ponto de vista dvaita. Aqui mala significa Anava Mala (psiquismo individualizado). Os olhos do conhecimento intuitivo do jīva estiveram sempre fechados desde o início pela impureza na forma de um envoltório, então ele não é capaz de perceber sua natureza verdadeira. Como tudo esta dependendo do tempo e como mala é uma substância (dravya) por natureza, então vai amadurecendo gradualmente. O amadurecimento de mala é devido ao tempo e outras causas.

Notas:
[1] O Eu individualizado.
[2] Céu, plano celeste.
[3] Divindades celestiais.
[4] Prazer, contentamento.
[5] Nome da vila, residência de Indra.
[6] Caminho dos ancestrais pós-morte.
[7] Lit. gnose. Também sabedoria, conhecimento.
[8] Plano celeste de Brahman. O mais alto plano.
[9] Caminho dos deuses pós-morte.
[10] Símbolo da energia pro criativa.
[11] Corpo, invólucro mental.
[12] Corpo físico denso.
[13] Corpo de energia vital.
[14] Corpo intelectual de consciência.
[15] Corpo de beatitude.
[16] Mundo fenomênico de fluxo constante.
[17] Falecidos, entidades pós-morte.
[18] Natureza, criação.
[19] Realidade ou categoria de existência cósmica.
[20] O Eu transcendental, espírito puro.
[21] Isolamento final do Yoga.
[22] Principio da inteligência universal.
[23] Impressões, tendências pré-natais.
[24] Aquele que atingiu kaivalya.
[25] Atitude expressa, relação especial com Deus.
[26] Estado de nirañjana – imaculado.
[27] Ignorância.
[28] Ignorância radical.
[29] A palavra āgama significa doutrina tradicional ou sistema que demanda fé.
[30] Literatura hindu dos Tantras.
[31] Plenitude.
[32] A manifestação.
[33] Conhecimento, consciência, inteligência.
[34] Independência.
[35] Adhiśthāna – suporte, base, substrato.
[36] Conhecimento supremo.
[37] Vibração.
[38] Svarūpa – natureza essencial.
[39] As impurezas da psique individualizada.
[40] Senhor, controlador, percebedor, mestre, divino poder.
[41] Reflexão, consideração – outro nome do Eu.
[42] Conhecimento metafísico.
[43] Impurezas da mente – um dos defeitos.

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