योनिवर्गः कलाशरीरम - yonivargaḥ kalāśarīram
शिव सूत्र
Śivasūtra
Sūtra 3
योनिवर्गः कलाशरीरम
yonivargaḥ kalāśarīram
योनि – yoni: a progenitora do mundo material (māyā);
वर्गः – vargaḥ: o princípio ou forma dos tattvas;
कला – kalā: produz limitação com respeito a ação ou eficácia;
शरीरम – śarīram: forma.
Natureza do Sūtra: [Śāmbhavopāya] Existem duas outras condições de limitação: māyīya e kārmamala. Juntas, contribuem na escravidão do indivíduo.
Tradução
O grupo das matrizes constituem o corpo das energias que obscurecem[1]
Explicação
Kṣemarāja interpreta este sūtra em conexão com o anterior e explica que ele se refere a duas impurezas que ainda condicionam a Consciência: a Impureza de Māyā (māyīyamala), incluindo as cinco couraças de obscurecimento (kañcukas)[2] e a Impureza do Karma (kārmamala). Portanto, do ponto de vista de Kṣemarāja, este aforismo traduz-se como: māyīyamala e kārmamala também são escravidão ou māyā é a fonte de escravidão do mundo na forma de māyīyamala e kārmamala. Uma tradução aceitável, quando conjugada com a principal selecionada aqui é: o grupo das categorias associadas ao Útero (da diversidade) e o corpo das energias que obscurecem (que dão nascimento a ação limitada) também são escravidão.
Caverna (guhā), Nó (granthi) ou Útero do Universo (jagadyoni) são expressões usadas para denotar Māyā. Aqui, Māyā é referida como Útero porque é através dela que a Consciência cria o mundo e o corpo de cada alma individual dando nascimento ao despertar das distinções relativas tanto diretamente (sakṣāt) entre si mesmo e a realidade que nos rodeia e, indiretamente, entre os objetos que populam esta realidade. Esta atividade escravizante é chamada de criação impura (aśuddhasṛṣṭi), que desce desde a categoria de Māyā até a terra. Esta é à base da Impureza do Karma que aqui é denominada como energia que obscurece (kalā), cujo poder é dar nascimento a ação limitada que genericamente igualamos a Māyā. Kṣemarāja diz:
Kalā gera a diversidade (kalayati) projetada externamente. É o poder de Māyā que diferencia e condiciona pela limitação. É por conta disso que a alma individual é privada de seu poder. Em outras palavras, sua liberdade soberana é ocultada por sua própria [projeção interna] de Māyā.[3]
Quando o indivíduo está fortemente afetado por esta impureza ele se sente totalmente perdido, não valorizando sua condição humana e, portanto, se tornando vítima das circunstâncias que, na realidade, ele criou para si mesmo como conseqüência de suas ações passadas.
O segundo aforismo diz que o indivíduo se encontra em um estado de escravidão por conta de sua inata qualidade de contrair a Consciência (āṇavamala). O terceiro aforismo diz que não é apenas por causa de āṇavamala que o indivíduo se encontra em um estado de escravidão. Unidas a āṇavamala, há duas outras malas (impurezas) que obstruem o poder da Consciência: māyīyamala e kārmamala. Como enfatizado no comentário do aforismo anterior, māyīyamala provê ao indivíduo seus veículos físico e psíquico com os quais ele experimenta o confinamento, o cativeiro. Kārmamala faz com que ele se entregue a ações motivadas pelas vāsanās ou impressões deixadas na mente pelo karma. Estes traços residuais ou forças karmicas arrastam o indivíduo a experiência terrena, de uma vida a outra, de novo e de novo.
Kṣemarāja diz que neste aforismo a palavra bandhaḥ (escravidão) – do sūtra anterior – deve ser levada em consideração e que a palavra yoni significa a fonte do mundo fenomênico, i.e. Māyā. Vargaḥ, por outro lado, significa a classe de elementos (tattva-samūhaḥ) associados com Māyā diretamente ou através de estágios sucessivos, quer dizer, de kalā (agente limitador) e os outros kañcukas[4] até a terra. Portanto, yonivargaḥ é sinônimo de māyīyamala. Em outras palavras, de acordo com a cosmogonia Śaiva da Caxemira (Ābhāsavāda) isso dá origem ao corpo, os sentidos e aos diversos mundos, iniciando o processo desde kalā tattva (ação limitada) na ordem descendente até a terra.
Kalā é o que divide o mundo de entidades em coisas separadas (dualidade) como isto ou aquilo por meio da atividade cognitiva. Śarīra significa forma. Portanto, kalāśarīram significa isso cuja forma é atividade limitada, i.e. kārmamala que, assim como māyīyamala, é causa da escravidão. Portanto, sob a interpretação tradicional do Śaivismo da Caxemira, Māyā[5] se manifesta como a objetividade que limita a ação dinâmica da mente e os sentidos.
Swami Lakṣmanjoo, uma das maiores autoridades Śaiva dos tempos modernos e considerado por muitos como a encarnação de Abhinavagupta, enfatiza que para que este aforismo seja compreendido conforme as idéias de Kṣemarāja, ele deveria ser lido como yonivargaḥ kalāśarīram bandhaḥ, que provê o seguinte significado: māyīyamala e kārmamala também são escravidão. Ele discute a idéia dizendo que a palavra yonivarga significa conhecimento diferenciado como isso é meu, isso não é meu, isso é bonito, isso é feio, isso é bom, isso é ruim. Todas essas sentenças são exemplos de yonivarga e que este tipo de conhecimento diferenciado é da natureza da impureza conhecida como māyīyamala. Por outro lado, a palavra sânscrita kalāśarīram significa ação incorporada como isso foi feito, isso deve ser feito, isso foi bem feito, isso foi mal feito. Todas essas sentenças são exemplos de kalāśarīram. Este tipo de conhecimento é da natureza da impureza conhecida como kārmamala. Portanto, tanto māyīya quanto kārmamala levam a escravidão.
A palavra yonivargaḥ é a combinação de duas palavras: yoni e varga. Yoni significa a causa do universo e varga significa classe, um tipo de classe que está diretamente ou indiretamente conectada ao corpo. Portanto, o universo é o produto da energia da ilusão e suas classes (varga). Esta é a classe diretamente conectada ao corpo: isso é bom, isso é ruim, isso é meu dedo, isso é o meu joelho. A classe indiretamente conectada ao corpo: esta é a esposa, este é o discípulo, este é o arroz, este é o bolo. Estas duas classes, direta e indireta, são a causa do nascimento do corpo e de sua separação individualizada das coisas do mundo em relação ao seu corpo. Este corpo é yonivarga. Quer dizer, quando estamos limitados de todas as maneiras, limitados na ação e no conhecimento, experimentamos yonivarga. Esta experiência de limitação começa com kalā e vai até a terra porque a manifestação do mundo diferenciado (Māyā), começa com kalā tattva. Acima de Māyā somente existem elementos puros (śuddhavidyā). Assim, do elemento terra ao elemento kalā, estamos sob a vigência de yonivarga, i.e. māyīyamala.
Agora, kalāśarīram, a ação limitada, se relaciona com as ações que atuam sobre seu corpo, seu ser e todo seu conhecimento e na sua mente e todos os seus pensamentos, deixando sempre uma impressão. Isso é kārmamala. Quando pensamos: não sou nada, estou perdido, perdi minha preciosa esposa, estou quase morto etc., é o tipo de pensamento e ação resultante de kārmamala. Isso, também, é escravidão.
A Spandakārikā (I: 9) define estes dois tipos de escravidão:
निजाशुद्ध्यासमर्थस्य कर्तव्य्ष्व् अभिलाषिणः
यदा क्षोभः प्रलीयेत तदा स्यात् परमं पदम्
nijāśuddhyāsamarthasya kartavyṣv abhilāṣiṇaḥ
yadā kṣobhaḥ pralīyeta tadā syāt paramaṃ padam
O ser empírico é reduzido a ineficácia por causa de suas condições impuras, limitativas e inatas (āṇava, māyīya e kārmamala) e se vê impulsionado a desejar diversos objetos que são a causa de sua ineficiência e que nunca lhe deixam completamente satisfeito. Quando cessa completamente este estado de inquietude em sua mente, produzido pela identificação de si mesmo com sua individualidade incondicionada, então ele expertimenta o estado supremo.
A natureza da limitação da Consciência, portanto, está conectada a āṇavamala. Onde esta existe, as outras duas impurezas também existem. Quando ela cessa, as outras também são destruídas. A Svacchandatantra (II: 39-41) diz:
मल प्रध्वस्त चैतन्यं कलाविद्या समाश्रितम्
रगेण रञ्चितात्मानं कालेन कलितं तथा
नियत्या यमितं थुयः पुंथावेनोपबृं हितम्
प्रधानाशयसंपन्नं गुण त्रय समन्दितम्
बुद्धि तत्त्व समासीनम अहम्कार समवतम्
मनसा बुद्धि कर्माक्शैस्तन्मात्रैः श्थूलथूतकैः
mala pradhvasta caitanyaṁ kalāvidyā samāśritam
rageṇa rañcitātmānaṁ kālena kalitaṁ tathā
niyatyā yamitaṁ thuyaḥ puṁthāvenopabṛṁ hitam
pradhānāśayasaṁpannaṁ guṇa traya samanditam
buddhi tattva samāsīnama ahamkāra samavatam
manasā buddhi karmākśaistanmātraiḥ śthūlathūtakaiḥ
Concluimos que a palavra caitanya significa a completa liberdade da Consciência Universal. Por causa da impureza de āṇavamala, que está conectada a kalā (ação limitada) e vidyā (conhecimento limitado), caitanya (a Consciência Universal independente) se perde. Ela é absorvida em rāga (o apego) e limitada por kāla (o tempo). Ela é confinada a prisão de niyati (limitação ou apego a um objeto particular).[6] Essa limitação é intensificada pela limitação do ego. Dessa forma [a Consciência] é absorvida no corpo de prakṛti e então unida aos três guṇas (raja, tama e sattva). É estabelecida na realidade de buddhi (o intelecto).[7] O Ser Universal é limitado ao eu individual. Ele é limitada pela mente, pelos órgãos de percepção, pelos órgãos de ação, pelos cinco tanmātras (elementos sutis) e pelos cinco elementos densos.
A Mālinīvijayatantra (I: 24) conclui:
धर्मा धर्मात्मकं कर्म
सुखदुःखदिलक्शणम्
dharmā dharmātmakaṁ karma
sukhaduḥkhadilakśaṇam
Ele [o jīva] realiza boas e más ações que lhe produzem prazer e dor.
Agora, Bhāskara interpreta este aforismo de uma forma consideravelmente diferente de Kṣemarāja. De acordo com ele, o grupo das matrizes (yonivarga) se refere as quatro principais energias do Absoluto (anuttara) que são: Vāmā, Jyeṣṭha, Ambikā e Raudrī.[8] O corpo das energias que obscurecem (kalāśarīra) se refere aos cinquenta poderes da Consciência representados pelas letras do alfabeto que emergem destas quatro energias, gerando assim o mundo das palavras e significados.
Em seu comentário, Bhāskara diz: Este é o conhecimento das matrizes (yoni) que são os quatro poderes universais que envolvem a manifestação de todas as coisas. Eles são Vāmā, Jyeṣṭha, Ambikā e Raudrī. Todos são formas de Śiva. O grupo ou a agregação destes (poderes) constituem um corpo coeso entre as energias que obscurecem (os fonemas arranjados) de A a KṢ que dão forma a fala (śabda). Estas energias que obscurecem são chamadas de mãezinhas, poderes, deusas e raios. Elas manifestam a noção (pratyaya) de alma agrilhoada na medida em que são indefinidamente expressas pela fala. Assim, ele [a alma] se torna uma vítima porque o conhecimento que elas manifestam invariavelmente lhe privará de seu verdadeiro poder.
Portanto, de acordo com Bhāskara, as energias que obscurecem constituem as energias fonêmicas arranjadas de A a KṢ. Elas se manifestam através de quatro poderes que são, coletivamente, a causa de todas as coisas. Estas energias que obscurecem, que consistem dos fonemas mais densos, assumem, pela conjunção de palavras e sentenças, a fala em toda sua totalidade e diversidade, enquanto que a linguagem, comum ou letrada (laukika e alaukika) gera a noção de agrilhoamento na medida em que é privada de seu verdadeiro poder, tornando-se assim o objeto de seu próprio envolvimento com o prazer e o deleite que o mundo fornece.
Estes quatro poderes são:
1. Vāmaśakti – também conhecida como Vyomavāmeśvari, este é o poder da bem-aventurança (ānandaśakti) que, além da suprema energia da vontade (parātitā), é a fonte de todas as energias. Esta é a Consciência Transcendental (anākhyā) da Consciência Universal que, além do tempo, permeia os três momentos criação, preservação e destruição no qual todo fenômeno está sujeito. Este é o supremo estado da kuṇḍalinī que é a liberdade criativa de Śiva e consiste da união dos três níveis de existência, i.e. Śiva, Śakti e a alma individual. Representada pelos poderes do Absoluto, sua vontade e o desabrochar de seu conhecimento caminham juntos, em união harmônica. Ela é a deusa que preside a incessante roda de transmigrações, criando, para o ignorante, o mundo da diversidade e ilusão. Este é o poder de Śiva para aqueles que se encontram imersos na ignorância. Esta é a Śakti ativa na manifestação do mundo.
2. Jyeṣṭāśakti – esta é a segunda energia que emerge do Absoluto como o poder que dá sustentação a persistência (sthiti). Para o Desperto, este é o poder através do qual o conhecimento puro e a ação da Consciência Universal é cultivado em seu interior. Esta é a Śakti que conduz a liberação.
3. Raudrīśakti – este poder é responsável pela contração (saṃhāra) da consciência mais elevada cultivada por Jyeṣṭā. Ele bloqueia o caminho para liberação dando nascimento as dúvidas na mente do aspirante ou causando apegos aos prazeres ocasionais da existência cíclica, retirando sua atenção do objetivo último da realização do Ser. Esta é a Śakti que coloca obstáculos em todas as manifestações.
4. Ambikāśakti – este é o poder da consciência que sustenta o estado de vigília em um único nível de vibração. Esta é a Śakti que cria obstáculos no caminho dos perversos e destrói os obstáculos em benefício das almas elevadas.
Abhinavagupta comenta:
Vāmā é a dama daqueles que estão imersos na existência transmigratória e concede o poder do Senhor (prabhuśakti). Jyeṣṭhā é a dama dos Despertos e Raudrī é a dama daqueles que procuram os prazeres do mundo. Vāmā é assim conhecida porque Ela vomita a existência fenomênica (saṃsāravamana). Jyeṣṭhā é assim conhecida porque Ela é da natureza de Śiva e Raudrī porque Ela dissolve o mal e fixa a ação. (Tantrāloka, VI: 56-57)
Notas:
[1] Outras traduções cognatas podem ser: 1. E também o grupo das matrizes e o corpo da obscuridade; 2. Māyīyamala e Kārmamala também são escravidão; 3. Māyā é a fonte de escravidão do mundo na forma de māyīyamala e kārmamala; 4. Māyā com seus princípios associados e kalā, que provê a origem dos corpos e mundos, são escravidão.
[2] As cinco couraças de obscurecimento são: 1. tempo (kāla); 2. apego (rāga); 3. ação limitada (kalā); 4. conhecimento limitado (vidyā) e; 5. limitação espaço-temporal (niyati), particularmente no que concerne ao karma.
[3] Spandakārikānirṇaya, p. 68.
[4] O que lança um véu de ilusão sobre a Pura Consciência (śuddha saṁvid), convertendo uma emanação em condição de divindade na forma de um humano limitado.
[5] Não confundir este termo com o comumente utilizado pelas outras escolas filosóficas indianas, para os quais têm um valor completamente diferente do utilizado pelo Śaivismo da Caxemira, pois nesta tradição, Māyā não é simplesmente um poder ilusório ou mágico destituído de origem. Māyā vem da raiz verbal mā, mensurar, comparar e aqui é o princípio que limita e estabelece condições dualistas sobre o Todo.
[6] Por conta de niyati você é levado a pensar: esta é minha casa, esta não é sua casa. Na verdade, você não possui casa alguma, mas niyati lhe levou a pensar que sim.
[7] Além do intelecto existe caitanya. Quando caitanya torna-se limitada, ela se transforna na natureza do intelecto ou atividade cognitiva superior.
[8] Cada uma das cinquenta letras do alfabeto sânscrito simboliza uma vibração no fluxo de energia que gera e retrai a ordem cósmica e transcendental na medida em que ela assume ou abandona aspectos de sua própria natureza. Cada uma delas são energias em sua própria unidade. A, a primeira letra do alfabeto sânscrito, relaciona-se a Anuttara, o Absoluto.
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