domingo, 24 de fevereiro de 2008

ज्ञानं बन्धः - jñānaṁ bandhaḥ


शिव सूत्र

Śivasūtra


Sūtra 2

ज्ञानं बन्धः
jñāna bandha

ज्ञानंjñāna: conhecimento, discernimento, cognição;
बन्धःbandha: limitação, escravidão, prisão.

Natureza do Sūtra: [Śāmbhavopāya] A escravidão do indívíduo empírico ocorre por sua condição de limitação inata, cujo nome é āavamala e que, de fato, é a ignorância de nossa verdadeira natureza.

Tradução

Cognição é escravidão[1]

Explicação

Este sūtra é a resposta de uma indagação deixada em aberto no primeiro sūtra. Se o Ser é pura Consciência, como ensina o primeiro sūtra, o que é que se encontra escravizado, obscurecido? Quem se encontra escravizado, obscurecido? O segundo sūtra responde que a escravidão do indivíduo se dá através de seu processo cognitivo limitado (jñāna) o que é, verdadeiramente, um processo de ignorância (ajñāna). Este processo cognitivo limitado é o que podemos chamar de conhecimento diferenciado, pois ele é dual, portanto, limitado. A fonte para se eliminar este conhecimento limitado é entrar em contato com a verdadeira natureza interior inseparada da Consciência livre (svātantrya). O único fator existente que impede a experimentação da Consciência livre em toda sua plenitude é a ignorância (ajñāna) que gera o estado de limitação (mala).

Bhāskara, em seu comentário (Vārttika), diz que o conhecimento [baseado nas noções de] ‘eu’ e ‘isso é meu’ surge incutido na fala[2] e consiste da percepção (prathā) das distinções relativas. Ele é enraizado na impureza de Māyā que é escravidão, cujo símbolo é a ignorância, o obscurecimento da Cansciência.

Seguindo a linha de pensamento de Bhāskara, a impureza de Māyā (māyīyamala) é escravidão. É a impureza da individualidade (āavamala)[3] que obscurece o soberano poder da Consciência através do processo cognitivo limitado. Este processo cognitivo ou conhecimento limitado é uma percepção múltiplo-diversificada que, associada com a noção de eu e isso é meu, obscurece a verdadeira natureza da Consciência pelas noções de existência e não-existência, que ocorre em detrimento da própria fragmentação da Consciência.

Isso ocorre porque o Supremo Senhor, eterno e penetrante, nega Sua própria natureza e, como um ator, assume o papel da alma individual encoberta por suas limitações, contraída (por Si mesmo) pelo seu poder de Māyā, a fim de que possa manifestar o drama cósmico. Em outras palavras, quando passamos a existir através do nascimento, a Consciência se contrai a um estado limitado por ação do próprio Senhor, o Criador. Por isso dizemos que descendemos. Com o trabalho do processo espiritual e da atuação de nosso karma, voltamos ao estado primordial em que a Consciência se encontrava, percebendo o Ser além do ego. Se não despertamos para este trabalho espiritual e para este estado não visível aos olhos, então nos mantemos na dualidade que é a causa da limitação da Consciência e de nossa existência.

Bhāskara equipara o processo cognitivo limitado referido neste sūtra com a percepção discursivamente representada que conecta a alma individual, baseada, como é, no sentido de ego, centrado na percepção objetiva do corpo que, de forma equivocada, foi identificado com a percepção subjetiva da Consciência. Como a forma deste processo cognitivo limitado resulta desta percepção e é baseado na distinção relativa que se apóia entre o sujeito e o objeto, assim como objetos individuais em si mesmos, Bhāskara o atribui a māyīyamala que é a impureza que engendra o sentido de dualidade. Kemarāja, por outro lado, toma uma atitude diferente ao identificar este processo cognitivo limitado a āavamala, i.e. a ignorância metafísica através do qual o Criador, o sujeito universal, voluntariamente limita a si mesmo, sua Consciência, a fonte infinitamente condensada (au) através da falsa identificação com o organismo psico-físico, cujo resultado é, como enfatizado anteriormente, a ignorância de sua verdadeira identidade. Dessa maneira, sua capacidade de conhecer e de atuar torna-se completamente restrita. Essa identificação dá nascimento a diferentes percepções, confundidas pela alma agrilhoada (paśu), perdendo assim a visão da natureza universal da Consciência. Novamente, em um nível macrocosmico, é através destas percepções que Śiva projeta na vacuidade de Sua própria natureza todas as manifestações de ordem inferior e seus mundos de atuação. O conhecimento empírico de ordem discursiva é então igualado ao conhecimento incompleto da unidade de Consciência Absoluta em nós mesmos.

Portanto, para Kemarāja, a restrição da Consciência dá-se por āavamala que atua de duas maneiras: 1. paurua ajñāna, a limitação em que não é percebido que o indivíduo já está contido no Ser, no Absoluto, em total estado de absorção cognitiva (samādhi). É a ignorância inata da verdadeira natureza do Ser. 2. baudha ajñāna, a ignorância intelectual inerente a buddhi, a qualidade discriminativa de completa lucidez. A ignorância referida no sūtra é paurua ajñāna. No Śaivismo Trika da Caxemira é ensinado que paurua ajñāna é eliminada pela meditação no Ser, conforme as instruções de um śaivācārya e baudha ajñāna é eliminada pelo estudo (svādhyāya) das escrituras śaivas que explanam sobre a Realidade do Eu (Pratyabhijñā) e pela iniciação (dīkā).

Contudo, é necessário elucidar mais uma vez que este é um estado auto-imposto. Quando não mais escolhemos nos apegar a natureza e paramos de procurar um preenchimento através da percepção sensorial do mundo e seus mecanismos de engendramento e embotamento da Consciência, então toda plenitude da Consciência que a tudo abrange torna-se aparente e passamos a ver o mundo como ele é, uma Realidade Absoluta onde tudo e todos são, de fato, um.

Deixamos uma reflexão final retirada da Spandakārikā (III: 14):

परामृतरसापायस्तस्य यः प्रत्यययोद्भवः
तेनास्वतन्त्रतामेति स च तन्मात्रगोचरः

parāmtarasāpāyastasya ya pratyayayodbhava
tenāsvatantratāmeti sa ca tanmātragocara

Todo conhecimento de um paśu (individuo condicionado) nasce dos sentidos e do mecanismo criador de idéias. A causa deste conhecimento nascido dos sentidos e das idéias criadas faz o indivíduo perder o desfrute do néctar do Ser Supremo e sua liberdade inata. Tal conhecimento nascido dos sentidos e do mecanismo criador de idéias está confinado a esfera dos tanmātras, o som, a cor, a forma, o gosto, o tato e o olfato e os prazeres derivados deles.

Notas:

[1] Outras traduções cognatas podem ser: 1. Cognição é prisão; 2. Conhecimento diferenciado é prisão e o não conhecimento do indiferenciado é prisão; 3. A ignorância da real natureza do ser é a causa da prisão; 4. O conhecimento limitado é escravidão; 5. Conhecimento é escravidão.

[2] Cf. Sp.Kā, 47.

[3] No Śaivismo Trika da caxemira é ensinado que existem três formas de impureza (mala) que obscurecem a Consciência. A primeira, denominada Impureza da Individualidade (āavamala), aparentemente contrai a Consciência desde sua infinita plenitude até sua densificação atômioca (au) que, por fim, assume a forma da alma individual. A segunda é a Impureza de Māyā (māyīyamala). Ela envolve a consciência, então contraída, na rede da dualidade. A terceira é a Impureza do Karma (kārmamala) que leva a consciência individualizada a sofrer as consequências de suas ações. Utpaladeva em Īśvarapratyabhijñā (III: 2, 4-5) define estas impurezas como se segue:

A Impureza da Individualidade (āavamala) ocorre quando alguém perde a consciência de sua verdadeira natureza (svasvarūpa) e ela é de duas formas: a perda da consciência de sua própria liberdade e a perda da liberdade de sua própria consciência. A [impureza] chamada Māyā é a percepção do objeto separado do sujeito. Ela engendra os repetidos nascimentos e a experiência do mundo (bhoga). A impureza do Karma afeta a ação daquele que ignora sua real e verdadeira natureza interior.

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