Yoga, Espiritualidade & Moralidade
. primeira parte .
Por Fernando Liguori
[Nota: este texto foi originalmente publicado no site Yoga-Br, agora fora do ar. Após sua publicação recebi algumas indagações e críticas construtivas, o que me levou a escrever um adendo, Tantra, Neotrantrismo & Brahmacarya, hoje publicado no site Śrīkulācāra.]
EXISTE uma discussão muito antiga acerca do Yoga no que se refere à espiritualidade e religiosidade. Em outras palavras, Yoga é religião ou espiritualidade? Para mim, a palavra espiritualidade está relacionada à Realidade Última e a atitude de autotranscendência voluntária e consciente tão cultivada na tradição do Yoga.
Em primeira análise, a distinção entre o que é espiritual e o que é religioso é relativa ao grau. A espiritualidade dá ênfase à prática sistemática e contínua da autotranscendência com o objetivo de se atingir plenamente a Realidade Última que, em concordância com as correntes místicas, é compreendida como o próprio núcleo de nossa natureza humana. A religião também incentiva a autotranscendência, todavia, é mais convencional em seu enfoque, dando muita ênfase ao comportamento moral íntegro e à obediência à vontade da Realidade Última retratada como pessoa, i.e. o Deus ou a Deusa.
Como podemos, então, compreender a relação entre o que é espiritualidade e o que é misticismo? A espiritualidade, em princípio, não requer doutrinas para sua realização, ao passo que o misticismo está repleto de noções religiosas. O Yoga, em todo seu escopo, abrange um largo espectro de orientações, cujo teor é às vezes mais religioso, às vezes, mais espiritualista. Podemos tomar como exemplo o bhaktiyoga (o caminho devocional), que é, sem dúvida alguma, uma linha intensamente religiosa da espiritualidade yogī, ao passo que o karmayoga (o caminho da ação autotranscendente) concentra-se no comportamento moral e inclui poucas noções típicas da religião. Por outro lado, o jñānayoga (o caminho da sabedoria) que se dedica ao processo de autotranscendência por meio do treinamento da atenção consciente, ou atenção plena, não é religioso ou místico e, assim, talvez expresse melhor o termo espiritualidade radical. Mas, uma vez que tanto o bhaktiyoga quanto o karmayoga têm por objetivo final a autotranscendência perfeita da condição humana, são caminhos que devem ser considerados espirituais. Um exemplo de espiritualidade mística é o kuṇḍalinīyoga (o caminho da transformação mental e corporal via a ativação da energia psicoespiritual conhecida como śakti).[1] Mas todos estes termos são aproximações, rótulos que devem ser utilizados com uma certa flexibilidade.
Ao relacionar o termo espiritualidade à tradição do Yoga, me permito fazer uma crítica ao que essa tradição se transformou no Ocidente: um bem de consumo relativo a um monopólio de mercado. O Yoga vem sendo manipulado de maneira implacável no Ocidente pelos mercadores da tradição, e sobre estes dois pontos acima algumas considerações devem ser levantadas.
O Yoga se tornou um bem de consumo. Mais e mais pessoas vêm praticando, o que por um lado é bom, pois a tradição vem ganhando mais adeptos. Contudo, fica no ar a seguinte indagação: mas a troco de que? Ao passo que percebemos um largo crescimento e abrangência do Yoga, também percebemos que a qualidade não chega, nem perto, ao Yoga que outrora fora transmitido pelos ācārya-s (professores) da tradição. A prática limitou-se a performace de posturas e respirações. Algumas vezes a meditação é levada a sério, mas em mínimas proporções. Assim, como a ginástica, os esportes aquáticos e outros, o Yoga tornou-se um bem de consumo que, na maioria das vezes, atende um público cada vez maior preocupado com a estética e, em raras vezes, mas não menos presente, preocupado com as doenças geradas por um meio de vida irresponsável que reflete os valores de uma sociedade cada vez mais consumista.
Do meu ponto de vista, o Yoga degenerou-se em bem de consumo no Ocidente por conta do monopólio de mercado gerado por algumas autoridades modernas e seus discípulos. A disseminação de cursos de formação expressos, considerados por mim supletivos de yoga, acabam por gerar profissionais mau preparados para o ofício de professor. Em primeiro lugar, a meu ver, para ser professor de Yoga necessita-se de dom, não basta querer ser. Vi inúmeras pessoas que nunca praticaram Yoga recebendo diploma de professores após oito meses de curso, e o resultado foi catastrófico. Vi cursos de formação tão mal formulados e desestruturados que seus formandos acabaram por gerar dor e sofrimento em praticantes bem intencionados. Vi cursos com taxas abusivas que ferem até mesmo os princípios éticos da própria tradição. Vi professores assediando alunas; outros, dizendo-se mestres avançados etc. Uma vez perguntei a um professor de Yoga se ele achava conveniente realizar os ṣaṭkarma-s (seis ações de purificação) do haṭhayoga. Disse que não, lembrando-me de que ele mesmo era capaz de fazer muitas posturas difíceis sem nunca ter feito nenhumas das purificações. Isso tudo reflete o Yoga moderno ocidental.
Em 2004, a revista Vogue exibiu um artigo sobre uma ex-modelo que, durante uma aula de Yoga, sentiu muita dor de cabeça (exames posteriores revelaram que era um sintoma de tumor cerebral). Sua famosa professora de Yoga, no entanto, disse-lhe com animação que a dor era um despertar da kuṇḍalinī, fingindo, assim, um conhecimento que certamente não possuia.[2] Isso reflete uma atitude muito comum no praticante moderno, ou pelo menos naquele que gosta de estudar um pouco mais. De nada adianta falar de conceitos abstratos como kuṇḍalinī e cakra-s se não existe no praticante uma base espiritual consistente, e esta base começa com aquilo que Patañjali chamou de o grande voto,[3] i.e. a prática da moral e ética yogī que, em si, são inerentes ao ser humano. Em outras palavras, os preceitos yogī-s postulados por Patañjali em seu Yogasūtra são intrínsecos a natureza humana!
E quando utilizo o termo abstrato quero dizer que se a base do caminho espiritual não estiver devidamente solidificada, i.e. se o praticante não estiver firmemente estabelecido na ética e moral yogī, que são o primeiro passo para um amadurecimento espiritual, a prática de āsana-s, prāṇāyāma-s, mudrā-s, vocalização mântrica etc. não surtirá o efeito desejado. Ao contrário, poderão produzir um efeito adverso ao sublime ideal do Yoga, reforçando o ego e os apegos dele derivados.
É importante entender que para o yogī as disciplinas morais não são meros princípios abstratos ou regras deduzidas. Elas são virtudes que emergem do próprio caráter ou estado de ser de uma pessoa. Portanto, como afirmei acima, do meu ponto de vista (que é o ponto de vista clássico do Yoga), as virtudes são intrínsecas ao nosso ser.
E, embora um grande número de psicólogos, sociólogos, filósofos e antropólogos digam o contrário, i.e. que a natureza humana é essencialmente selvagem e tende a manifestar sua agressividade e instintos mais lascívos se as condições forem propícias, a gentileza e a bondade também são características inatas do ser humano. A virtude é uma manifestação da qualidade psicocósmica de sattva, um termo sânscrito que comunica uma condição de refinamento, lucidez, pureza e transparência. A pessoa sátvica é naturalmente virtuosa. Portanto, conforme sustenta o ponto de vista clássico do Yoga, devemos purificar a nós mesmos e aumentar o conteúdo sattva de todo o nosso ser, para nos tornarmos virtuosos e, assim, sermos capazes de agir de maneira virtuosa.
Se quisermos passar por um profundo processo de autopurificação ou satvificação[4] do ser interno, devemos personificar algumas virtudes. Em outras palavras, se nos faltar a virtude de desejar uma vida virtuosa, nunca iremos iniciar o cultivo consciente das virtudes pelo processo de autotranscendência e autotransformação. Portanto, na posição de praticantes de Yoga nos dias de hoje, mais do que nunca, é importante encorajar ações virtuosas a todos ao nosso redor, e a melhor maneira de se fazer isto é sermos bons modelos no exercício das virtudes.
Mas no meu entender, infelizmente, como as coisas atualmente caminham, declaro de maneira pessimista, confesso, que o Yoga contemporâneo é moralmente débil, o que reflete a permissividade da sociedade moderna. Portanto, quando decidi escrever esta série de artigos que ressaltam a importância da moral yogī e a relevância de se compreender a essência espiritual por trás de sua prática, me permiti dissertar acerca de cada um dos cinco refreamentos que constituem o grande voto descrito por Patañjali.
Um destes cinco refreamentos descritos por Patañjali – e que normalmente não é levado a sério pelos praticantes de Yoga dos dias de hoje – é a castidade (brahmacarya). No mundo do Yoga contemporâneo, vemos poucos indícios da virtude da castidade, seja entre solteiros ou casados. Os estúdios de Yoga tornaram-se butiques de roupas sensuais para prática. Nos tempos antigos, uma virtude yogī cultivada e altamente valorizada era a modéstia. Mas atualmente, é considerada antiquada. É raro os professores e instrutores de Yoga Ocidental pedirem a seus alunos que usem roupas modestas na aula, evitando assim um desfile de moda e um comportamento inadequado entre alunos. Durante anos temos visto casos de professores – muitas vezes famosos – que se envolveram com alunas. Uma atitude que fere completamente a ética e a moral yogī.
A Aliança do Yoga, uma organização responsável pelo registro de professores de Yoga com duzentas e quinhentas horas de treinamento, incluiu em seu código de conduta profissional a proibição de se utilizar palavras ou praticar ações que constituam assédio sexual. Este é um modo curioso de expressar esta importante disciplina moral. No entanto, por incrível que pareça, é uma taxação aos professores para que não constituam a ameaça de assédio sexual, algo que notóriamente deveria ser evitado, em vez da virtude positiva de brahmacarya que deveria ser cultivada. Portanto, a inclusão deste regulamento existe para que não haja infração da virtude que ele procura proteger.
Hoje existem exibições públicas de yoga nu; movimentos hedonístas para praticantes gays onde as práticas também são executadas entre homens com o corpo nu; círculos de praticantes que se entregam a execução de atividades sexuais sem restrições sobre o pretexto de estarem praticando o Tantra e inúmeros movimentos neotântricos cujas práticas e ensinamentos são de caráter duvidoso.
Séculos atrás, a história do tantrismo na Índia e nos países do Himalaia sofreu um abalo moral devido a uma interpretação errônea de seus códices. Hoje em dia, o neotantrismo que, ao meu ver, é um movimento distorcido do Tantra enquanto tradição autêntica, é um movimento de contracultura na Índia e faz parte do florescer da Nova Era no Ocidente.
O Pandida indiano Brajamadhava Bhattacharya fala de maneira dura, mas franca, sobre os movimentos modernos que se lançam a práticas sexuais dizendo estarem sob a alcunha da tradição tântrica:
De drogaditos a alcoólatras, de pervertidos a maníacos, todos abrem seus clubes sob o indefinido guarda-chuvas do Yoga e do Tantra. O Tantra tornou-se uma evasão fácil para os degenerados. Porém, o Tantra real compromete-se, de corpo e alma, com a subjugação de todas as emoções sensuais à causa subjetiva de descobrir a verdadeira identidade do Ser.[5]
Os ensinamentos tântricos caíram em descrédito na Índia por conta do abuso indiscriminado. Contudo, é preciso ficar claro que a vida espiritual genuína tende a florescer em secreto, e que os perdidos têm sempre propagandeado suas questionáveis realizações e formidável egotismo por meio do mercado, seja na forma de produtos, nas iniciações pagas ou nos cursos neotântricos de finais de semana.
Na maioria da vezes, quando o não-iniciado ouve falar de Tantra, lhe vem a mente sexo indiscriminado e hedonismo deliberado. Mas não é assim. Tantra é uma tradição espiritual e nas escolas de mão esquerda (vāmācāra), em que existe nos níveis mais avançados a prática sexual orientada (maithunā), somente adeptos bem adiantados no caminho são autorizados a ter uma consorte de carne e osso para o sagrado ritual do ato sexual com o objetivo de facilitar o progresso espiritual. A menos que o adepto tenha alcançado um estágio de completo desenvolvimento do poder de controlar sua energia criadora (kuṇḍalinī śakti); a menos que possua realmente todas as faculdades por meio das quais as emoções negativas possam ser transformadas em energia positiva, ele nunca deverá implantar práticas com uma consorte real.
Sem a preparação adequada nos planos moral, emocional, mental e espiritual, o tantrismo pode transformar-se em uma armadilha mortal. Seus métodos são potentes e podem prejudicar seriamente àqueles que não estiverem adequadamente preparados. Muitos dos ensinamentos tântricos nunca foram registrados por escrito. Eles eram transmitidos oralmente – do guru ao discípulo devidamente qualificado. Às vezes, eles eram sussurrados no ouvido do estudante, sob a exigência do mais absoluto segredo. Isso significa que seus ensinamentos são secretos ou ocultos, e não podem ser divulgados aos não-iniciados.
A atitude reservada do tantrismo tradicional mostra-se em franco contraste com o neotantrismo de nosso tempo, que tende a ser indiscriminadamente democrático. Um exemplo disso nós podemos encontrar no livro Ioga Tântrico,[6] onde os autores – que dirigem um famoso movimento neopagão Wicca – dão instruções para formação de grupos supostamente tântricos e agregam, no fim do livro, um apêndice com instruções para praticantes gays. Os autores ainda disseminam a idéia de que a necessidade de gurus tornou-se obsoleta séculos atrás com a invenção da imprensa. Ora, um dos fundamentos principais de uma real tradição tântrica é a iniciação e o discipulado espiritual através de um guru qualificado. Portanto, não deve-se subestimar a autoridade espiritual tão levianamente, substituindo-a por livros. É um fato inegável que encontramos grande perigo na distorção e na vulgarização da tradição tântrica quando examinamos a literatura popular.
Portanto, como afirmei acima, é notório nos círculos de Yoga vermos tanto descaso com a prática da castidade, tão necessária ao verdadeiro desenvolvimento espiritual. Como afirmei em A Tradição Tântrica dos nātha-siddha-s & a Culminação do Haṭhayoga,[7] para os yogī-s a substância denominada ojas[8] é uma força sutil que permeia todo o corpo e está concentrado no sêmen. É a forma mais sutil da força vital (prāṇa) que sustenta corpo e mente, o motor energético por detrás do crescimento interior e a transcendência do complexo ego-personalidade. A fim de preservar este potencial energético inato ao corpo humano, o yogī utiliza seu poder, de maneira que ele se torne útil para um propósito mais elevado.
Dando continuidade ao nosso estudo, eu gostaria de abordar a questão da castidade e seus efeitos, assim como sua aplicação nos dias de hoje por parte dos praticantes de Yoga, tecendo então alguns comentários acerca da interpretação do termo brahmacarya que, de tradição em tradição, vem ganhando significados distintos. Ao considerarmos o termo brahmacarya no universo do Yoga, devemos sempre ter em mente, como veremos a seguir, que a tradição compreende primordialmente duas concepções: uma ressalta um enfoque mais ascético que muitas vezes nega a vida, a outra, em especial em sua forma tântrica, aceita a vida. Distintamente, estas são as abordagens verticalista e integralista. Os adeptos do verticalismo (ou ascetismo) se fundamentam no lema para cima e para fora, concentrando-se na ascensão gradual da energia vital pelos centros psicoenergéticos (cakra-s) e além. Eles enxergam o mundo, o corpo, o sexo, as mulheres, a comida e o dinheiro como demônios a serem superados. Ao contrário destes, os adeptos do integralismo, que consideram unilateral o enfoque verticalista, não veem um perigo intrínseco na corporificação, mas valorizam o corpo como uma plataforma para realização espiritual. Isso ficará mais claro adiante.
A tradição do Yoga nos traz através da noite dos tempos uma profunda consideração pela castidade. Mencionada pela primeira vez no Atharva-Veda, datado de cerca de 3000 a.C., o conceito de castidade apresentou-se associado à palavra sânscrita brahmacarya. Literalmente, a palavra significa conduta bramânica. O termo Brahma significa aqui espiritual, sagrado ou divino. Assim, brahmacarya passou indicar a disciplina espiritual adequada a um brâmane, membro da classe sacerdotal, que procurava simular a pureza da Realidade Última – neste caso, Brahma. Ao termo também é designado àquele período da vida destinado ao estudo dos Veda-s. O estudante, então um brahmacārin, é orientado pelo ideal da abstinência total da sensualidade e, a ela inclusa, naturalmente, a sexualidade. Como Brahma transcende todas as distinções de gênero, o estudante é estimulado a praticar brahmacarya, a conduta da Realidade Última, de modo a preservar e cultivar o grande poder da energia sexual. Portanto, no hinduísmo, o termo brahmacarya designa não apenas o período de estudo e discipulado em geral, mas também a prática da castidade moderada entre os chefes de família, a total abstinência sexual dos ascetas e a sexualidade orientada de certas tradições tântricas.
Portanto, pela concepção acima demonstrada, o termo brahmacarya pode ser interpretado de três maneiras distintas: a primeira orientação, denominada horizontalista (pravṛttimārga) ou caminho da atividade ou conduta comum, onde se enquadram os chefes de família (samsārin) preocupados com emprego, família, pertences, posição social, perspectivas etc. Em um certo estágio do desenvolvimento espiritual, estas preocupações são apropriadas e as autoridades hindus chamam este período da vida de gṛhastha. O chefe de família procura, pelo menos, seguir os ensinamentos morais que caracterizam o estabelecimento do dharma, e no que se refere a castidade, espera-se que ele regule de modo voluntário sua atividade sexual dentro de um relacionamento fechado.
A segunda orientação, denominada verticalista (nivṛttimārga) ou o caminho da cessação, atingiu seu ápice com o advento do Advaita Vedānta como popularmente expressado pelo grande preceptor Śaṅkara, e seus primórdios podem ser rastreados desde as primeiras Upaniṣad-s, demonstrando sua acirrada característica ascética e o ideal do sacrifício interior.[9] Nesta interpretação verticalista da realidade, o mundo objetivo é caracterizado como sendo mais virulento que o veneno de uma naja e o corpo humano, repugnante em sua manifestação, sendo merecedor da mais terrível condenação. Uma vez que o corpo e o mundo são considerados insignificantes, o aspirante é orientado a se concentrar esclusivamente no Ser, abandonando todas as buscas convencionais. Aqui, o termo brahmacarya é compreendido pelo asceta que vaga solitariamente pelas florestas e montanhas como total abstinência sexual.
A terceira orientação, denominada integralista (pūrnamārga), floresceu com o advento do tantrismo medieval após o Séc. VIII d.C. É uma característica presente na maioria das escolas tântricas perceberem o mundo como uma manifestação da Realidade Última e Transcendental, assim como o corpo um templo divino. De acordo com o Tantra, o Ser é o Todo (pūrna) abrangente, presente no corpo, na mente e no mundo, contudo, transcendente. Portanto, o Tantra é integralismo, um eterno continuum. Este continuum é percebido pelos adeptos como o nirvāṇa, mas pelos profanos como samsāra. Realidades opostas, mas não distintas. É na tradição tântrica, quem sabe, que o termo brahmacarya possui mais interpretações. Algumas escolas caracteristicamente mais ascéticas, como àquelas de mão direita, consideram essencial a continência irrestrita do sêmen; outras escolas, como àquelas de mão esquerda, de modo diferente, consideram que a emissão seminal deliberada, contudo dirigida para finalidades mágico-espirituais, em determinados casos, tem grande importância, não rejeitando, entretanto, práticas onde a energia seminal seja sublimada para o alto e além, ao invés de ser descarregada para fora, através de uma técnica especial conhecida como ūrdhvareta. Nós voltaremos a este ponto.
Expresso essa dicotomia, inerente a própria palavra castidade, dizendo que a menção à vida casta deixa dúvidas quanto ao significado do termo. Abhinavagupta, mestre śaiva que promoveu uma reforma na Tradição Kaula por volta do Séc. X d.C., se designava casto, nunca tendo se casado ou constituído família, apesar de praticar ritos sexuais de cópula (maithunā). Portanto, o termo castidade, segundo os ensinamentos deste mestre, deve ser compreendido na acepção correta, i.e. no sentido de vida solitária e não de vida sob estrito celibato radical. A postura de Abhinavagupta (que é a postura das escolas tântricas mais liberais), como podemos inferir de seu texto Tantrāloka, é natural na forma de encarar a sexualidade e a satisfação dos sentidos na vida cotidiana. Este mestre entendia que a busca e o encontro com o Ser Divino não exigem a renúncia dos poderes ligados aos sentidos, que foram outorgados pela própria Divindade para o uso do homem na manifestação da vida. Ele pregava que não é a satisfação dos sentidos que afasta o homem da Divindade, mas a ignorância do não reconhecimento de sua natureza divina e sua postura equivocada frente à ação, que velam sua compreensão e entendimento afastando-o do Absoluto por completo desrespeito aos ensinos do karmayoga. Em seu Tantrāloka, āhnika XXIX: 96-100, ele revela sua visão:
O ritual secreto revelado pelo Senhor é agora exposto. Este ritual deve ser celebrado em companhia de uma energia exterior.[10]
Devemos, como nos impingido pelo Yogasaṁcāratantra, observar o estado de bramacārin. Brahman é a suprema felicidade e reside dentro do corpo de forma tripla. As duas primeiras formas servem de meio, a terceira indica felicidade e é o fruto.[11]
Os seres escravizados, que são privados dos três ‘Ms’, são privados da felicidade. Aqueles que celebram este sacrifício sem os três ‘Ms’, fonte da felicidade, vivem na tormenta e no inferno.[12]
O controverso e auto-intitulado guru iluminado Prabhat Rainjan Sarkar, também conhecido como Śrī Śrī Ānandamūrti, fundador da Ānanda Mārga, uma organização tântrica segundo seus adeptos, tem as seguintes palavras a dizer sobre o conceito de brahmacarya:
O significado correto de brahmacarya é permanecer conectado a Brahma. [...] O significado da prática de brahmacarya sādhanā é o de considerar os objetos com os quais a pessoa entra em contato como diferentes expressões de Brahma, e não como formas materiais. Por esta concepção, mesmo que a mente vagueie de um objeto a outro, ela não se afasta de Brahma porque extrai sentimentos cósmicos de cada objeto. [...] Muitos interpretam erradamente brahmacarya como sendo a preservação do sêmen. Deveria ser lembrado que nenhuma das duas palavras, brahma e carya tem relação com a palavra sêmen. Além do mais, mesmo fisiológicamente, a preservação do sêmen é um blefe. Seja por causa de doenças em certas glândulas ou por outros processos similares, a menos que alguém se torne mutilado, não será possível observar esse tipo de brahmacarya. [...] As pessoas que, por diferentes métodos repressivos, tentam prevenir a perda do sêmen, na verdade, sofrem reações físicas e mentais negativas. Seus corpos se desenvolvem grosseiramente e falta-lhes vivacidade. A supressão do desejo sexual dá origem a outros desejos, especialmente a raiva, sob uma forma mais terrível.[13]
No meu ponto de vista, a castidade ascética somente provoca prejuízos quando é mal orientada, e a história tem um registro muito extenso sobre casos sinistros provocados por este tipo de má orientação. Ascetas devotos, contudo perturbados, flagelavam e castravam a si mesmos, chegando a amputar os genitais a fim de mortificar a carne. Qualquer ensinamento que considere a atividade sexual pecaminosa está abrindo as portas para morbidez e muitos são os exemplos mórbidos provocados por este tipo de pensamento. São Bento de Núrsia jogou-se em uma moita de espinhos e urtigas para deter os pensamentos impuros e alucinações indesejadas; Arsênio, anacoreta alexandrino canonizado após o Séc. V d.C. rejeitou uma moça romana que implorava por suas preces dizendo: a oração de minha vida será que eu possa esquecer você; Santo Amon vestia-se e despia-se no escuro para não contemplar seu corpo nu; a madre superiora Joana dos Anjos, da ordem das ursulinas, jogou-se em brasas e dormiu nua no gelo e na neve para deter seus pensamentos pecaminosos; por fim, temos o exemplo do próprio “Mahatma” Gandhi, que expressou bem o grupo puritano e verticalista do hinduísmo: Posso afirmar, sem a menor hesitação, de minha própria experiência bem como a de outras pessoas, que o prazer sexual não apenas não é necessário, mas é positivamente prejudicial à saúde. Toda a força do corpo e da mente, que levou tanto tempo para se obter, é perdida de uma só vez, por uma única dissipação da energia vital. Leva um longo tempo para se recuperar essa vitalidade perdida, e mesmo assim não se pode saber se ela será inteiramente recuperada. Um espelho quebrado pode ser consertado para que possa fazer seu trabalho, mas nunca deixará de ser nada além de um espelho quebrado.[14] É evidente que Gandhi tinha um problema com a sexualidade, comida e o corpo, confundindo sempre o Yoga com autonegação. Estes são alguns poucos exemplos de castidade mal orientada. Penso que se eu devo utilizar o termo pecaminoso, o faço quando o relaciono a qualquer coisa que me afasta de minha Verdadeira Natureza. Rotular a atividade sexual como pecaminosa somente cria uma divisão artificial entre pretensos santos iluminados que ascendem aos céus e alegados pecadores condenados ao inferno. Como resultado, a mente do não-iniciado não consegue viver à altura do ideal proposto de perfeição moral, sendo assim permeada de sentimentos doentios de culpa e vergonha, ilusão de si mesmo ou hipocrisia.
De qualquer maneira, os caminhos espirituais mais sofisticados, em especial o autêntico Tantra, tornam claro que a atividade sexual não possui uma essência pecaminosa. A iluminação espiritual não depende de qualquer tipo de repressão, inclusive sexual. Ao contrário, segundo a tradição tântrica, indivíduos que sofrem repressão estão inaptos a realização espiritual. Muito provavelmente eles serão condenados a viver em um doloroso inferno mental criado por si próprios. Em vez de repressão, supressão, regressão ou qualquer outra manipulação neurótica da energia sexual, o Tantra pede que compreendamos e exercitemos nossos instintos em seus contextos apropriados, como postulam muitos mestres.
Como disse acima, os yogī-s das tradições espirituais positivas em relação à vida (i.e. as integralistas), não procuram abafar ou erradicar a energia psicossomática, mas utilizar e dirigir este poder para um propósito espiritual mais elevado. Esse propósito é a realização da Verdadeira Natureza, i.e. a suprema bem-aventurança. Ao regular a energia sexual no corpo humano, ao contrário do que pensa Sarkar, o yogī aumenta seu potencial de ojas, tornando-se viril e magnético. Em seu Yogasūtra (II: 38), Patañjali enfatiza que a castidade vitaliza o corpo do praticante: estabelecendo-se na castidade [brahmacarya] a obtenção de vigor [vīrya]. Se de costume o praticante permite que sua energia psicossomática seja gasta no nível dos genitais, nunca descobrirá o seu potencial maior.
Por meio da prática da economia ou continência sexual e, no caso dos ascetas e anacoretas, total abstinência sexual, que é parte da disciplina da castidade, nós podemos armazenar a energia psicossomática do corpo e empregá-la para propósitos espirituais. Yogī-s de todos os tempos sabem que quando esta energia é erguida do nível dos genitais, ela torna-se um poderoso combustível para o processo de transformação espiritual. Em outras palavras, a energia sexual é um importante reservatório de energia que deve ser usado sabiamente para desencadear o processo espiritual, ao invés de bloqueá-lo pela descarga orgástica trivial.
Em termos yogī-s, este processo requer um componente biológico, captado no termo sânscrito ūrdhvareta, que significa sêmen [que flui] de modo ascendente. Esse conceito se refere à curiosa experiência psicossomática da energia vital seminal fluindo da área genital, inundando os centros psicoenergéticos, até atingir o cérebro. Essa experiência subjetiva é acompanhada por uma progressiva perda de interesse pelo sexo e pelo prazer corporal em geral sem, entretanto, cair preso a repressão e seus sintomas indesejados. A perda do interesse pelo sexo é provocada pelo aumento do interesse nas experiências e realizações espirituais e, no final, na total transcendência do corpo-mente; de início, no estado avançado, mas temporário, de êxtase transconceitual (nirvikalpa-samādhi) e, a seguir, na condição irreversível da iluminação.
Quando o processo esotérico do ūrdhvareta se completa, a castidade perfeita é alcançada naturalmente pelo asceta que gradualmente terá sob controle a energia sexual. Em estágios mais avançados da prática, como afirmei acima, o adepto poderá realizar isso por meio da atividade sexual ritualizada. Isso demonstra que o que verdadeiramente importa é a mente: se ela pode controlar o corpo ou se é controlada por ele. Nos estádos de pós-iluminação, os adeptos em geral não são ativos sexualmente, mas existe em certas tradições tântricas de mão esquerda mestres que optaram por se envolver com o coito sexualmente dirigido. Todavia, uma discussão sobre este tema controverso está além do escopo deste artigo.[15]
Aos praticantes de Yoga modernos, fica a seguinte reflexão: não há nada de errado com o sexo se o que desejamos é ter filhos, desfrutar da companhia de um parceiro e se estivermos satisfeitos com as condições e vibrações da descarga orgástica momentânea. Contudo, se nossos objetivos forem mais elevados, devemos estar dispostos a examinar profundamente nossa atitude sexual, pois ela pode comprometer nosso caminho, nos limitando e ancorando nossas emoções, escravizando-nos assim a um mero hábito físico. No caminho espiritual, devemos ter uma compreensão mais profunda de todos os aspectos de nossa vida, principalmente os abismos sombrios e negligenciados como o sexo.
Finalmente, o Yoga não deve ser medido pelo charme de suas posturas físicas espetaculares, ou estados fabulosos de meditação, que produzem tanto fascínio em nós, dos tempos modernos. O Yoga é uma tradição espiritual. Nessa condição, ele diz respeito ao crescimento pessoal e ao objetivo último de completa autotranscendência, até o ponto da perfeita liberdade interior. O cerne do processo do Yoga, que conduz o praticante de um estado de existência inautêntica até o ser autêntico, não é glamoroso e prossegue por meio da transformação gradual e silenciosa do corpo-mente de cada um em sua vida diária. Assim, a base de toda prática genuína de Yoga, como de qualquer outra disciplina espiritual do mundo, reside no campo do comportamento moral. É impossível ser um bom yogī sem ser um indivíduo moralmente maduro.
Notas:
1. Kuṇḍalinī é a forma em que Śakti, a energia primordial está presente no ser humano: a energia ígnea que permanece em estado latente na base da coluna na forma de uma serpente. Ela, a encantadora do mundo, brilha como um relâmpago; o seu doce murmúrio parece-se com o indistinto zumbido de milhares de abelhas loucamente enamoradas. Ela é a fonte de toda palavra. Ela é quem mantém a todos os seres do mundo através da inspiração e da expiração, e refulge na superfície do mūlādhāracakra como uma corrente de luzes brilhantes. (Satcakra Nirūpana, 10). Iconograficamente a kuṇḍalinī se representa, dentro do homem, como uma serpente adormecida, enrolada três vezes e meia em torno do lingam (o falo, símbolo do poder gerador masculino), e obstruindo com a sua cabeça a entrada da suṣuṁnānāḍī, o canal mais importante dos que veiculam os alentos vitais, encontrando-se na base da coluna vertebral, no cakra chamado mūlādhāra. O despertar da kuṇḍalinī e a sua ascensão pela suṣuṁnānāḍī produz um calor muito intenso, e a sua passagem através dos cakras desenvolve os poderes latentes inerentes a cada um deles. A técnica para despertar kuṇḍalinī consiste em concentrar o prāna em iḍā e piṅgalānāḍī, e em levar essa energia para o mūlādhāracakra. Através de determinados āsana-s, visualizações, manipulações da energia por meio de bandha-s e mudrā-s, o yogī faz com que ela chegue até onde reside a kuṇḍalinī. Ali acontece o despertar e desenvolvem-se os fenômenos subseqüentes: ascensão pela suṣuṁnānāḍī e samādhi, que acontece quando a serpente penetra o sétimo cakra, chamado sahasrāra, no alto da cabeça. Em síntese, kuṇḍalī é a representante corporal individual do grande poder cósmico (Śakti) que cria e sustenta o universo. Quando essa Śakti, que se manifesta como consciência individual (jīva) se funde na consciência do Śiva Supremo, o mundo dissolve-se para esse jīva, e obtém-se a liberação (mukti). J. Woodroffe, El Poder Serpentino, p. 181. Veja Fernando Liguori, Introdução à Ciência do Haṭhayoga, disponível na web em: www.kaulayoga.blogspot.com.
2. Citado por Georg Feuerstein em As Virtudes do Yoga, p. 162. Editora Pensamento, 2009.
3. Veja o Yogasūtra de Patañjali (II: 31): Quando estes refreamentos não dependem das condições de tempo, lugar e condição de nascimento, e se estendem a todas as coisas terrestres, são denominados “o grande voto”.
4. Um neologismo criado por Georg Feuerstein baseado no termo sânscrito sattva que significa condição de ser ou esseidade, e designa o princípio psicocósmico da lucidez ou transparência. Sattva é um substantivo formado do particípio Sat (ou sant), que deriva de as-, o verbo ser (compare com as palavras em português presente, ausente – sant – e também essência, essencial – as-); Sat significa ser, como deve ser, bom, bem ou perfeito. Portanto, sattva é o estado ideal de ser, bondade, perfeição, pureza cristalina, brilho imaculado e completa quietude. A qualidade de sattva predomina nos deuses e seres celestiais, nas pessoas altruístas, e nos homens dedicados a busca puramente espiritual. Este é o guṇa que facilita a iluminação, por isso, o primeiro objetivo ensinado no Yogasūtra de Patañjali é aumentar o caudal de sattva, a fim de purgar gradualmente a natureza humana dos princípios rajas e tamas.
5. B. Bhattacharya, The World of Tantra, p. 32. Munshiran Manoharlal, 1988.
6. Gavin & Yvonne Frost, Ioga Tântrico, o Caminho Real para Elevação do Poder da Kuṇḍalinī. Bertrand Brasil, 1995.
7. Disponível na web em: www.kaulayoga.blogspot.com.
8. Energia produzida pela ascese e pela pratica de sublimação do fluído seminal por uma técnica chamada ūrdhvareta, i.e. fluxo ascendente do sêmen.
9. Veja meu artigo, co-escrito com minha esposa: Chinnamastā & o ideal Yogī de Autotranscendência, disponível na web em: www.malikayoga.blogspot.com.
10. Isto é, uma dūtī (sacerdotisa qualificada). Tal qual a mulher de um brâmane participa dos rituais védicos, a dūtī participa do kulācākra.
11. A primeira e a segunda se referem à carne e o vinho. A terceira a união sexual que traz a consciência da felicidade.
12. Os 3Ms são, respectivamente, māṁsa (carne), madya (vinho) e maithunā (cópula sexual orientada).
13. Prabhat Rainjan Sarkar, Um Guia para Conduta Humana, p. 35-6. Ānanda Mārga Publicações, 2001.
14. Mohandas K. Gandhi, Gandhi’s Health Guide, p. 145. Crossing Press, 2000.
15. Para um vislumbre deste tema, veja meu artigo Em Busca das Raízes Tântricas do Haṭhayoga, disponível na web em: www.kaulayoga.blogspot.com.
Referências:
BHATTACHARYA, B. The World of Tantra. Nova Délhi: Munshiran Manoharlal, 1988.
FEUERSTEIN, George. A Tradição do Yoga. São Paulo: Pensamento, 2001.
__________. As Virtudes do Yoga. São Paulo: Pensamento, 2009.
__________. Enciclopédia de Yoga. São Paulo: Pensamento, 1997.
__________. O Tantra Tradicional e o Neotantrismo. Artigo publicado em: Cadernos de Yoga, n. 02, 2004. Tradução de Pedro Kupfer.
__________. Tantra: a Arte do Êxtase. Rio de Janeiro: Nova Era, 1998.
__________. Uma Visão Profunda do Yoga. São Paulo: Pensamento, 2003.
FRAWLEY, David. Tantric Yoga and The Wisdom Goddesses. Délhi: 1999.
__________. Gods, Sages and Kings. Salt Lake City: Passage Press, 1991.
GANDHI, Mohandas K. Gandhi’s Health Guide. Freedom, California: Crossing Press, 2000.
KUPFER, Predro. Dicionário de Yoga. Florianópolis: Instituto Dharma, 2001.
__________. História do Yoga. Florianópolis: Instituto Dharma, 2001.
SARKAR, Prabhat Rainjan. Um Guia para Conduta Humana. Brasília: Ānanda Mārga Publicações, 2001.
SATI, Tarananda. Tantra Kaula: A Arte do Ritual e da Magia. São Paulo: Madras, 2006.
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