Introdução ao Sistema Śaiva da Caxemira
Por Fernando Liguori
Introdução
Tu que és o Supremo que transcende o abismo, Tu que és aquele que não teve início, O Único que penetras-te as secretas profundezas, Tu que descansa em tudo, Tu que és encontrado por toda parte, tanto móvel quanto imóvel, em Ti, Śambhu, eu tomo meu refúgio. (Abhinavagupta, Paramārthasāra, versículo 1)
Não existe nada que não seja Śiva, dizem as escrituras do Śaivismo da Caxemira. Esta é uma filosofia não-dualista cujo fundamento central é que toda Criação é uma Vibrante (spanda) Energia Consciente que se expressa em diferentes formas e nomes. O termo Śaivismo é derivado de Śiva,[1] a Realidade Última (Anuttara), a Consciência Suprema que revela-se em inúmeras formas e nomes, na medida em que é simultaneamente transcendente e imanente.[2]
O Śaivismo da Caxemira iniciou-se por volta do Séc. IX d.C. com Vasuguptācārya. Em sonho, ele fora instruído pelo próprio Śiva a encontrar uma série de ensinamentos grafados em uma rocha chamada Śaṁkaropala na montanha Mahādeva. Ao acordar, Vasuguptācārya foi até a montanha e ao tocar na pedra estes ensinamentos se revelaram. A pedra ainda se encontra na montanha, mas as inscrições não são mais visíveis aos olhos humanos, pois quando Vasugupta as memorizou elas desapareceram.[3] Neste sonho Śiva disse-lhe que o mundo havia perdido sua direção e necessitava de uma doutrina que pudesse colocar todos os seres no caminho do verdadeiro ensinamento.[4] Estes ensinamentos posteriormente ficaram conhecidos como Śivasūtra, um compendio de 77 sūtra-s[5] que dão instruções diretas a humanidade e são o coração – ou a semente – da filosofia e disciplina do Śaivismo da Caxemira.[6]
Kṣemarājācārya (975 a 1125 d.C.), discípulo direto de Abhinavagupta,[7] em seu comentário do Śivasūtra atesta o nascimento do Śaivismo da Caxemira como uma revelação em sonho conforme exposto acima. Ele translitera: Na montanha Mahādeva estão às doutrinas secretas inscritas em uma pedra. Recolhe deste lugar estas escrituras e ensine àqueles que merecem esta graça.[8]
Em termos religiosos e filosóficos, a grande importância destes Aforismos de Śiva consiste no fato de que eles foram revelados para contestar os efeitos do dualismo. Portanto o Śivasūtra é genericamente chamado de Śivopaniṣat-Saṅgraha, i.e. um compendio que contém a doutrina secreta revelada por Śiva. Esta escritura (āgama)[9] é a pedra filosofal do Śaivismo da Caxemira.
O sistema Śaiva de filosofia advaita (i.e. não-dual) e Yoga da Caxemira é genericamente conhecido como Śiva-śāsana ou Śivāgama (Śaivāgama).[10] A palavra āgama designa uma doutrina tradicional ou um sistema que comanda a fé. Este sistema também é conhecido como Trika-śāsana, Trika-śāstra ou Rahasya-sampradāya. As palavras śāsana e śāstra são muito significativas. Ambas contêm a raiz śāsa, que significa disciplina. Um śāstra ou śāsana na Índia nunca significou meramente uma exposição intelectual de um sistema em particular. É claro que ele expõe os princípios fundamentais de realidade mas ao mesmo tempo estabelece certas regras na base desses princípios, certas normas de conduta que devem ser observadas por aqueles que estudam aquele śāstra específico. Um śāstra não é simplesmente um modo de pensar, mas um modo de viver. A filosofia Śaiva da Caxemira é geralmente chamada de Trika-śāstra, por ser uma filosofia da tríade – (1) Śiva (2) Śakti (3) Nara, a alma limitada ou (1) para – o supremo (2) parāpara – identidade na diferença e (3) apara – diferença.[11]
Comumente entre os estudiosos o termo Trika-Śāstra tornou-se um sinônimo indelével de designação para o sistema Śaiva da Caxemira. Trika literalmente significa tríade, e fora cunhado em relação à síntese exposta por Abhinavagupta. O termo incorpora importantes significados Śaivas de acordo com algumas escolas:
1. Śiva (o Ser), Śakti (a Energia) e Nara (o indivíduo limitado);
2. Parā (não-dualidade), Aparā (dualidade) e Parāparā (a unidade na dualidade);
3. Pati (o Senhor Supremo), Paśu (o indivíduo limitado) e Pāśa (o encarceramento, a prisão).
4. As três principais características de Śiva: icchā (vontade), jñāna (conhecimento) e kriyā (realização);
5. Os três caminhos que levam o ser humano em direção ao Absoluto (Śiva): Śāmbhavopāya (a via divina), Śāktopāya (a via da energia) e Ānavopāya (a via do indivíduo);
6. Abheda (não-dualidade), Bhedabheda (não-dualidade com dualidade) e Bheda (dualidade);
7. Śiva (o Ser), Śakti (a Energia) e Aṇu (o indivíduo limitado).
Eu penso que o mais importante significado da palavra Trika para os yogī-s é a tríade Śiva-jīva-sādhanā que pode ser chamada de tríade Consciência-aprisionamento-yoga. O termo assim designa três pontos a serem explorados: 1. a natureza da Consciência (i.e. o Absoluto) e a criação do universo dentro da Consciência; 2. o aprisionamento, a contração da Consciência e a experiência limitada e sofredora e; 3. o sādhanā, a prática espiritual que livra o adepto da condição de aprisionamento. Portanto, Trika-Śāstra coloca ênfase no sādhanā, o aspecto prático ou yogī do Śaivismo da Caxemira.[12]
O Śaivismo ensina que o estofo básico do universo é consciência pura, e não matéria. Isso pode ser comparado à experiência onírica no qual a consciência do sonhador é o substrato fundamental de tudo o que se apresenta no sonho. A Consciência que subjaz o universo pode ser chamada de Deus. Aqui me refiro a Deus como o Absoluto, além de qualquer forma específica.
Por razões apenas conhecidas a Ele, Deus decide criar o universo e se transforma em muitos. Pelo Seu Poder, que é personificado como Seu aspecto feminino, Ele cria o universo em seu próprio Ser, Ele mesmo se torna uma alma individual pelo processo de contração. Embora ele apareça na Consciência, o mundo criado é real. O universo é na verdade a Consciência que vibra em diferentes freqüências, se transformando mais material e grosseiro na medida em que se densifica.
O ser humano não é nada além de Deus na forma contraída. Quando um indivíduo olha para dentro de si mesmo ele consegue perceber que possui as mesmas qualidades do Absoluto, embora esteja contraído e viciado. Deus possui perfeita vontade (icchā), perfeito conhecimento (jñāna) e perfeita habilidade para fazer (kriyā). O ser humano possui estes mesmos poderes em condições limitadas. Eles se apresentam como três nós dentro de seu ser.
O primeiro nó é a limitação da vontade. É a experiência humana individual que, no coração de cada um, aparece como um doloroso senso de separação, fraqueza e miséria. Este é o principal trauma de nascimento quando Deus se torna o indivíduo. A limitação do conhecimento é experienciada na mente. A mente humana experiencia a confusão e perdição na escuridão, portanto não consegue acessar a verdade. O terceiro nó é experienciado na região do umbigo e é sentida como um sentimento de frustração e falta de realização.
O Śaivismo nos pede que reconheçamos nossa similaridade com Deus e afinal nossa unidade com Ele. Esta tradição examina a condição humana minuciosamente como uma contração que nos move da condição divina para condição de seres humanos. Ela reconhece o poder de contração e embotamento que possibilita esta condição. O poder é real, mas ele é na verdade um aspecto de Deus. Uma das maneiras pelas quais Ele pode nos mostrar isso é através de sua linguagem. A linguagem que Deus utiliza em Seu verdadeiro estado – como Absoluto – expressa sua estática canção de unicidade, ao contrário da linguagem humana, que tende perpetuar a separação e a fraqueza.
Observando a situação humana, o Śaivismo entrega a solução, uma metodologia de superação das fraquezas e limitações humanas. Ele propõe uma compreensiva tecnologia interna designada a resgatar no ser humano sua inerente unicidade com Deus. Para isso, ele dissipa no praticante os nós de seu coração, de sua mente e de sua região umbilical por três métodos que serão abordados no decorrer do texto.
Tendo praticado profundamente estes métodos espirituais, o Śaivita (Śivaísta ou Śaiva, praticante do Śaivismo) reconhece que a divindade de seu Ser é a mesma Consciência que perpassa o mundo e todos os seres. Não existe mais a distinção entre o divino e o impuro, o espírito ou a matéria. Ele experiencia a liberdade total, brilhando com sabedoria divina, e radiante com amor universal.
Conceito Principal
Ao contrário de algumas escolas iniciáticas cujos ensinamentos afirmam que a Criação é uma ilusão criada pela mente, tendo por raiz a enganadora māyā (ilusão), que não possui início e é indescritível, e de outras escolas para as quais Deus é uma entidade separada e distante de tudo, a escola Trika do Śaivismo da Caxemira afirma que tudo é Deus, tudo é a Perfeição Suprema manifesta. Para poder explicar esta elevada percepção e experiência espiritual, os mestres desta filosofia, conhecidos como siddha-s ou seres perfeitos, valeram-se de outras duas importantes correntes filosóficas: o Sāṁkhya de Kapila e o Advaita Vedānta de Śaṅkarācārya.[13]
De acordo com a filosofia Sāṁkhya, toda a Criação provém de uma dualidade original conhecida como Puruṣa e Prakṛti, ou Espírito e Matéria (tanto sutil quanto física – tudo aquilo que é manifesto) e tudo é formado pela interação destas duas fontes distintas. Não há um Ser Supremo que governa tudo, mas apenas um aglomerado de Puruṣa-s onipresentes que se interpenetram umas as outras e que, de uma forma não explicada, mantêm-se completamente distintas da Natureza (Prakṛti) criada. Já o Advaita Vedānta vai mais além de uma dualidade entre Espírito e Matéria, afirmando que há um Poder Absoluto que cria e rege todas essas multiplicidades de nomes e formas. Esse Espírito Supremo é conhecido como Brahman, que é sem-atributos (nirguṇa), sem-forma (nirākāra), sem-características (nirviśeṣa) e não-agente (akarta). Para Śaṅkarācārya somente Brahman é real, e todas as diferenças e pluralidades são ilusórias:
brahma satya jagan mithyā jīvo brahmaiva nāparaḥ
Brahman é real, o universo é irreal, a alma individual é idêntica a Brahman.
Śaṅkarācārya também ensina que a Criação é apenas relativamente real (vyāvahārika-sattā), sendo uma superimposição sobre Brahman tal qual uma miragem de água é vista sobre um monte de areia no deserto: a água não existe realmente, mas apenas na mente de quem a vê. Brahman é eterno e imóvel e é impossível que possa se transformar em alguma outra coisa. Ele continua explicando que a origem de tudo o que existe é māyā, a ilusão, o seu Poder Lúdico, que é tanto real quanto irreal, e é este Poder que faz com que uma Criação passe a existir. Contudo, ainda assim, māyā é diferente do Brahman. Portanto, baseando-se nesses argumentos, os mestres do Śaivismo Trika da Caxemira afirmam que há ainda uma leve dualidade no Advaita Vedānta de Śaṅkarācārya.
A Tradição Trika constrói, por outro lado, um não-dualismo puro que assume uma singular Realidade chamada de Paramaśiva (ou Śiva Transcendental) que apresenta-se com dois aspectos, que são prakāśa (luz, o princípio de auto-iluminação, também chamado de Śiva) e vimārśa (experiência, o princípio de auto-percepção, também chamado de Śakti). Ambos são reais porque não pode haver algo separado e diferente uma vez que Deus é o Todo Absoluto. O Efeito não pode ser diferente da Causa. Desta maneira, Trika reconcilia o dualismo do Sāṁkhya de Kapila com o não-dualismo do Advaita Vedānta de Śaṅkarācārya.
A Natureza do Absoluto
e acordo com o Śaivismo da Caxemira, Paramaśiva possui dois aspectos, prakāśa e vimārśa. Estes dois aspectos não devem ser encarados como separados, mas constituindo uma unidade tal como o fogo e sua luz, a água e sua fluidez ou os dois lados de uma mesma moeda. Prakāśa é o Princípio original de auto-manifestação, o puro Eu, enquanto que vimārśa é a percepção e conscientização deste puro Eu. Na língua portuguesa, a atuação destes dois Princípios pode ser expressa pela expressão única e total de Eu Sou: é Deus manifestando-se e percebendo-se plenamente. Na Tradição Trika, vimārśa é o Princípio responsável pela manifestação, sustentação e reabsorção da Criação, recebendo assim, o nome de Paraśakti, Poder Supremo. Assim, a Realidade Suprema ou Paramaśiva não é apenas a Consciência Universal que Cria e rege o universo, mas é também o Poder Supremo que se revela e existe em toda a Criação. E por esta razão é dito que Deus é ao mesmo tempo Transcendente e Imanente.
Os mestres da tradição Trika explicam que dentre todos os infinitos poderes e atributos de Paramaśiva apenas cinco são fundamentais para nosso estudo e compreensão:
1. Cit-Śakti – Poder da Consciência Suprema. É outro nome para prakāśa. Também é chamado de Śiva;
2. Ānanda-Śakti – Poder do Êxtase Supremo. É vimārśa e também é chamado de Śakti;
3. Icchā-Śakti – Poder da Vontade Suprema. É Poder de livre decisão para Criar;
4. Jñāna-Śakti – Poder do Conhecimento Supremo. É a Onisciência do Absoluto;
5. Kriyā-Śakti – Poder do Ato Divino. É a habilidade do Ser Supremo de assumir e controlar toda e qualquer forma.
Durante o processo de Criação, o próprio Paramaśiva, por intermédio de sua Śakti Suprema e por seu Svātantrya, livre vontade ou independência, aceita reduzir-se a níveis cada vez mais inferiores e densos de Energia. Esse processo é conhecido como pariṇāma, alteração, transformação, e é realizado em 36 níveis diferentes conhecidos como Tattvas, princípios. E nesse processo de densificação todas essas cinco Śaktis acima citadas se convertem em poderes limitados no interior do ser corporificado, fazendo-o acreditar que é um ego transitório ao invés de aceitar que é a Presença Divina em plena ação.
A Percepção do Absoluto no mundo
que é e como é a origem da Criação? De que forma tudo passou a existir? O Sāṁkhya responde essas indagações dizendo que a Criação é o resultado da interação entre Puruṣa e Prakṛti, ou Espírito e Matéria. Contudo em seus ensinamentos não é dada nenhuma razão que explique o por quê desta união. No Vedānta há a aceitação de que existe um Poder Superior, um Agente Inteligente que coordene todo o processo, mas igualmente não mostra aonde nem como o impulso original surge.
Na Tradição Trika há uma colocação muito importante sobre o por quê da Criação. Deus, ou Paramaśiva, é svātantrya, auto-independente, livre. A Criação é vilāsa, um jogo, uma brincadeira inocente d’Ele. Compreender que tudo é um jogo, é permanecer centrado na Vontade Divina. Em êxtase transcendental, Śiva e Śakti criam infinitos universos tal como uma criança que cria seus personagens pela própria felicidade que isto lhe dá.
Esse Poder Inicial decorrente de Sua svātantrya recebe o termo técnico na Tradição Trika de Spanda, vibração, pulsação. Os físicos de hoje já aceitam, por meio de suas descobertas científicas, que tudo o que há no Universo é vibração, porém, vibrando em diferentes níveis de freqüência, explicando que o que difere uma música de uma pedra são apenas os níveis vibratórios diferentes em que se encontram. Porém, o que muitos físicos ainda não entenderam é que esta Energia Onipresente que vibra em todas as coisas, é, além de Poder Infinito, também Consciência ou Inteligência Infinita. E isto se aproxima do que chamamos de Śakti, o Poder de Ação do Absoluto. Quando o Supremo resolve Criar, é Seu Poder, conhecido como Śakti, que se manifesta, então, em infinitas formas, aparecendo como diferentes Universos, deuses, homens, plantas, animais e tudo o que existe, dentro e fora de nós. E assim, o sistema Trika continua ensinando que Deus é ao mesmo tempo Transcendente e Imanente, pois tal como a chama de uma vela acende outra sem ser diminuída, o Absoluto mantém seu aspecto Puro e Imutável além de toda a Criação, enquanto que é Isto que se revela em todas as coisas, nomes e formas, pois o efeito não pode ser diferente de sua causa, ou, em outras palavras, o efeito não pode existir separado ou independente de sua causa.
Swāmi Muktānanda Paramahansa, um siddha dos tempos modernos, descreveu e ensinou sua própria experiência:
O aspecto funcional de Cit, os raios da Luz da Consciência, estão presentes em todas as direções, em todo lugar. [...] Paraśiva é a alma do Universo – supremamente puro, completamente cheio, o Ser consciente. [...] Não existe nada separado de Śiva. Não existe outro além de Śiva. Tudo o que existe é Śiva. Estar ciente de Paraśiva é ser destemido e livre no Ser. Não existe nada que não seja Śiva; não há lugar que não seja Śiva; não existe tempo que não seja Śiva; não há estado que não seja Śiva. Nem um simples pensamento pode surgir separado de Śiva. Estar ciente disso é estar ciente de Śiva. Aqui, lá, para tudo o que você olha, tudo o que você pensa, é Śiva.
A Liberação
o ponto de vista da Realidade Suprema, não há nenhuma limitação ou imperfeição. Contudo, vimos que Deus, por livre vontade ou svātantrya, assume em Si próprio, limitações diversas, condensando e dissimulando Sua energia pura e perfeita, quebrando sua Unidade Suprema em inúmeras formas e nomes, gerando a consciência da dualidade, que afirma que somos seres separados, limitados e que, de uma forma ou outra, nos faz pensar que Deus está em algum lugar distante e separado de nós. Contudo, esse é seu vilāsa, Seu passa-tempo. Ele reduz Sua Consciência Divina somente para ter que novamente reencontrá-la. Este processo de contração e expansão da Consciência Suprema é comparado ao piscar de olhos do Supremo, que é nimeṣa (fechar) e unmeṣa (abrir). Nimeṣa é o recolhimento da Consciência Divina e unmeṣa é a expansão para sua condição original. Ambos estes estados estão contidos em Śiva simultaneamente.
Contudo, como se desenvolve este processo de Contração? Isto é feito por intermédio de Sua Śakti, Seu Poder Supremo, que se manifesta como māyā, i.e. magia.[14] Por meio desta māyā, o Poder e Inteligência Infinitos são reduzidos a meras frações, surgindo o ser individual, a alma limitada, presa ao karma, à dualidade e às leis materiais. Deve-se saber que, para a Tradição Trika da Caxemira, ignorância não significa falta de conhecimento, mas conhecimento limitado ou incompleto, pois conhecimento é um atributo da consciência. A questão é como desenvolver o conhecimento correto e a purificação de todos os aglomerados mentais adquiridos na jornada de evolução de volta à Pureza original.
De acordo com o sistema Trika há três meios pelos quais uma alma limitada, ou jīva, pode alcançar mokṣa, a libertação espiritual, que nesta tradição, é sinônimo de completa perfeição espiritual, beatitude ininterrupta, amor absoluto e percepção contínua da unidade entre todas as coisas e Śiva. Para um ser liberado, um Siddha, toda a Criação é o pulsar da Consciência Divina. Para onde quer que olhe, vê apenas Śiva. Os sábios contam que até mesmo a conversa mais casual de um ser assim, produz mais benefícios do que as palavras dos Vedas e são mais poderosas que qualquer mantra, pois provêm diretamente da fonte mais íntima: o Ser interior. Para ele, a experiência de unidade com Deus não é mais sentida apenas na meditação silenciosa com os olhos fechados, mas também em suas atividades diárias, enquanto é um chefe de família, professor ou aluno. A antiga experiência de papo’ham deho’ham, i.e. sou pecador, sou um corpo limitado foi definitivamente substituída por purno’ham śivo’ham, ou seja, sou perfeito, sou Śiva.
Estes três caminhos ou upāyas são aparentemente divididos porque referem-se a níveis diferentes de preparação espiritual de cada praticante. O primeiro e mais elevado é śāmbhavopāya. O segundo, para praticantes de nível médio é śāktopāya. O terceiro, tido como inferior, é āṇavopāya.
Āṇavopāya é o início da jornada, indicado para aqueles que ainda têm um forte desejo pelos prazeres mundanos ou são fortemente ligados à ilusão de dualidade. Aqui incluem-se a grande maioria das práticas espirituais conhecidas, como controle da respiração, focalização em determinadas áreas do corpo ou em determinados objetos, contemplações diversas, vocalização de mantras e textos, rituais, adoração de ídolos, e afins. Tem como finalidade preparar o corpo e purificar a mente para os níveis mais avançados. Aqui desenvolve-se o amor a Deus e nutre-se o anseio pela realização espiritual. Com o passar da prática, o aspirante já está mais livre de seus sentimentos e desejos inferiores e passa a ter uma clara percepção de que Deus realmente habita o seu interior. Práticas como rituais e adoração de ídolos, embora não sejam desvalorizadas, são postas de lado e passa-se a compreender que o verdadeiro ídolo a ser adorado habita em seu coração e que estudos de livros e até mesmo das escrituras servem apenas para indicar, mas não para dar a experiência. Então, o aspirante passa para o segundo nível, que é śāktopāya.
Neste nível, indicado para praticantes de nível médio, a atividade mental é o principal fator. Deve-se meditar e contemplar idéias como eu sou Śiva, tudo é Śiva, etc., pelo qual o praticante adquire firmeza mental e clareza para compreender sua Identidade Verdadeira. Durante suas práticas tais como japa ou adoração mental, deve-se ter em mente que na Realidade não há diferença entre aquele que adora e aquele que é adorado, bem como o próprio ritual da adoração, pois tudo é Śiva. Gradualmente o senso de dualidade do buscador vai sendo vencido e passa então a entrar num sentimento maior de Unidade com Śiva, subindo então para o terceiro e mais elevado caminho, chamado de śāmbhavopāya, que é somente para os aspirantes mais adiantados. Este termo refere-se a Śambhu, que é outro nome para Śiva e significa benevolente, prazeroso. Este é o nível no qual o aspirante não usa técnicas tidas como inferiores e dualistas, como visualizações, mantras, prāṇāyāmas, etc. Não que estas técnicas não sejam boas, mas que neste nível a mente do praticante deve ser tão pura que permaneça apenas consciente de Sua natureza mais íntima, além de pensamentos, no estado de nirvikalpa (sem formas). Este caminho envolve a prática de manter a constante consciência de que o universo nada mais é que Śiva. Deve haver apenas a consciência do puro Eu que está em todas as coisas, num estado de mente completamente serena, mas ativa, seja em silêncio ou durante as atividades rotineiras do mundo. Neste estágio, o praticante já é quase considerado um ser liberado.
E finalmente, quando a mente e o espírito deste praticante estão completamente limpos, surge um quarto caminho, tido como secreto e que é chamado de anupāya. Em essência, este não é mais um caminho, pois como o próprio nome indica ele é isento de meios (o prefixo an indica negação). Quando a alma deste praticante alcança anupāya, ele já está completamente liberto, sem karmas, completamente livre da dualidade e de todo o mal que isto cria. Aqui ele reconhece que toda a Criação é permeada pela Sua Consciência. Este é o estado dos liberados em Deus, preenchidos com a realização de que nunca foram ignorantes e inexplicavelmente nunca foram liberados. Eles sabem que nada foi abandonado e nada foi ganho. Tudo o que há para se dizer é que Śiva e a Criação é seu próprio parque de diversões.
A Criação do Universo
A Consciência-Energia Absoluta, por sua livre e própria vontade, é a causa do surgimento, manutenção e reabsorção (e também a causa da experiência e da libertação) do universo. (Pratyabhijñāhṛdayam, I )
Como vimos anteriormente, o Śaivismo da Caxemira ensina que a origem de todo universo é Śiva, a Consciência Suprema, que é Onipresente, Perfeita, Ilimitada e que cria através de Seu poder conhecido como Śakti.
Para o Śaivismo da Caxemira o processo no qual a Consciência infinita se condensa em tudo aquilo que chamamos de Universo ou Criação é conhecido como pariṇāma, ou alteração. Esse processo é realizado em etapas conhecidas como tattvas, ou níveis de realidade, nos quais o Um aos poucos vai se desdobrando em muitos, porém sem perder a sua identidade original.
Os conceitos de tattvas e pariṇāma já existiam antes do advento do Śaivismo da Caxemira, sendo o sistema Sāṁkhya quem mais se dedicou a este assunto, se tornando o ponto de origem para outras especulações e debates por parte de outras escolas filosóficas posteriores, como o Advaita Vedānta. Os mestres do Śaivismo apenas fizeram algumas alterações e correções quanto ao modelo apresentado pelo Sāṁkhya, adaptando-o à suas próprias experiências e realizações espirituais.
Antes de avançarmos na apresentação destes níveis, o primeiro termo a ser explorado é Spanda, vibração ou pulso, que é a forma na qual os mestres desta escola identificam a origem e a manutenção de todo o Universo. Paramaśiva não é akarta, i.e. inativo, pois para o Śaivismo o próprio fato de Deus ser cônscio de si mesmo já é ação, ao contrário de alguns filósofos que afirmam que o Absoluto é apenas uma massa de Consciência Infinita que é completamente a parte de qualquer atividade. E é justamente a vibração ou Spanda produzida por esta autopercepção é que dá início ao processo de evolução do Universo.
O processo de Evolução
Esse processo de evolução dos 36 tattvas a partir do Todo insondável e informe que é Paramaśiva é descrito como pariṇāma, que é literalmente a capacidade do Absoluto de se transformar em qualquer coisa que desejar. Isso é simploriamente exemplificado na alegoria do leite que se transforma em coalhada para depois se transformar em queijo. Ou seja, algo sutil que aparentemente se transforma em algo cada vez mais denso, embora no interior seja o mesmo produto.
Paramaśiva é simultaneamente transcendente quanto imanente, i.e. mesmo no processo de contração e limitação, Ele mantém-se simultaneamente perfeito e completo em si mesmo, além de qualquer tipo de dualidade.
Para o Śaivismo da Caxemira há ao todo 36 tattvas, que estão didaticamente separados em três grupos distintos: 1. śuddha ou puros; 2. śuddhāśuddha ou puros e impuros; e 3. āśuddha ou impuros.
Śuddha Tattvas
Este primeiro grupo é formado pelos tattvas considerados śuddhas ou puros, pois neles ainda não há a ilusão de separação entre sujeito e objeto – que ocorrerá nos tattvas posteriores. Em outras palavras, são as manifestações de Śiva acima (ou antes) da manifestação de māyā. Estes princípios puros são conhecidos como pañcakṛtya (as cinco principais manifestações cósmicas), e são expressa no mantra Om Namah Śivaya:
0. Paramaśiva (ou a Realidade Última), está além de todas as realidades, é a Realização mais elevada e o Princípio de tudo. É Cit, a energia consciente do Absoluto e Parasamvit, a Consciência Suprema. É Maheśvāra, o Supremo Controlador do Universo, classificado como atattva, i.e. sem atributos, além dos tattvas ou princípios da evolução. Como Perfeição Absoluta (niśkala), é destituído da manifestação da energia da criação (Śakti), portanto, o Ser Imutável antes de gerar a manifestação.
1. Śiva (ou o Auspicioso) e 2. Śakti (ou o Poder, Energia) são os dois princípios inerentes de Paramaśiva, respectivamente o aspecto masculino e feminino do Absoluto. Śiva ou prakāśa, é o aspecto da luminosidade e da passividade, no qual predomina cit-śakti, o Poder da Consciência do Eu. Śakti ou vimārśa, é o aspecto do poder e da atividade, na qual predomina ānanda-śakti, o Poder da felicidade. Não se deve encarar estes dois princípios cósmicos como duas entidades separadas ou princípios separados. Um é parte do outro e está no outro, tal como o calor está no fogo. Essa aparente dualidade serve apenas para fins didáticos facilitando a compreensão de todo o processo que irá se desenrolar no surgimento dos tattvas restantes.
3. Sadā-Śíva (Eternamente Auspicioso) ou Sadākhyā (o Ser, da raiz sad) é a manifestação subjetiva do Eu, com acentuada experiência do isto ou o Universo. Neste nível surge icchā-śakti, que é Poder da vontade, ou a intenção de originar uma Criação.
4. Īśvara (Senhor) é a manifestação objetiva. Neste nível surge jñāna-śakti, ou o Poder do conhecimento, o nível das idéias divinas no qual estabelece-se o plano da Criação.
5. Sad-Vidyā (Conhecimento do Ser) ou Śuddhavidyā é o correto conhecimento do mundo. Aqui surge kriyā-śakti, o Poder da ação, pois existindo a intenção e a inteligência basta apenas a execução do plano.
A Primeira Impureza
Um segredo: antes de Paramaśiva continuar nos tattvas seguintes, algo muito estranho surge: acontece a primeira contração de consciência do Absoluto. Essa contração é conhecida como mala, i.e. impureza. Esse primeiro mala (são três ao todo), é o responsável por iniciar o processo que fará o Absoluto sem forma tomar uma forma limitada, recebe o nome técnico de āṇava (da raiz aṇu, o ser limitado). Esse é o primeiro passo do esquecimento e do sono da alma do Criador.
Os cinco primeiros níveis ou aspectos primários do Absoluto representam sinteticamente os primeiros passos para a Criação, demonstrando Seus cinco principais podereis, isto é, cit, ānanda, icchā, jñāna e kriyā, ou onipresença, beatitude, vontade, onisciência e onipotência. Veremos agora nos próximos tattvas o processo pelo qual esses poderes do Absoluto serão reduzidos a meras frações.
Śuddhāśuddha Tattvas
No Tantra, ao qual o Śaivismo da Caxemira está inserido, não se tem a mesma atitude verticalista que alguns grupos espiritualistas têm ao dizer que o mundo é miséria e sofrimento. Para um adepto do Śaivismo da Caxemira, não há problema algum em dizer que Deus é o mundo e o mundo é Deus, pois o efeito (o mundo) não pode ser diferente de sua causa (o Absoluto). Comenta-se isso, pois, nesta tradição é o próprio Senhor Absoluto que aceita limitações em Si próprio. A ilusão e a libertação são apenas dois aspectos de uma mesma moeda que está completamente sob domínio do Criador.
Esses princípios puros e impuros nada mais são que Śakti agora em uma forma contraída, fazendo o trabalho de igualmente velar e contrair o seu bem-amado Śiva.
6. Māyā (ou a mensuradora)[15] surge o segundo mala, responsável pelo processo de dualização da consciência. Seu nome é māyīya e significa literalmente que pertence a māyā. Sob o domínio destes dois malas, Śiva e Śakti contraem-se e dividem-se em dois. O resultado disso será visto logo em breve.
Māyā em essência é uma forma contraída de Śakti ou o Poder criativo. Já sabemos que Śakti em seu aspecto puro é o poder que percebe e reflete a luz de Śiva em toda a Criação. Mas agora neste nível, essa percepção e reflexão se dá em uma maneira distorcida. Isso é feito pelos cinco kañcukas,[16] i.e. couraças ou invólucros psicológicos, que servem apenas para esconder ou encobrir os cinco poderes do Absoluto. Cada um desses kañcukas é considerado um tattva diferente.
7. Kalā (ou parte) é um véu que vela a onipotência de Paramaśiva criando a falsa noção de que há coisas que são possíveis de realizar e outras que são impossíveis.
8. Vidyā (conhecimento) é um véu que vela a onisciência de Paramaśiva criando a falsa noção de que há coisas que são possíveis de conhecer e outras que são impossíveis.
9. Rāga (apego) é um véu que vela a vontade de Paramaśiva, criando inclinações e desejos inferiores, notadamente o apego e a aversão, i.e. deseja-se coisas agradáveis e repele-se o que não é agradável.
10. Kāla (tempo) é um véu que vela a Beatitude de Paramaśiva gerando o medo do tempo, da velhice e da morte.
11. Niyati (necessidade) é um véu que vela a Onipresença de Paramaśiva gerando a noção de limitação espacial e temporal.
Nesse ínterim, surge mais uma impureza inevitável como resultado da soma de āṇava-mala com kalā-kañcuka. Essa nova impureza chama-se kārma-mala, que é a noção errônea de que somos seres limitados, realizando ações igualmente limitadas – boas ou más – e que nos farão entrar em uma roda interminável de ação e reação, o que em outras palavras é o karma. Assim, resume-se a seguinte equação: āṇava-mala + kalā-kañcuka = kārma-mala. Em outras palavras: sou imperfeito + realizo ações limitadas = eu realizo tanto boas quanto más ações.
Aśuddha Tattvas
O que acontece após Paramaśiva passar por tantas contrações e limitações diferentes? Obviamente acontece uma redução considerável de energia, poder e consciência. O que era infinito agora fica reduzido a uma mera fagulha que se esforça por se tornar mais uma vez uma grande fornalha cósmica. Isso pode ser figurado na imagem do transformador elétrico, que recebe energias muito altas e vai diminuindo-as até chegar a um ponto aceitável para serem utilizadas por nossos pequenos aparelhos domésticos.
Qual a finalidade de reduzir a Sua energia? Que tipo de aparelho será utilizado? Os tattvas seguintes são a resposta a estas perguntas. Nestes tattvas há o completo velamento da luz e da verdade suprema, gerando a dualidade. Por isso os próximos princípios são chamados de aśuddha, i.e. impuros.
12. Puruṣa (o homem) ou Aṇu (o átomo), a alma individual. O aspecto permanente de nossas vidas efêmeras. Este é kṣetrajña, o percebedor do campo de que falam muitas escrituras hindus. Contudo, não é o mesmo Puruṣa de que falam o Sāṁkhya e o Advaita Vedānta, para os quais este é o próprio Absoluto manifesto. O puruṣa do Śaivismo da Caxemira se assemelha ao que no Ocidente é conhecido por alma, ou seja, é apenas um princípio interior composto de alguns instrumentos sutis, como o ego, a mente e o intelecto, mas que sempre enxerga um outro, i.e. vive na ilusão de dualidade e diferença.
Conforme vimos anteriormente, há uma grande diferença no ponto de vista entre essas escolas citadas e o Śaivismo da Caxemira. O Sāṁkhya ensina que o Universo inteiro nada mais é que a manifestação de dois princípios conhecidos como Puruṣa e Prakṛti, ou alma e matéria. Ambos são completamente distintos e irreconciliáveis, pois, nesta doutrina, Puruṣa anseia unicamente desvencilhar-se de Prakṛti, pois ela é apenas um campo de dor e sofrimento.
Já no Advaita Vedānta, o Universo ou Prakṛti é apenas um fantasma, uma ilusão super-imposta provocada por māyā sobre Brahman. Não há ligação entre Brahman e Prakṛti, sendo que a criação é apenas uma evolução aparente (vivarta) como uma névoa sobre o mar.
Assim, para esses dois sistemas o Ser interior é completamente à parte de todo o Universo, sendo não-agente (akārta) e apenas testemunha (grāhaka). Ao contrário, o Śaivismo da Caxemira dá uma explicação mais racional ao mostrar que essa dualidade espírito-matéria faria com que a vida não fosse realmente possível, pois como podem existir duas coisas distintas num mesmo lugar? Tanto aquilo que é sutil, quanto aquilo que é denso difere apenas entre as suas faixas vibratórias, tendo como origem o mesmo Deus Absoluto.
13. Prakṛti (a matriz) do universo. O imenso conjunto de inúmeros planos e sub-planos que vão desde o mais denso e temível dos infernos até o mais elevado e belo mundo dos deuses. Prakṛti é o campo de percepção, aquilo que é percebido e sentido pela alma humana, o puruṣa. Embora o termo seja igual, prakṛti é também diferente do que ensina o Sāṁkhya e o Advaita Vedānta, pois (além do que já discutimos anteriormente) nestes dois sistemas há apenas uma prakṛti para toda a imensidão de puruṣas que a habitam, ou seja, um único barco pra todos os marinheiros.
Por sua vez, o Śaivismo da Caxemira aprofunda essa teoria ao afirmar que além de uma única prakṛti para todo o conjunto de almas viventes, cada alma tem individualmente a sua própria. Isto é óbvio, pois o próprio conjunto de mente, ego, intelecto e o corpo físico que pertence temporariamente a uma alma nada mais é que uma manifestação de prakṛti.
Na realidade, quem são puruṣa e prakṛti? Nada mais são que Śiva e Śakti em formas contraídas, resultado de māyā e seus véus. A diferença é que Śiva não está mais com seus poderes supremos e Śakti está incapaz de perceber a Luz divina e refleti-la.
Do que é feita prakṛti? Prakṛti é constituída pelos três guṇas conhecidos como tamas (inércia), rajas (paixão) e sattva (equilíbrio), sendo estes os princípios energéticos que darão forma e existência a tudo o que preencherá o Universo. Contudo, de onde vieram esses guṇas? Eles são o resultado das contrações provocadas sobre os poderes divinos nos tattvas 3, 4 e 5 através dos malas e kañcukas anteriormente citados:
3 – Sadā-Śíva tattva: icchā-śakti transforma-se em rajas.
4 – Īśvara tattva: jñāna-śakti transforma-se em sattva.
5 – Sad-Vidyā tattva: kriyā-śakti transforma-se em tamas.
Em sua forma original – anterior a formalização da Criação que estará ocorrendo a partir de agora – esses três guṇas estão em perfeito equilíbrio dentro de prakṛti. No momento em que esses três guṇas saem desse equilíbrio original fazendo com que haja maior predominância de um sobre os outros, a Natureza, em suas mais variadas formas surge.
As três primeiras manifestações do desequilíbrio dos guṇas em prakṛti formam um conjunto chamado antaḥkaranā ou órgão interno sutil, que é composto pelos tattvas 14 a 16.
14. Buddhi (intelecto) tem a predominância de sattva (contração de jñāna-śakti – o poder do conhecimento). É o aspecto da inteligência do antaḥkaranā, pois funciona como um espelho que reflete o Ser interior. Também funciona como uma biblioteca que armazena todas as informações colhidas durante as existências de uma alma e assim é capaz de fazer distinções como: isto é uma caneta ou isto é um lápis. De buddhi surge o próximo tattva.
Buddhi é a inteligência verificadora (vyavasāyātmikā). Os objetos que se refletem em buddhi são de suas classes: a) Externos: objetos observados através dos olhos como p.e. imagens; b) Internos: imagens construídas através dos saṁskāras.[17]
15. Ahaṁkāra (o ego) tem a predominância de rajas (contração de icchā-śakti – o poder da vontade). É o aspecto criador do antaḥkaranā, pois é uma massa de impressões recebidas em todas as existências de uma alma, funcionando como as sementes da grande maioria dos pensamentos, formando assim o caráter e o destino.
16. Manas (a mente) é manifestação de ahaṁkāra, pois este precisa de uma mente para controlar os jñānendriyas (poderes de percepção) e os karmendriyas (poderes de ação) que ainda não se manifestaram. Tem a predominância de tamas (contração de kriyā-śakti – o poder da ação). É o aspecto ativo, porém cego de antaḥkaranā por ser composto de uma turbulência de pensamentos oriundos das atividades sensoriais.
Os próximos cinco tattvas recebem a predominância sattva de ahaṁkāra e recebem o nome de jñānendriyas (poderes de percepção), pois são os cinco poderes (indriyas) de percepção ou conhecimento (jñāna) que a mente utiliza para reconhecer o universo à sua volta – bem como o seu interior também. Esses poderes não são os órgãos físicos, mas as suas matrizes em forma sutil.
17. Śrotra ou o poder da audição.
18. Tvak ou o poder do tato.
19. Cakṣus ou o poder da visão.
20. Jihvā ou o poder do paladar.
21. Ghrāṇa ou o poder da olfação.
Os próximos cinco tattvas recebem a predominância rajas de ahaṁkāra e recebem o nome de karmendriyas (poderes de ação), pois são os cinco poderes (indriyas) de ação (kārma) que a mente utiliza para agir no universo à sua volta – bem como no seu interior também. Esses poderes não são os órgãos físicos, mas as suas matrizes em forma sutil.
22. Vāk (fala) ou o poder da comunicação.
23. Pāṇi (mão) ou o poder da manipulação.
24. Pāda (pé) ou o poder da locomoção.
25. Pāyu (ânus) ou o poder da excreção.
26. Upastha (genital) ou o poder da procriação.
Como os jñānendriyas e karmendriyas, os tanmātras (elementos sutis), surgiram do aspecto tamas de ahaṁkāra e servem como moldes para a percepção da mente no universo de múltiplas formas, nomes e cores. O nome tanmātra literalmente significa simplesmente (mātra) aquilo (tat) e refere-se ao fato de que um tanmātra é apenas algo sem nenhuma diferenciação em particular, sendo apenas uma forma de medida comparativa que estabelece padrões separados. P.e. rūpa-tanmātra é apenas uma cor paterna, e não uma cor em particular como o preto, branco, azul etc.
27. Śabda (som) ou o potencial para a percepção auditiva.
28. Sparśa (toque) ou o potencial para a percepção tátil.
29. Rūpa (cor) ou o potencial para a percepção visual.
30. Rasa (gosto) ou o potencial para a percepção gustativa.
31. Gandha (aroma) ou o potencial para a percepção olfativa.
Finalmente surgem as partículas sutis que formarão todas as coisas perceptíveis aos órgãos dos sentidos na existência em um dos diversos planos do universo. Essas partículas sutis recebem o nome de mahābhūtas, i.e. grandes (mahā) elementos (bhūta) e são formados pelos cinco tanmātras explicados acima. Note que eles são apenas elementos, i.e. não são o objeto em si.
32. Ākāśa (éter) ou o espaço sutil que preenche todo o universo manifesto.
33. Vāyu (ar) ou o princípio gasoso.
34. Agni (fogo) ou o princípio do calor e brilho.
35. Āpas (água) ou o princípio da liquidez.
36. Pṛthivī (terra) ou o princípio da solidez.
Conclusão
Toda essa teoria foi desenvolvida após muitos séculos de intenso estudo das escrituras (Śaivāgamas) e principalmente dedicação à meditação e aos seus mais elevados estados de consciência espiritual. Assim, esses tattvas funcionam como uma espécie de mapa espiritual, cuja principal finalidade é que seus praticantes possam:
a) compreender pelo menos em nível intelectual que a Criação nada mais é que uma forma condensada do Poder supremo, ou Śakti;
b) compreender que é Deus quem assume em Si mesmo formas diferentes de contração;
c) compreender que há apenas um único Poder no Universo, i.e. Deus;
d) compreender que a aparente dualidade que nos separa uns dos outros e de Deus é apenas ilusória e transitória;
e) compreender que a Criação é um Jogo divino;
f) compreender que nos processos mais sutis de meditação esses tattvas são experimentados pelo praticante;
g) perceber em seu íntimo: iti śivam – tudo isto é da natureza de Deus.
Vasuguptācārya em seu Spandaśāstra disse:
Aquele que continuamente percebe o universo inteiro como um jogo da Consciência universal atingiu realmente a Realização do Ser; ele está liberado neste corpo.
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Notas:
[1] Quando nos referimos ao termo Śiva estamos considerando seu sinônimo, i.e. Consciência Universal, Consciência Cósmica, Realidade Última, uma forma impessoal de Śiva. A mitologia das escrituras hindus como os Purāṇas e diversas lendas populares trazem um considerável compendio de informações para que todo buscador encontre uma forma de Śiva pessoal, coberto de cinzas, envolto por rudrakṣamālās, circundado por serpentes, com o Ganges escorrendo de sua cabeça. Essa é uma imagem pictórica de Śiva: o yogī boêmio exaltado em poder e glória transcendental. Nos pūjās devocionais os mestres Śaivas visualizam esta forma pessoal de Śiva. Neste texto nos referimos à forma impessoal.
[2] Esta Realidade Última no Advaita Vedānta de Śrī Śaṅkarācārya é conhecida como Brahman.
[3] Há três teorias que dizem respeito à revelação do Śivasūtra a Vasugupta: 1. Kallaṭa, no Spandavṛtti, diz que Śiva ensinou o Śivasūtra num sonho a Vasugupta, que morava na montanha Mahādeva, no vale do rio Harvan, atrás dos campos de Shalimar, próximo a Śrīnagara; 2. Bhāskara diz, no seu Vārtika (comentário) do Śivasūtra, que ele foi revelado a Vasugupta durante um sonho por um siddha (um ser perfeito semi-divino); 3. Kṣemarāja, no seu comentário (Vimārśinī), sustenta que Śiva apareceu para Vasugupta num sonho e disse: Na montanha Mahādeva, a doutrina secreta está inscrita numa pedra. Busque ali a doutrina e ensine àqueles que merecem a graça. Quando acordou, Vasugupta foi ao local e, com um mero toque, uma pedra virou e então ele encontrou o Śivasūtra inscrito. São os seguintes pontos em comum com relação às teorias de descobrimento do Śivasūtra. 1. Não há um autor humano dos sūtras. Eles se originaram a partir de Śiva; 2. Eles foram revelados a Vasugupta. Se eles foram ou não revelados a ele por Śiva, em um sonho ou por um siddha, ou se eles foram encontrados numa pedra a pedido de Śiva, são questões que são irrelevantes para o objetivo principal da revelação.
[4] The Yoga of Kashmir Shaivism, Swami Shankarananda, p. 44. Motilal Banarsidass, 2006.
[5] Literalmente, fio, cordão, aforismo. Prosa concisa e enigmática na qual aparece redigida uma grande parte dos textos filosóficos do hinduísmo. Um sūtra é uma composição de afirmações aforísticas que, unidas, dão ao leitor um sentido como que de um fio ou cordão com que amarrar todas as idéias importantes que caracterizam o sistema.
[6] Os outros manuscritos e escrituras deste sistema são comentários do Śivasūtra ou expansões dele.
[7] Abhinavagupta revitalizou a Tradição Trika. Venerado por muitos como uma encarnação divina e um dos maiores gênios da Índia, este mestre deixou um vasto legado literário, abrangendo inúmeros campos do conhecimento humano. Como a codificou, a Tradição Trika representa o clímax de sua obra. Ele foi um dos mais notáveis ācārya-s da filosofia Śaiva. A partir de referências em seus Tantrāloka e Parā-trīśikā-Vivaraṇa, viveu na Caxemira nos Sécs. X & XI d.C. Um de seus antepassados mais remotos foi um famoso brâmane, Attrigupta, que viveu em Autarvedi, antigo nome da região situada entre o Ganga e Yamuna. Attrigupta, um grande preceptor Śaiva, foi convidado pelo rei Lalitāditya, que reinou no Séc. VIII d.C. a se estabelecer na Caxemira. Para seu estabelecimento, uma espaçosa casa foi construída por ordens do rei nas margens do Jhelum (Vitasta). Muitas gerações depois um dos seus descendentes, Varāhagupta, tornou-se um grande estudioso da filosofia Śaiva. Seu filho, Narasimhagupta, também conhecido como Chukhala, pai de Abhinavagupta, tornou-se também um grande preceptor Śaiva. Ainda, como um dos maiores mestres de seu tempo, Abhinavagupta desenvolveu uma nova forma de tantrismo na região da Caxemira, incorporando a tradição Kaula os ensinos do Śivagupta (Śivasūtra) e da tradição Krama. Segundo a lenda, Abhinava se retirou no final de sua vida com 1200 discípulos para uma remota caverna e nunca mais foi visto.
[8] Śiva Sūtras, The Yoga of Supreme Identity (Jaideva Singh), pp. xvi. Motilal Banarsidass, 2006. Esta é uma reimpressão da edição de 1979 da tradução em inglês do Śivasūtra Vimarśinī de Kṣemarāja.
[9] Obras consideradas como a revelação da divindade.
[10] Escrituras Śaivas. O termo Śaivāgama Yoga denomina o Yoga do Śaivismo da Caxemira ou Śaivismo Trika da Caxemira conforme os códices do Śivasūtra.
[11] No último capítulo de seu Tantrāloka, Abhinavagupta menciona que dois preceptores estavam qualificados a ensinar o Śaivismo: Lakulīśa e Śrīkaṇṭha. O primeiro fora o fundador dos Pāśupatas, o segundo deu instruções a três seres perfeitos: Tryambhaka, Āmardaka e Śrīnātha. Respectivamente, estes seres perfeitos ensinaram a doutrina Śaiva da não-dualidade, dualidade, e não-dualidade com dualidade. A filha de Tryambhaka fundou uma quarta escola identificada como Ardhatryambhaka, que pode ser designada como a Tradição Kaula, chamada de kula-prakriyā por Jayaratha. Enquanto a Tradição Kaula é designada como sendo essencialmente tântrica, Jayaratha, um dos grandes comentadores do Tantrāloka que viveu no Séc. XII d.C., sugere uma distinção entre kula-prakriyā e tantra-prakriyā: a primeira está conectada a linha Ardhatryambhaka e a segunda aos ensinamentos não-duais de Tryambhaka.
[12] Esta última definição, assim acredito, é designada para aqueles que estão firmemente estabelecidos em sua prática espiritual. Para aqueles que se interessam pelo Śaivismo da Caxemira e seguem sua disciplina yogī. Este é o coração do Śaivismo (Trika Hṛidayam).
[13] O Śaivismo da Caxemira sofreu avanços significativos, filosóficos e teológicos, até o final Século XII d.C., promovendo uma surpreendente síntese dos sistemas filosóficos Hindus, Nyāya, Sāṁkhya e Vedānta, permeados pelo Pātañjala Yoga.
[14] Como anteriormente afirmado, um dos significados da palavra māyā é magia. A intenção é mostrar que Śiva é o mago e māyā é o ato divino de ludibriar e esconder. Embora utilizem o mesmo termo, o significado dado pelo Śaivismo é muito diferente do utilizado pelo Advaita Vedānta, pois, para este, māyā é considerada simultaneamente idêntica e separada do Absoluto. Ela é irreal, não possuindo base em si mesma. Para o Adavaita Vedānta, o mundo é māyā, uma ilusão, uma mentira. A criação é, na verdade, uma miragem. O Śaivismo não aceita este ponto de vista, pois não pode haver um Ser Absoluto e algo que está separado Dele e que ainda, ao mesmo tempo, é irreal. Neste sentido, māyā torna-se apenas um agente limitador de percepção, pois a criação é real e idêntica a Śiva, sendo māyā apenas a falta desta percepção. Não pode haver efeito separado de sua causa. Assim como o Śaivismo descorda da doutrina de māyā conforme estabelecida por Śaṅkarācārya, também o faz com a doutrina de māyā conforme estabelecida pelos códices vaiṣnavas de Caitanyáchárya.
[15] Não confundir este termo com o comumente utilizado pelas outras escolas filosóficas indianas, para os quais têm um valor completamente diferente do aqui utilizado pelo Śaivismo da Caxemira, pois nesta tradição, māyā não é simplesmente um poder ilusório ou mágico destituído de origem. Māyā vem da raiz verbal mā, mensurar, comparar e aqui é o princípio que limita e estabelece condições dualistas sobre o Todo. Este tema fora discutido enfaticamente no texto.
[16] O que lança um véu de ilusão sobre a Pura Consciência (śuddha samvid), convertendo uma emanação em condição de divindade na forma de um humano limitado.
[17] Impressões de atividades pretéritas deixadas na mente de tudo o que se vive, se aprende.
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