sábado, 18 de outubro de 2008

Madya: a eficácia do vinho


sendo:
Tantra Vidyā
. quarta parte .

Por Fernando Liguori

[Nota: após ter escrito o texto O Significado da Doutrina da Mão-Esquerda ou kulamārga, recebi algumas críticas construtivas e indagações. Ocorreu um pequeno debate no orkut acerca da utilização do vinho nos ritos tântricos. O texto que segue é minha apresentação sobre o tema. A bibliografia consultada é referida no corpo do texto.]

ASSIM como os outros ingredientes do pañchamakāra, a utilização ritual do vinho é uma prática muito primitiva, originalmente conectada a rituais funerários e para fertilidade, perpassando caminhos diferentes sob diversas condições históricas da vida religiosa. Os Tantras dão ênfase especial à consagração do vinho como meio de se atingir a liberação. De acordo com o Mahānirvāṇatantra (XI: 5 ss), vinho é a deusa Tārā em sua forma fluída. Como um aspecto da Mãe, produtor de bhoga e mokṣa, removedor de doenças e infortúnios, vinho serve a um propósito muito importante. Escrituras tântricas como Pārānandasūtra, Kaulāvalinīrṇaya e outras enfatizam a utilização de vinho como condição essencial a perfeição. O Kulārṇavatantra (II: 126; V: 15 ss; XI: 22-35), traz referências a preparação de diferentes tipos de vinho, descrevendo sua utilização ritual.[1] Esta mesma escritura (V: 76) afirma que ānanda (bem-aventurança), é a natureza essencial de Brahman e, portanto, do Ser, o Ātman, que é idêntico a Brahman. O vinho tem a capacidade de despertar no Ser seu aspecto de bem-aventurança.

Assim, o vinho é utilizado pelos kaulikas que são capazes de se estabelecer acima das atividades sensoriais concentrando-se apenas na bem-aventurança. O motivo de se utilizar o vinho é atingir esta bem-aventurança, e para isso é preciso ter muito cuidado. De fato, de acordo com o Kulārṇavatantra (II: 17) apenas o kaulika, cujo corpo e mente não é afetado pelo efeito sensorial da bebida, está capacitado a comungar este sacramente, pois está além das formas e conectado com ideais Mais Elevados.

O Kulārṇavatantra (V: 70) diz que o conhecimento da verdadeira natureza da Realidade Última é a condição essencial para utilização do vinho e o adepto que o utiliza deve estar capacitado a direcionar sua mente a esta meta. Finalmente, esta mesma escritura (V: 80-88) diz ser necessário que o adepto que faz uso do vinho no curso dos rituais da Tradição Kaula deve ser um yogī e um filósofo.

Muitos eruditos e acadêmicos ocidentais têm tentado justificar ou racionalizar os rituais tântricos que utilizam vinho, carne, intercurso sexual etc., recorrendo a uma mística interpretação deles. D.N. Bose, por exemplo, em seu livro Tantras, Their Philosophy and Occult Secrets (p. 11), sugeriu que o real significado dos cinco makāras foi deliberadamente pervertido. Segundo ele, vinho é o néctar que escorre da glândula pineal.[3] Da mesma maneira, peixe simboliza a supressão dos ares vitais; carne simboliza voto de silêncio e a cópula sexual simboliza a meditação nos atos da criação e destruição. Sir John Woodroffe em seu Principles of Tantra (Parte II, p. 107-108) oferece uma explicação simbólica da palavra beber como expressada no Pārānandasūtra (81.2.1). O verso segue:

Jīvanmuktaḥ pivedevamanyathā palito bavediti
O pītvā punaḥ pītvā patitvā daraṇītale
Utthāya ca punaḥ pītvā punarjanma na vidyate

O verso sugere que o indivíduo pode escapar do renascimento bebendo de novo e de novo, caindo pelo chão e então se levantando devido ao estado de intoxicação. Versos similares são encontrados em vários Tantras como o Kulārṇavatantra (VII: 100), o Kaulāvalītantra (VIII: 164 ss), o Kālivilāsatantra (V: 25) etc., e segundo Woodroffe, o verdadeiro significado do verso se refere ao movimento da kuṇḍalinī, sua subida e descida sendo simbolizada pela queda do adepto embriagado no chão e seu levantar revigorante:

Assim, despertando a kuṇḍalinī e entrando no grande caminho para liberação (mokṣa), isto é no suṣmnā, penetrando os centros um a um, ascendendo até o sahasrāra, e ali estando em estado de bem-aventurança e comunhão com o Senhor dos Senhores, desce novamente pelo mesmo caminho até o mūlādhāracakra. É dito que um néctar flui de tal comunhão. O sādhaka então o bebe e se torna extremamente feliz. Este é o vinho chamado kulamṛta, o qual o sādhaka do plano espiritual bebe. [...] Em referência a essa classe especial de sādhaka espiritual (ādhyātmika), os Tantras dizem: pītvā, pītvā [...] vidyate. Durante os primeiros estágios do saṭcakra-sādhanā o sādhaka não pode suprimir sua respiração por um longo período de tempo de maneira que, retendo o ar, pratique concentração e meditação em cada centro de poder. Ele não pode, portanto, deter a kuṇḍalinī dentro do suṣmnā além de sua capacidade de realizar kumbhaka. Ele consequentemente cairá na terra, i.e. no mūlādhāracakra, que é o centro do elemento terra, após ter bebido a ambrósia celeste. O sādhaka precisa fazer esta prática constantemente, de novo e de novo, pois, pela prática constante, a causa do renascimento, i.e. vāsanā (desejo) é removida.

Surpreendentemente, as tentativas de se dar interpretações imaginárias as escrituras tântricas são encontradas até mesmo no Oriente. Muitos escritores tentam racionalizar ou justificar estes ritos aparentemente repulsivos com idéias preconceituosas. O Mahānirvāṇatantra e o Tantrarāja atestam que beber vinho sem śuddhi é como beber veneno e que qualquer pessoa que o fizer irá sofrer misérias com doenças incuráveis e morrer prematuramente. O Kulārṇavatantra (VII: 97-98) é enfático ao dizer que o vinho somente deveria ser bebido por aqueles que já tiveram atingido algum estágio de perfeição (siddhi). Ele deveria ser consumido somente para se galgar níveis estáticos de consciência, e o adepto que beber com outros propósitos além deste se tornará um pecador. Alguns textos prescrevem substitutos para os cinco makāras. Assim, madya pode ser substituído por água de coco como via de regra, mas qualquer outro líquido ou até mesmo o conhecimento intoxicante é encontrado nos Tantras. O Mahānirvāṇatantra (VIII: 170-173) diz que madhura-traya pode ser um substituto para o vinho. O Kaulāvalīnirṇaya (III: 111) diz que o vinho pode ser substituído por cânhamo (bhāng ou vijayā) e atesta que se o adepto após utilizar bhāng pratica meditação irá imediatamente adentrar a morada da deusa. No Kaulajñānanirāaya (VI: 18-19) e nos escritos de Bhāskararāya tais como Saubhāgyabhāskara (p. 123) e Lalitāsahasranāma (p. 87-91), é dito que quando a kuṇḍalinī é desperta e atinge o sahasrāracakra, um néctar é gotejado e seu nome é madya, vinho.

Mas vinho é simplesmente vinho. Sua utilização para propósitos religiosos é universal, e o beber era uma característica essencial dos sacrifícios védicos. Um dos primeiros e mais importantes rituais védicos chamava-se vājapeya, cuja liturgia empregava uma comunhão coletiva no qual o sacrificante oferecia cinco cálices de vinho a Indra enquanto o sacerdote recitava os versos da Vājasaneyīsaṃhitā (IX: 2-4). A este ato litúrgico, seguia-se uma oferenda de dezessete cálices de soma e dezessete cálices de surā a trinta e quatro deuses alocados na terra, na frente e atrás do eixo central do altar. Este tipo de sacrifício, denominado Ekāha, era administrado pelo sacerdote oficiante após as libações respectivas as divindades. A forma popular de vinho utilizado pela civilização védica era chamada de Soma, que ocupava um importante papel nas escrituras. Segundo o Ṛgveda (IV: 48.3), o vinho (Soma) era considerado um meio através do qual o homem poderia superar a morte e atingir a imortalidade. Soma também foi um deus védico e importantes rituais eram oferecidos a ele (Soma-yāgas). Outros dois tipos de vinho, Surā e Pariśrut eram utilizados, especialmente no vājapeya.[5]

O uso do vinho no sacrifício vājapeya está conectado a antigas crenças e rituais de fertilidade. O vinho, como um veículo de poderes mágicos, reside no âmago das sociedades tribais da Índia antiga e era o cerne de seus rituais. Por exemplo, os Oraons, após o plantio das mudas de arroz, faziam libações com vinho no chão. Os Bagias, após o cultivo, espalhavam uma linha de vinho ao redor da terra cultivada. Isso demonstra o pensamento primitivo acerca do poder de vida contido no vinho. Existe uma conexão entre o vinho e o sangue menstrual (khapuṣpa). Como afirmei junto a minha esposa em Chinnamastā & o ideal Yogī de Autotranscendência,[6] com a evolução da consciência ritual, o sangue menstrual também adotou um papel superlativo nas sociedades aborígenes da Índia antiga, onde sacerdotisas especialmente aptas a nutrir a terra com sua energia vital (o sangue menstrual), derramavam-na nos campos em busca de fertilidade após intensas práticas psicosexuais. Dessa maneira, o vinho e o sangue estavam conectados aos conceitos de vida e morte. Era conhecido que o sangramento de uma pessoa ferida podia levá-la a morte. Essa observação estabeleceu uma associação entre o sangue e o princípio da vida, pois a perda do sangue leva consigo a vida. Outro ponto importante na relação entre o princípio da vida e o sangue foi à observação de que a jovem mulher, ao parar de sangrar pela suspensão do período de catamênio, dá inicio ao processo em que uma criança nasce através de sua vulva (yoni). Correlacionando os dois fatos, foram estabelecidos cultos envolvendo o sacrifício de animais, em que o sangue era utilizado como oferenda aos deuses e deusas, assim como cultos à vulva, considerada um portal mágico capaz de trazer uma vida do mundo dos espíritos para o mundo dos humanos. Posteriormente, a associação entre o sangue e o vinho se tornara um dos aspectos chave nos rituais tântricos de orientação Śākta.[7]

Algumas palavras sobre a conexão entre o vinho, a vida e a morte são necessárias. Existe uma incompreensão acerca dos ritos funerais festivos, sempre carregados com muito vinho.[8] Em muitas partes do mundo o vinho é utilizado para celebrar a passagem ou a morte. Por exemplo, os Tshi da África Ocidental comemoram a morte bebendo vinho em uma celebração de sete dias. O mesmo ocorre em Yorubá. Na Índia, a utilização de vinho em ritos funerais não é incomum. Um dos nomes para a comunidade que produz vinho é mṛtasañjīvanī, palavra que significa restauração da vida, e que é muito utilizada na literatura tântrica e ayurvédica. A mesma crença explica a utilização de vinho nos ritos de puberdade, cuja essência é a morte e o posterior renascimento. O vinho também tem um papel importante nos ritos de matrimônio onde ele representa o agende de procriação. No pensamento primitivo, o vinho é o agente que ajuda o homem não somente a superar a morte, mas criar uma nova vida, e é aqui que a utilização ritual do vinho na fertilização da terra deve ser compreendido.

A mágica utilização do vinho, tão comum nos ritos de fertilidade, puberdade, casamento e funeral, também encontra expressão nos populares festivais religiosos como o Gājana e outros. Um grande vaso de vinho chamado bhāṇḍāl é colocado na frente da deidade junto a outros vasos menores. Danças são executadas por dançarinos intoxicados pela embriaguez divina até a exaustão. Ocorre um frenezi geral e todos os participantes são enganjados em um torpor mágico sem precedentes. [9]

Portanto, o vinho possui sua característica relevante nos ritos tântricos, como podemos perceber.

Fernando Liguori

Notas:

1. Via de regra, um tipo diferente de vinho para cada ritual.
2. Em meus prévios escritos demonstrei que após os rituais em que o vinho é utilizado como p.e. o satcakra-sādhánā ou o cakrapūjā os participantes não demonstram qualquer sinal de embriaguês ou intoxicação alcoólica. Veja Fernando Liguori, O vāmācāra & sua conduta anti-bramânica. Ensaio publicado em: Os Caminhos do Yoga, vol. XI, n. 7, 2008. Publicação periódica do Centro Védico Ānanda Chandra.
3. Kulamṛta, o néctar que flui da região cerebral conhecida como candramaṇḍala descendo pelo corpo sutil do aspirante quando a kulakuṇḍalinī penetra o ṣaṭcakra.
4. Trinta e três eram os tradicionais, formando trinta e quatro com Prajāpati.
5. Soma, muitas vezes, é referido como uma bebida intoxicante derivada do cogumelo amanita muscaria.
6. Disponível na web em:
www.malikayoga.blogspot.com.
7. Me refiro as escolas de linha vāmācāra.
8. Compare a passagem do Ṛgveda: Nós bebemos Soma e nos tornamos imortais.
9. N.N. Bhattacharyya, Ancient Indians Rituals, Oxford, 1926, p. 100.

1 comentários:

Anônimo,  18 de novembro de 2013 às 00:50  

- O uso das chamadas plantas de poder e cannabis também são absorvidos nessas práticas, tal como o vinho...?
Att.

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