Nota sobre a Metodologia de Tradução, Interpretação e Anotações
Por Fernando Liguori
[O presente texto é uma adaptação para internet da introdução contida na Apostila de Estudo do curso sobre o Śivasūtra e da introdução contida na Apostila de Estudo do curso sobre a Spandakārikā, ambos realizados pelo Espaço Kaula.]
Estas traduções dos Aforismos de Śiva e das Estâncias da Vibração, com suas respectivas explicações[1] e notas, podem ser estudadas a partir de dois pontos de vista: como uma introdução a doutrina e as práticas da tradição Spanda do Śaivismo da Caxemira, ou como uma introdução ao Śaivismo da Caxemira em todo seu contexto. A intenção é apresentar um trabalho que contenha em todo seu escopo uma exposição concisa de toda Doutrina da Vibração em sua mais completa expressão conforme transmitida por Kṣemarāja em seus comentários sobre as Estâncias da Vibração, uma obra que, embora seja considerada o texto básico da tradição Spanda, efetivamente trata, de forma simples e direta, da essência do Śaivismo da Caxemira como um todo.[2] Ademais, na medida que as cinqüenta e três Estâncias da Vibração apresentam a essência dos ensinos contidos nos Aforismos de Śiva,[3] que Kṣemarāja caracterizou como um compêndio da secreta doutrina Śaiva,[4] elas são uma exposição sucinta do Yoga monista do Śaivismo, o segredo do Śaivāgama.[5]
Seguindo Kṣemarāja, mas não desconsiderando os outros comentadores, estas traduções apresentam a tradição Spanda como uma formulação doutrinal do caráter dinâmico do Absoluto e suas manifestações em todos os níveis de existência e experiência. Manifestar-se em muitas formas, este é o caráter fundamental do absolutismo Śaiva, tanto nas fontes Āgâmicas mais primitivas quanto em suas exegeses nas mãos dos modernos autores da Caxemira. Portanto, nesta tarefa de traduzir e explicar as Estâncias da Vibração e os Aforismos de Śiva, escolhemos passar através das distinções internas entre as escolas e tradições do Śaivismo da Caxemira para apresentar Spanda como um conceito que representa um importante ponto de contato entre elas. Por outro lado, procuramos ver como cada uma destas escolas contribuiu para o desenvolvimento da Doutrina da Vibração no contexto da tradição Spanda. Nós procuramos apontar a diferença na ênfase, terminologia e pontos de divergência entre a tradição Spanda e outras escolas do Śaivismo da Caxemira. Abrimos espaço para indicar como comentadores que vieram de outras tradições modificaram a doutrina original da tradição Spanda e como ela, por sua vez, influenciou outras escolas.[6] Portanto, procuramos apresentar a Doutrina da Vibração de forma sistemática e genérica, ao mesmo tempo que histórica e caracterizada.
Estas duas aproximações são possíveis e válidas, pois o Śaivismo da Caxemira pode ser estudado como uma unidade e portanto constitui, de acordo com inúmeros autores, um corpo literário único. Assim mesmo, quando estudamos estas obras, nos deparamos com duas possibilidades: a primeira, ao considerá-las como parte de um todo; a segunda, ao considerá-las como escolas ou sistemas[7] distintos. Assim, por um lado nós podemos estudar cada sistema em seu próprio contexto e desenvolvimento dentro do universo do Śaivismo da Caxemira e, em alguns casos, através de seus antecedentes Āgâmicos. Por outro lado, nós podemos estudar o Śaivismo da Caxemira como um desenvolvimento coletivo destas várias escolas. Cada sistema se desenvolve em vários níveis e por diferentes caminhos, pelo acréscimo de elementos de outras escolas e pode ser explicado nos termos de outros sistemas. Portanto, o estudo de qualquer um destes sistemas é impossível sem tomar por referência os outros. Isso é particularmente verdade principalmente no contexto em que observamos a tradição Spanda que, conforme observamos acima, eventualmente veio a representar o foco central e síntese destas escolas. A partir deste ponto de vista, a tradição Spanda apresenta, em termos gerais e essenciais, todo o Śaivismo da Caxemira.
A tradição Pratyabhijñā serviu como fonte importante na produção deste material. Apesar de nosso objetivo ser apresentar a tradição Spanda nos termos mencionados acima e embora existam diferenças tanto na doutrina quanto na terminologia, Pratyabhijñā, dentro do extensivo âmbito da tradição Spanda apresentada por Rājānaka Rāma e Kṣemarāja, serve como uma afirmação e fortificação, em termos filosóficos, da doutrina Spanda. O ponto de contato é o idealismo de ambos os sistemas. Consciência é a mais perfeita representação do Absoluto. Ela não é apenas a consciência que observa o objeto, mas que observa a si mesma como o objeto, através de e assim como cada ato de percepção. O conceito fundamental de Consciência como Atividade Universal e Princípio Absoluto é comum tanto na tradição Spanda quanto na Pratyabhijñā. De fato, é comum a toda formulação da natureza da Realidade Última encontrar expressão nas mais variadas terminologias dos sistemas doutrinários que constituem os vários modos semânticos do Śaivismo da Caxemira como um todo.
Finalmente, Spanda é a pulsação espontânea e recorrente da objetividade absoluta manifesta como o ritmo da ascensão e declínio de cada detalhe no esquema cósmico que aparece dentro de sua infinita vibração. Ao mesmo tempo, Spanda é a vibração interna universal da consciência como pura perceptividade (upalabdhṛtā) que constitui a percepção da subjetividade (jñātṛtva) e a atividade (kartṛtva). Comum a todos estes sistemas é o insight libertador na natureza da recorrência externa da realidade através do qual a consciência se manifesta como expressão da liberdade interior e seu inerente poder. É por esta razão que é possível se mover de um universo discursivo de um sistema a outro para formar um único universo de expressão.
Todo material, i.e. a tradução e explicação dos Aforismos de Śiva e das Estâncias da Vibração foram adaptados para publicação na internet. O material original poderá, no futuro, se tornar um livro com maiores acréscimos. Como a internet é um veículo de comunicação rápida, ela exige de nós brevidade e concisão. Por este motivo não podemos nos aprofundar apropriadamente. Para facilitar o estudo, dividimos todo o material em publicações distintas. Eles não devem, portanto, ser considerados, neste estudo da internet, como capítulos de um livro, mas como artigos separados que, quando lidos no contexto apresentado acima, darão a noção de um todo coeso e estruturado. Em cada Aforismo e Estância, optamos por inserir o original em devanāgarī, a transliteração para o sânscrito e a tradução em português. Isso permite um estudo mais profundo e completo. Para uma maior compreensão das notas e referências, incluímos uma seleta bibliografia e uma lista dos termos abreviados.
Gostaríamos de dedicar muitas linhas de agradecimento a pessoas, amigos e mestres que nos auxiliaram na produção deste material. Isso será apropriadamente realizando em uma publicação futura.
Notas:
[1] Na tradução e comentários do Śivasūtra e da Spandakārikā nós preferimos utilizar o termo explicação ao invés de exposição, como foi extensivamente utilizado pelos comentadores das duas obras, tanto no passado quanto no presente. Isso porque nos limitamos a explicar, em uma linguagem menos rebuscada, o que foi exposto por eles.
[2] O próprio Kṣemarāja ostentava a superioridade de seu comentário sobre aqueles que falharam em apresentar uma síntese completa da essência das doutrinas de todas as escolas do Śaivismo da Caxemira. Veja Sp.Nir., p. 33.
[3] K.C. Pandey não considera a tradição Spanda como um sistema ou escola separada. Ele diz: a Spandkārikā é simplesmente uma amplificação dos princípios fundamentais do Śaivismo como aforisticamente transmitidos pelo Śivasūtra. Veja Abhinavagupta: An Historical & Philosophical Study, p. 155. De outro ponto de vista, K.C. Pandey se inclina a ver nas Estâncias meras declarações dogmáticas dos princípios fundamentais daquilo que ele define como o ramo Spanda da [tradição] Pratyabhijñā (idem, p. 294). Todos os comentadores – da Caxemira – das Estâncias, contudo, a consideram como texto representativo de uma tradição independente, enquanto que Mādhavācārya, um adepto Śaiva do Sul da Índia, em sua enumeração das obras da tradição Pratyabhijñā, a Sarvadarśanasaṃgraha, não inclui nenhuma obra da tradição Spanda. Embora Pandey seja relutante em conceber a tradição Spanda como uma escola distinta dentro do escopo total do Śaivismo da Caxemira, ele lida com ela quando, usualmente, trata do Śivasūtra, a Spandakārikā e seus respectivos comentários.
Existem inúmeras divergências neste ponto. J.C. Chatterjee critica Bühler por dizer que Spanda e Pratyabhijñā śāstra são dois sistemas diferentes, insistindo que o termo śāstra significa, neste contexto, simplesmente um tratado, não um sistema. Ele acredita que todas estas obras pertencem à tradição Trika. Veja Kashmir Shaivism, p. 7, n. 1. Dr. Kaw segue a classificação literal de Chatterjee, bem como Pt. Madhusūdana Kaula segue a mesma linha de pensamento. Veja o prefácio de I.P.v., I, p. 1. Dvived mantém que Spanda é uma escola independente do Śaivismo da Caxemira, contudo, ele identifica Trika com Pratyabhijñā (L.Ā.S., II, p. 11) e, portanto, não se deveria pensar em Spanda como parte da tradição Trika sem identificá-la com a filosofia Pratyabhijñā. Entretanto, embora a Spandakārikā seja verdadeiramente uma obra filosófica assim como as obras da escola Pratyabhijñā e esteja particularmente mais interessada na doutrina do que no argumento, ela apresenta seu próprio olhar e doutrina com uma terminologia completamente diferente da tradição Pratyabhijñā.
[4] śivopaniṣatsaṃgraharūpāṇi śivasūtrani (Ś.Sū.vi., p. 2): Kṣemarāja escreve na conclusão do verso em seus comentários:
Este é um comentário sobre o Śivasūtra, exposto com a finalidade de se penetrar na doutrina secreta de Śiva. Ele belamente está em concordância com as escrituras e ensinamentos [da tradição] Spanda. Para aqueles que estão acorrentados a existência fenomênica (bhava), que o virtuoso perfume deste lúcido [comentário], o Śivasūtravirmaśinī, repleto da fragrância da essência do néctar que sempre flui dos ensinamentos [contidos] na secreta doutrina de Śiva [possam iluminá-lo].
[5] De acordo com Kṣemarāja, Śiva agraciou Vasugupta lhe revelando os Aforismos para que a secreta tradição não fosse perdida no mundo do dualismo (Ś.Sū.vi., p.1). Similarmente, o Śaivismo não-dualista foi caracterizado por Somanānda em seu Śivadṛṣṭi como a doutrina secreta (rahasyaṃ śāstram) em perigo de ser irremediavelmente perdida na era de Kali (Ś.Dṛ., p. 220).
[6] Bhagavatotpala, por exemplo, influenciado pelo monismo Vaiṣṇava da Caxemira, mantinha que o universo é, em um sentido, tanto real quanto a aparente transformação do Absoluto (pariṇāma e vivarta). Em sua Spandapradīpikā, Bhagavatotpala, que viveu entre os Sécs. X e XI d.C., freqüentemente cita uma escritura Vaiṣṇava conhecida pelo nome Saṃvitprakāśa. O autoria desta escritura é atribuída a um brâmane da Caxemira que pertencia a tradição Ekāyana, conhecido como Vāmanadatta. É significante que este autor tenha sido citado extensivamente por Bhagavatotpala que também era um brâmane da Caxemira de descendência Vaiṣṇava que se converteu ao Śaivismo. Esta iniciativa de Bhagavatotpala demonstra uma afinidade bem próxima entre certas formas de culto Vaiṣṇava na Caxemira com o monismo Śaiva. A Spandapradīpikā é o trabalho mais antigo na série de comentários das Estâncias da Vibração que cita, neste contexto, uma fonte Āgâmica Vaiṣṇava. Não há dúvida, portanto, de que a Caxemira foi um importante centro do tantrismo Vaiṣṇava, i.e. a tradição Pāñcarātra.
A Saṃvitprakāśa (Luz da Consciência) de Vāmanadatta abre um campo totalmente novo de pesquisa, o monismo Vaiṣṇava da Caxemira. Neste caminho, encontramos vários trabalhos escritos por Vaiṣṇavas da Caxemira que apresentam os princípios básicos da doutrina Vaiṣṇava encontrados na tradição Pāñcarātra, mas nos termos de um idealismo monista muito similar ao Śaivismo da Caxemira. Além da Saṃvitprakāśa nós tivemos acesso a Ṣāḍguṇyaviveka (Discernimento Acerca dos Seis Atributos) e a Paramārthasāra (Essência da Realidade Última), obras Vaiṣṇava de cunho monista. Estes e outros trabalhos são bem conhecidos pelos Śaivas da Caxemira e ao que tudo indica, influenciaram muito o pensamento dos autores do Śaivismo naquela região. As citações de Bhāskara em seu Kakṣyāstotra, obra irremediavelmente perdida, claramente demonstra sinais da influência monista Vaiṣṇava (Cf. Sp.Pra., p. 103). O próprio Abhinavagupta se refere a Vāmanadatta com muito respeito como seu professor (ou predecessor) mais antigo (Cf. T.Ā., V: 155). Portanto, os comentários de Bhagavatotpala sobre as Estâncias da Vibração são extremamente relevantes neste campo de pesquisa. Neste trabalho, ele claramente se esforça em fazer uma integração extensiva entre o monismo Vaiṣṇava e a Doutrina da Vibração (Spanda) e, conseqüentemente, com o Śaivismo da Caxemira como um todo.
[7] O termo sistema tem sido utilizado de forma generalizada desde os primeiros estudos do Śaivismo da Caxemira. Bühler, já em 1877, fez uso livre do termo em suas pesquisas. Posteriormente, muitos autores se referiam com regularidade as escolas do Śaivismo da Caxemira como sistemas. Pandey deixou claro o que o termo significava para ele quando disse que estes sistemas são fundamentalmente distintos uns dos outros. Cada um tem sua história, uma distinta linha de mestres, um conjunto de livros no qual a filosofia é proposta e uma diferente concepção da realidade última. Veja Abhinavagupta: An Historical & Philosophical Study, p. 295. O termo sistema é, contudo, problemático se analisarmos as fontes Śaivas da Caxemira sobre estas linhas. Não é realmente possível pensar nas Siddhāntāgamas, por exemplo, como coletivamente arranjadas em um único ponto de vista teológico ou com o mesmo programa ritualístico em todos os detalhes. Existe uma inequívoca semelhança entre as Āgamas, mas as diferenças são equivalentemente notáveis. Os mesmo ocorre com as Āgamas de outros grupos. Assim, de acordo com Abhinavagupta, faz parte do trabalho do Śaivācārya (mestre Śaiva que transmite o Śaivāgama) encontrar uniformidade e consistência (ekavākyatā) nas escrituras. Os mestres da Caxemira têm, em sua forma brilhante e particular, procurado e encontrado tal uniformidade na forma de um sistema tântrico, o qual eles têm construído a partir de fontes originais desordenadas. Neste ponto eles não fazem nada de novo, mas participam, desenvolvem e estendem um processo que já estava contido nas escrituras, mas que agora toma forma.
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