Existe diferença entre o Haṭha e o Rājayoga?
Por Fernando Liguori
Neste mesmo período ocorria na Índia um movimento reformista, uma contra-resposta ao status quo: me refiro ao movimento dos siddha-s e ao ideal do corpo diamantizado. Este movimento de grande revolução religiosa apresentava uma visão revolucionária e dinâmica do universo a uma Índia apegada e condicionada a um arcaico ritualismo bramânico. A nova visão tântrica do corpo reascendeu a chama e novamente o ímpeto à busca pela consecução espiritual. Para o tântrico, o corpo não mais é a causa de pecado ou perdição, mas o veículo para transcendência e a realização da natureza divina no homem.
Tornar o corpo um instrumento e parte do desenvolvimento espiritual ao invés de rejeitá-lo e esquecê-lo fora uma conquista e uma inovação dos yogī-s tântricos que propuseram uma mudança religiosa e cultural na perspectiva dominante da Índia medieval que dava as costas à manifestação corpórea. Desta forma, os haṭhayogī-s tântricos mesmo dedicados ao sādhanā não renunciavam a vida em sociedade e ao mundo ‘real’, pois para eles o nirvāṇa era equivalente ao saṁsāra. Em outras palavras, no Tantra, e portanto no haṭhayoga, a iluminação é uma questão que envolve o corpo inteiro. Essa abordagem é resumida na noção tântrica de que a libertação [mukti] e o prazer [bhukti] são perfeitamente compatíveis.
Entre os siddha-s do norte da Índia iniciou-se um movimento de reformulação do Pātañjala Yoga. Foi um siddha da Tradição Kaula, de uma linhagem conhecida como nātha sampradāya quem promoveu uma reforma em algumas escolas Kaulas e no Yoga. Seu nome era Gorakṣanātha e ele viveu na região que compreende hoje o Nepal e o território indiano que vai do Estado de Bihar até o golfo de Bengala. Gorakṣanātha deu nascimento a versão tântrica do Yoga de Patañjali, restaurando integralmente os postulados dos sūtra-s, acrescentando ainda uma série de procedimentos corporais para intensificar os efeitos da prática. Assim nasceu o haṭhayoga, um conjunto de disciplinas rigorosas capazes de levar o praticante ao estado de unmanī avasthā.[1]
Existe uma grande controvérsia acerca da diferença entre o haṭha e o rājayoga. Esta diferença, assim especulam os autores pós Séc. XIX, está no fato do haṭha se restringir apenas a técnicas psicofísicas e o rāja compreender técnicas mentais que levam o praticante a liberação final. Uma leitura atenta às escrituras tradicionais do haṭhayoga desfaz imediatamente esta interpretação errônea. Na Haṭhapradīpikā, versos 1 e 2, menciona-se que o haṭhayoga foi proposto para se alcançar o rājayoga, mas não como disciplinas diferentes; i.e. quando o termo rājayoga aparece nos textos do haṭhayoga, não é usado para indicar um sistema diferente de Yoga, mas ao contrário, é uma referência ao estado mais elevado de meditação que se consegue através do Yoga e que se denomina samādhi.
शरी आदि नाथाय नमोअस्तु तस्मै येनोपदिष्ह्टा हठ योग विद्या
विभ्राजते परोन्नत राज योगम आरोढुमिछ्छोरधिरोहिणीव १
śrī ādi nāthāya namo’astu tasmai yenopadiṣhṭā haṭha yogha vidyā
vibhrājate pronnata rāja yogham āroḍhumichchoradhirohiṇīva 1
I: 1
Reverencio Śrī Ādinātha,[2] que ensinou a sabedoria do haṭhayoga como o primeiro degrau para o cume do rājayoga.
परणम्य शरी गुरुं नाथं सवात्मारामेण योगिना
केवलं राज योगाय हठ विद्योपदिश्यते २
praṇamya śrī ghuruṃ nāthaṃ svātmārāmeṇa yoghinā
kevalaṃ rāja yoghāya haṭha vidyopadiśyate 2
I: 2
Tendo assim solenemente saudado seu mestre, o yogī Svātmārāma agora apresenta a haṭhavidyā[3] apenas e exclusivamente para a realização do rājayoga.[4]
Em outras palavras, “nos textos sânscritos do haṭhayoga, a expressão rājayoga é sinônimo de samādhi, e não designa uma doutrina de Yoga. Antes de Vivekananda publicar a sua obra intitulada Raja Yoga, nenhum outro livro afirmou que essa era a designação da doutrina de Patañjali. Depois de Vivekananda se tornou consenso passivo que rājayoga era o Yoga de Patanjali. A suposição foi de Ramakrishna, mas quem pôs no papel foi Vivekananda. Os dois estavam equivocados. Esse fato é bem conhecido entre os estudiosos acadêmicos de sânscrito.”[5]
No Yogabījā de Gorakṣa, os termos haṭha e rāja não aparecem como disciplinas distintas, mas representam o segundo e o quarto passo daquilo que ele denominou Mahāyoga, que consiste de: mantrayoga, haṭhayoga, layayoga e rājayoga. Neste mesmo texto, a palavra haṭha foi identificada como prāṇāyāma e rāja como samādhi. Ainda, na Haṭhapradīpikā (IV: 3-4) são dados 14 sinônimos para samādhi, o primeiro identificado como rājayoga.
Portanto, identificar o rājayoga como uma disciplina distinta do haṭhayoga é um equívoco que vem se mantendo por um século. Antes de Vivekananda a distinção entre processos distintos de Yoga não existia. Por exemplo, a palavra Yoga mencionada na Bhagavadgītā tem um significado genérico de uso – de onde pode-se tirar: o uso da inteligência (buddhi); o uso do ritual (karma); e o uso do compartilhamento divino (bhakti). Ela menciona o uso dessas ferramentas para a realização do dharma – que é o verdadeiro foco desta escritura. Somente com Patañjali o Yoga tornou-se uma doutrina. Antes dele não. O Yoga caminha para uma sistematização que acontece com Patañjali e permanece o mesmo Yoga mesmo no haṭhayoga, sendo este uma nova forma, com influência da tradição dos nātha-s no kriyāyoga de Patañjali. Estas diferentes formas de Yoga como karmayoga, jñānayoga, bhaktiyoga etc. é uma fantasia criada pelos popularizadores da tradição do Yoga no ocidente.
Notas:
[1] Unmanī avasthā, lit. estado de exaltação. Última etapa do caminho do Yoga. Esta é a última etapa do caminho do Yoga segundo a Haṭhayogapradīpikā. Seu equivalente, no Pātañjala Yoga, é o nirvikalpa samādhi.
[2] Śrī Ādinātha, i.e. Senhor Primordial ou Senhor Śiva.
[3] Vidyā, i.e. sabedoria, conhecimento, ciência, doutrina. Neste caso, a ciência ou doutrina do haṭhayoga.
[4] I.e. para realização do samādhi.
[5] Prof. Carlos Eduardo G. Barbosa, em mensagem postada na internet em um fórum sobre o assunto acima proposto.
1 comentários:
Estou grata pelo esclarecimento, pois tinha muitas duvidas conceituas. Já na hora da pratica, pratico Hatha Yoga, sinto não haver diferença e sim um caminho a ser percorrido e experimentado.
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