sexta-feira, 3 de outubro de 2008

Qual o objetivo do Yoga?


Um olhar sobre o Yogasūtra

[Sendo: Introdução ao Pātañjala Yoga, terceira parte.]

Por Fernando Liguori

EM seu Yogasūtra, Patañjali codificou toda a estrutura do Yoga (yogadarśana). Mas o objetivo do Yoga é definido logo no início do primeiro capítulo (samādhipāda): Yogaś cittavṛttinirodhaḥ [yoga é a cessação [da identificação com] as flutuações [que emergem na] consciência]. Em outras palavras, o sūtra indica que o objetivo do Yoga é fazer com que o praticante possa chegar a um estado de não-identificação com as flutuações de sua consciência e que elas possam ser definitivamente cessadas. Quando as flutuações da consciência (cittavṛtti) são suprimidas, o que sobra, a essência, é o Ser (puruṣa), a testemunha, desde sempre imutável, aquele-que-vê. Portanto, para alcançar a essência de seu Ser, o yogī fará o sacrifício de calar todas as vozes internas e externas que podem obscurecer sua consciência pelo processo sistemático do Yoga.

Vyāsa, um dos mais célebres comentadores do Yogasūtra, em relação a este aforismo, comentou em seu Yogabhāṣya: yogaḥ samādiḥ [yoga é samādhi]. A palavra samādhi pode ser traduzida como integração ou absorção cognitiva. Podemos definir, de uma maneira mais apropriada, esta integração como a cessação da identificação com as flutuações que emergem na consciência. Isso porque Patañjali definiu o Yoga por seu objetivo final, deixando o restante do texto para definir seu processo. Assim, no tratado de Patañjali, o termo Yoga refere-se tanto ao processo (a técnica) que leva a um determinado objetivo quanto ao próprio objetivo final. É nesse sentido que, portanto, o termo Yoga torna-se, para Patañjali, um sinônimo de samādhi.

Geralmente, o termo citta é traduzido como pensamento, mas essa tradução é inapropriada, pois afasta o termo de seu significado original conforme exposto no Yogasūtra. Ao pé-da-letra, citta é o particípio passado de CIT/CINT (pensar, ser ciente de), e como tal pode ser o substantivo que designa essa ação, o pensamento. Mas o termo citta engloba toda a vida psicofisiológica individual, incluindo o sono profundo e todo o conteúdo subconsciente. Isso não pode ser considerado simplesmente como pensamento. O Yogasūtra segue o mesmo padrão que o Sāṁkhyayogadarśana, postulando que citta engloba os três instrumentos internos (antaḥkaraṇa) constituintes da individualidade psíquica: buddhi (intelecto), ahaṁkāra (princípio de individuação) e manas (mente que, aqui, se encarrega dos processos designados por pensamento).

Portanto,como vimos acima, o que o Yoga propõe é a cessação de todos os movimentos desta consciência (cittavṛtti) e o último estágio de integração, i.e. a conquista do isolamento (kaivalya) no Absoluto, correspondente a extinção de citta. Isso não significa a destruição do Ser, pois citta (consciência) é um agregado psicológico, um produto da matriz fenomênica (prakṛti) e por conta disso, é instável e está sempre sujeita a constantes transformações. Por detrás desta consciência fenomênica, repousa uma consciência indestrutível e imutável, designada pelo termo cit. Assim, o que o Yoga busca não é a destruição do Ser, mas a destruição de todos os condicionamentos ou limitações fenomênicas deste Ser, designadas pelo nome citta. O que restará por destras deste invólucro da personalidade será o puro e simples princípio consciente (cit), o correspondente do imortal puruṣa ou ātman, como é geralmente designado.

Os movimentos da consciência, aqui identificados como vṛttis, são um turbilhão incessante de movimentos, uma agitação permanente. A palavra vṛtti é um substantivo sânscrito que provém da raiz VṚT (girar, mover em círculos, revolver) e é correlato do latim vortex e, conseqüentemente, do português vórtice, viragem. Mas nos textos sânscritos, muitos são os seus significados: trabalho, atividade, função, ocupação, disposição, caráter, modo, processo etc. No Yogasūtra de Patañjali, a palavra representa não apenas diferentes tipos de processos psicológicos como demonstrado em I: 2, mas diferentes movimentos respiratórios do prāṇāyāma (II: 50) e o movimento das manifestações geradas por prakṛti (III: 42).

Como demonstrei em escritos anteriores, samādhi sempre foi associado a nirvāṇa (termo budista que designa a mesma experiência) e mokṣa (liberação). Portanto, a integração ou samādhi é o conceito mais importante do Yoga, seu objetivo único, a conclusão de todo o processo enfrentado pelo yogī. No primeiro capítulo de seu Yogasūtra, Patañjali expõe vários tipos de samādhi, mas o termo em si, geralmente, denota um estado de consciência bem distinto da experiência de consciência do homem comum. O próprio termo nos dá uma idéia de seu verdadeiro significado. O prefixo sam- indica um processo ou estado de reunião, de totalidade; o prefixo ā indica um movimento para o interior e a raiz DHĀ significa colocar, fixar, por atenção. É uma nomenclatura técnica do Yoga intraduzível para o português, mas significa, em termos simples, uma contemplação ou concentração total (ou na totalidade) e voltada para o âmago do Ser. Desta maneira, percebemos que o Yoga acontece no momento do samādhi, quando ocorre a integração da consciência do yogī com a totalidade do objeto de sua profunda concentração. Mas é no estado mais elevado de samādhi, conhecido como asaṁprajñātasamādhi ou nirbījasamādhi que o processo de Yoga realmente atinge sua meta, a integração do yogī com o Ser que deste sempre tem propiciado e testemunhado a existência fenomênica através dos instrumentos que compõem a consciência.

O ponto de partida do Yoga, assim como do Sāṁkhya, que justifica o sacrifício (tapaḥ) da prática repousa não na sedução de uma condição divina, mas na ambição de esquivar-se da condição humana, vista como dolorosa. Mas isto é um assunto para uma nova jornada e para compreendê-la, precisamos nos aprofundar na teoria do reflexo ou superimposição através da qual se torna possível a hipótese de que um princípio inteligente e eternamente livre como o Ser (puruṣa) possa parecer aprisionado ou condicionado pelas condições e transformações do devir fenomênico.

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