quarta-feira, 30 de setembro de 2009

O Kriyāyoga de Patañjali: O Yoga da Atividade Meritória


Um olhar sobre o Yogasūtra

[Sendo: Introdução ao Pātañjala Yoga, segunda parte.]

Por Fernando Liguori

EM seu Yogasūtra, Patañjali expôs uma abordagem racional, sistemática e filosófica do Yoga, delineando de forma peremptória a trajetória yogī de uma perspectiva psicológica. Patañjali sistematizou uma doutrina (yogadarśana), uma abordagem iluminada da psique humana desvelando o enigma da existência. Ele demonstrou como, através da prática do Yoga, todos os seres podem se transformar, desenvolvendo maestria sobre a mente e as emoções, obstáculos ao desenvolvimento espiritual e como se obter o verdadeiro objetivo do Yoga: kaivalya, i.e. a liberação da escravidão mundana, dos desejos e ações, bem como a união com o divino. Por este motivo, sua obra tem importância fundamental nos estudos da tradição do Yoga e os ensinamentos nela contidos são mais importantes hoje do que eram há dois mil anos.

Tão antigo quanto os evangelhos do Cristianismo, o Yogasūtra foi escrito em sânscrito. Sua datação é imprecisa. Entre os estudiosos, o Yogasūtra é situado entre 200 a.C e 200 d.C. Os estudantes que identificam Patañjali com o famoso gramático que recebe o mesmo nome, geralmente optam pela primeira data. No entanto, é crescente o número de estudiosos que optam pela última data, o que leva em consideração o fato de o Yogasūtra refletir a linguagem e o conceitualismo universal do Budismo Mahāyāṇa. Mas a tradição reconhece inúmeros outros indivíduos que recebem a alcunha de Patañjali, desde uma autoridade Sāṁkhya a criadores de sūtras que revelam caminhos ritualísticos. Mas nada se sabe sobre eles.

Sua doutrina recebeu, ao longo dos tempos, vários nomes. Ela é conhecida como o Yoga do Caminho Óctuplo (aṣṭāṅgayoga). Entretanto, a seção do Yogasūtra que trata dos oito membros (aṅga) do caminho yogī (cf. II: 29) é provavelmente uma compilação de sūtras anteriores a formulação da obra. Outro nome comum dado ao yogadarśana, é Yoga Clássico. Os textos originais da tradição não utilizam este nome quando se referem à doutrina de Patañjali. Foi no ocidente que esse rótulo foi criado. Como os pesquisadores datavam uma escritura a partir de seu estilo literário e como o Yogasūtra teria sido composto no estilo literário clássico, a doutrina do Yoga foi designada como Yoga Clássico. Mas o nome mais comum dado ao sistema codificado por Patañjali é rājayoga. Este é um nome moderno dado a obra.[1] Mas a doutrina exposta e codificada por Patañjali chama-se, segundo ele mesmo, kriyāyoga. Essa afirmação é encontrada no sūtra que inaugura o segundo capítulo, sādhanapāda: tapaḥ svādhyāyaīśvarapraṇidhānāni kriyāyogaḥ [pratica intensa, auto-análise e entrega ao senhor constituem o yoga da atividade meritória]. O termo kriyā designa ação, atividade, da raiz KṚ, traduzida como fazer, executar. Como tal, é praticamente sinônimo do termo karmam, traduzido como ação. Por essa razão, aqui o termo kriyā é traduzido como atividade. Isso porque quando ele está associado à palavra yoga, designa mais do que qualquer atividade. Significa a forma prática da filosofia do Yoga. A união com o Absoluto através da realização dos deveres da vida cotidiana e a devoção ativa. Essa disciplina ajuda o yogī a atenuar as aflições (kleśa) e a aproximar-se da experiência de absorção cognitiva (samādhi).

O Yoga de Patañjali é um processo de auto-realização que admite um Deus pessoal, Īśvara (cf. I: 24-28). Do ponto de vista prático, seu sistema representa a realização do Sāṁkhya, de quem é um darśana complementar. Ele se serve dos elementos já definidos dos outros darśanas para se conseguir um domínio ao mesmo tempo psicológico e físico. Para ele não basta apenas um conhecimento teórico e intelectual da verdade. É necessário uma disciplina prática que tenha como meta o controle e a harmonização da mente e subseqüentemente do corpo. Somente assim o homem poderá realizar sua verdadeira natureza.

A prática intensa, ascese (tapas), o auto-estudo (svādhyāya) e a entrega ao senhor (īśvarapraṇidhāna) são os três mecanismos básicos para se praticar o Yoga de Patañjali. Todos eles são atividades (kriyā) sagradas, meritórias, que se incluem na categoria de “prática” (abhyāsa), sendo a categoria complementar a da “impassibilidade” ou “desapego” (vairāgya). Juntos, pratica e desapego compõem a dinâmica da vida espiritual tal como Patañjali a compreendia. Aquilo que compreende o aṣṭāṅgayoga – refreamentos (yama), observâncias (niyama), postura (āsana), controle do alento (prāṇāyāma), retração dos sentidos ou inibição sensorial (pratyāhāra), concentração (dhāraṇā), meditação (dhyāna) e êxtase, absorção cognitiva, integração (samādhi) – são subcategorias da ascese (tapas), muito embora o auto-estudo e a devoção ao Senhor estejam incluídos no segundo membro, i.e. as observâncias. Para Patañjali, em todo caso, todos estes aspectos formavam o esqueleto de seu sistema e eram dotados de uma importância especial.

O objetivo do kriyāyoga, como infere o sūtra II: 2 é o cultivo do estado de absorção cognitiva (samādhi) e a atenuação das causas de sofrimento, i.e. os kleśas (aflições): samādhibhāvanārthaḥ kleśatanūkaraṇārthaśca [eles são usados] com propósito de produzir a absorção cognitiva [samādhi] e atenuar as aflições [kleśa]. Segundo os yogācāryas da tradição, antes que o yogī possa alcançar o objetivo do Yoga, a absorção cognitiva (samādhi), deve primeiro purificar-se das flutuações da consciência (cittavṛttiḥ) que foram definidas como aflitivas (kliṣṭāḥ) e não-aflitivas (akliṣṭāḥ) no sūtra I: 5. Então, através da prática do kriyāyoga todo complexo corpo-mente é purificado. Patañjali anuncia, posteriormente (II: 16), que o objetivo desta prática é prevenir o sofrimento (duḥkha) futuro: heyaṁ duḥkhamanāgatam [o sofrimento que ainda não surgiu é o que pode ser evitado].

Na doutrina do Yoga (Cf. II: 5-9) a fonte de todo sofrimento é a falta de sabedoria espiritual, a ignorância (avidyā). É ela o kleśa primordial e a raiz de todas as outras aflições: egoidade (asmitā), desejo (rāga), aversão (dveṣa) e apego à vida (abhiniveśaḥ).

Estas cinco causas de sofrimento moldam a dinâmica da vida vulgar. Constituem a matriz das motivações da psique não-iluminada. O kriyāyoga busca destruir este padrão inato para que a pessoa possa recuperar seu Ser. A realização do Ser é o único meio pelo qual o homem pode sair dos ciclos de nascimentos e mortes a qual está sujeito aquele que não alcançou a iluminação.

Os cinco kleśas levam o indivíduo a sentir, pensar, querer e a agir. Essas funções deixam resíduos positivos ou negativos nas profundezas da psique humana, a partir de onde instingam novas atividades e experiências que, por sua vez, produzem novos resíduos. Esse modelo psicológico é essencial para o kriyāyoga. Patañjali mencionou o importante conceito da mente profunda, que chamou de smṛti (lit. memória). É nessa mente profunda que fica armazenado o resíduo psíquico das ações e experiências da pessoa. A mente profunda pode ser compreendida como a configuração total dos resíduos psíquicos deixados pelas atividades volitivas passadas da pessoa. Toda ação, quer deliberada, quer involuntária, cria uma disposição correspondente nos mais profundos recessos da mente. Essas disposições se combinam – possivelmente associando-se por semelhança – e formam complexas cadeias e concatenações, semelhantes a marcas de pneus entrecruzadas deixadas na areia. Assim, a mente profunda não é um simples poço sem fundo onde se joga fora todo conteúdo das expressivas atividades humanas. É, antes, uma força ativa, a sementeira de onde nascem os novos impulsos de auto-expressão.[2]

A mente é um mar encapelado e cheio de redemoinhos onde perdemos continuamente nossa verdadeira identidade com o Ser (puruṣa). É pela força do hábito que não conseguimos ficar por muito tempo na posição de observadores. A palavra hábito é apenas mais um nome pelo qual podemos designar a cadeia de saṁskāras que constitui a estrutura da mente profunda. Patañjali emprega o termo vāsanā (impressões) para designar estas configurações subliminares compostas de uma série de saṁskāras semelhantes. Dá também à totalidade dessas séries o nome de depósito kármico (karmāṣaya).

Segundo Patañjali, só um pequeno segmento da rede total de resíduos subliminares é produto da atividade mental desta existência. A maior parte da mente profunda já existia antes do nosso atual nascimento e teve, inclusive, um papel de destaque no processo pelo qual chegamos a tomar também este corpo. A mente profunda é a cristalização das ignotas existências passadas de cada ser e o veículo que regula o processo de renascimento. Essa doutrina da multiplicidade de nascimentos ou puṇarjanṁan é um dos axiomas fundamentais da filosofia yogī.

Embora a atração gravitacional dos depósitos subliminares seja excessivamente poderosa – é difícil se desfazer de antigos hábitos –, os adeptos do Yoga nos garantem que podemos superá-la mediante o trabalho consciente. Patañjali, inclusive, insiste na possibilidade da transcendência total das forças do destino, e esse pressuposto otimista está por trás de todas as formas de Yoga. Podemos vencer o karma pela astúcia, assumindo a posição do Ser que é a testemunha de todas as coisas e rompendo nossa identidade com o complexo psicossomático que é o fruto kármico das vidas anteriores e das atividades volitivas desta vida.

Muito embora Patañjali não trate da questão filosófica do livre-arbítrio, seu Yoga parte do princípio de que podemos determinar nosso próprio futuro. Podemos escolher entre viver identificados com o complexo psicossomático ou com o Ser. Dessa escolha podem decorrer destinos diversos.[3] Todavia, o exercício do livre-arbítrio em prol da realização suprema não deve ser uma simples boa intenção: tem de expressar-se em um curso de atividade definido. Essa atividade (kriyā), por sua vez, deve contrapor-se à produção de ativadores subliminares (saṁskāra) e delimitar a esfera de influência destes. Patañjali reconhece vários estágios neste processo de controle sobre a atividade incessante da mente profunda. Segundo o sūtra II: 4, as causas do sofrimento podem estar plenamente operantes (udārāṇāṁ) ou adormecidas (prasupta) e podem ainda ser interceptadas (vicchinna) ou atenuadas (tanu). A meta do yogī é a atenuação e, por fim, a completa cessação dessa operação: avidyā kṣetramuttareṣāṁ prasuptatanuvicchinnaudārāṇāṁ [ignorância é o campo onde crescem as demais aflições, quer estejam adormecidas, enfraquecidas, isoladas ou totalmente ativas]. É para isso que o praticante de Yoga emprega os oito membros (aṣṭāṅga) da prática, especialmente o samādhi. Os mestres do Yoga entendem que o conhecimento adquirido através do estudo é necessário mas não é suficiente para assegurar que os poderes da mente profunda sejam transcendidos, pois até mesmo o conhecimento mental produz ativadores subliminares que alimentam a mente profunda. O yogī não se satisfaz com a geração de saṁskāras melhores. O que ele quer é não gerar saṁskāra algum; mais do que isso, quer dissolver os que já gerou. Segundo Patañjali, isso só é possível no fogo da transcendência extática do asaṁprajñātaḥ samādhi. Este êxtase supraconsciente não envolve nenhum dos hábitos do ego e, por isso, gera um contra-saṁskāra baseado na iluminação, o qual aos poucos dissolve todos os outros saṁskāras. Em outras palavras, à medida que criamos o hábito de nos identificar com o Ser mediante a ascensão regular e periódica ao estado de êxtase supraconsciente, enfraquecemos o hábito de identificação com o ego ou com a consciência egóica quando voltamos ao estado ordinário, pois o praticante se identifica cada vez menos com seu complexo psicossomático – isso até o momento em que permanece para sempre identificado com o Ser.

Portanto, o aṣṭāṅgayoga é adjutório nesse progressivo afastamento da identidade egóica. Não obstante, em última análise, as causas da aflição (kleśa) não são superadas por um exercício específico, mas unicamente pelo ato de desidentificação com o complexo psicossomático. Como Patañjali diz no sūtra II: 17: draṣṭṛdṛśyayoḥ saṁyogaḥeyahetuḥ [a causa [do sofrimento] a ser eliminado é a união entre aquele-que-vê e aquilo-que-é-visto].

Afirma-se que não se pode identificar o princípio da “correlação” (saṁyoga) entre o complexo psicossomático e o Ser (puruṣa), o qual é Pura Consciência. Não obstante, esta mesma correlação pode ser eliminada. O Yoga é, na verdade, o processo pelo qual essa ligação é aos poucos desfeita por meio da gnosis (vidyā), pelo qual o homem desperta para o Ser além de todo sofrimento e toda ignorância espiritual. Essa realização do Ser é a libertação, a própria liberdade, ou aquilo que Patañjali chamou de “solidão” (kaivalya). O Ser é “solitário” (kevala), não por ser uma mônada independente de tudo o mais, mas por transcender a mecânica dos mundos visível e invisível. Não é afetado pelo karma, pela lei da ação e reação. É a simples testemunha dos acontecimentos que se desenrolam nos diversos níveis da existência cósmica.

Notas:

[1] Ao que tudo indica, o termo rājayoga só apareceu como sinônimo ao sistema promulgado por Patañjali no Séc. XIX, com o advento das obras em inglês de Swami Vivekananda. Foi ele o responsável por introduzir no ocidente este termo. A palavra rāja significa rei, assim, rājayoga significa Yoga Real ou Yoga do Caminho Real. Segundo Swami Niranjanananda Saraswati,* o termo rājayoga tornou-se conhecido somente após uma árdua inquirição na personalidade humana através de processos yogīs conduzidos por mestres e santos. Assim, o propósito do rājayoga seria desenvolver os mais elevados potenciais humanos através de práticas capazes de levar o ser humano nos profundos rincões de seu interior.

[*] Cf. Yoga Darshana: Vision of the Yoga Upanishads. Yoga Publications Trust, Munger, Bihar, Índia.

[2] Esse aspecto dinâmico da mente profunda é captado pelo termo sânscrito saṁskāra, que significa literalmente ativador. Cada unidade de experiência ou auto-expressão cria um saṁskāra na mente profunda.

[3] No sūtra IV: 7, Patañjali distingue entre o karma dos homens comuns, o qual pode ser preto, branco ou misto e o karma dos yogīs, que não é nem preto e nem branco porque tende a realização suprema e, logo, ao fim de todo sofrimento que advém da sucessão de nascimentos e mortes.

Referências:

FEUERSTEIN, George. A Tradição do Yoga. São Paulo: Pensamento, 2001.
__________. As Virtudes do Yoga. São Paulo: Pensamento, 2009.
__________. Enciclopédia de Yoga. São Paulo: Pensamento, 1997.
__________. Uma Visão Profunda do Yoga. São Paulo: Pensamento, 2003.
__________. The Yoga-Sutra: An Exercise in the Methodology of Textual Analysis. (Disponível apenas com autor.)
__________. Yoga-Sutra of Patañjali: A New Translation and Commentary. Vermont: Inner Traditions, 1989.
KUPFER, Predro. Dicionário de Yoga. Florianópolis: Instituto Dharma, 2001.
__________. História do Yoga. Florianópolis: Instituto Dharma, 2001.
SARASWATI, Swami Niranjanananda. Yoga Darshan: Vision of the Yoga Upanishads. Bihar, Índia: Yoga Publications Trust, 2002.
SATCHIDANANDA, Marshall Govindan. Os Kriya Yoga Sutras de Patânjali e dos Siddhas. São Paulo: Kriya Yoga Publications, 2008.

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