segunda-feira, 30 de dezembro de 2013

Abhinavagupta: Importância & Significado



Por Fernando Liguori

A importância e o significado de Abhinavagupta tem o peso da tradição tântrica em si. Sendo importante para a tradição tântrica, ele tem um significado especial, pois sua contribuição para o entendimento da filosofia tântrica é valoroso em demasia. Nós podemos dizer que Abhinavagupta é simplesmente indispensável ao estudante do Tantra. Suas ideias são únicas e auxiliam o estudante a entender a posição tântrica de forma racional, lógica e consistente como um todo. Suas concepções preencheram as lacunas da filosofia tântrica em grande medida. Como resultado, o Tantra não foi o mesmo após Abhinavagupta.

O conhecimento esotérico do Tantra está expresso em uma linguagem simbólica que às vezes é inteligível. Os símbolos tântricos não podem ser compreendidos na falta de pistas que a própria tradição provê. Abhinavagupta deixou indicações claras para o entendimento dos símbolos tântricos. Essas indicações não são o fruto de seu entendimento racional, mas são derivadas da própria tradição. Abhinavagupta faz parte da tradição, tendo estudado com muitos gurus ilustres. Ele os reconhece por lhe iluminar em certas dificuldades e problemas.1 Portanto, por um lado a explanação do intricado simbolismo do Tantra apresentada por Abhinavagupta tem suas raízes na tradição; por outro, ela foi forjada pelo seu brilhantismo, percepção acurada (tarka)2 e insight iluminado. Sem Abhinavagupta, seria difícil clarear o caminho espinhoso da selva do simbolismo tântrico.

Abhinavagupta apresenta as dificuldades filosóficas do Tantra de maneira coerente e convincente, o que transformou a tradição tântrica em uma doutrina aceitável, lógica e racional. Da maneira como expôs, o que antes era complexo se tornou simples, o que era esotérico e místico se tornou racionalmente compreensível.

A claridade e precisão com as quais Abhinavagupta promoveu a filosofia tântrica e o talento e insight com os quais ele interpretou a posição tântrica causou um impacto impetuoso nos pensadores da tradição que, a partir daí passaram a segui-lo. Este poderoso impacto foi devido a claridade extraordinária com a qual ele lidava com os problemas. A beleza de Abhinavagupta é que ele é relevante para nós hoje. Abhinava significa novo, original, singular. Seus discípulos o chamavam de o sempre-novo, pois ele apresentava soluções simples para problemas e desafios gigantescos. Sua abordagem foi uma brisa refrescante no rosto dos adeptos da tradição, ācāryas e sādhakas.

Abhinavagupta também nos provê uma linha de unidade entre as diferentes tendências dentro da tradição do Śaivismo da Caxemira, unindo-as sob a filosofia Trika ou Pratyabhijñā. No tempo de Abhinava, o Śaivismo da Caxemira possuía quatro sub-tradições principais: as escolas Spanda, Krama, Kula e Pratyabhijñā. A escola Spanda enfatiza o aspecto dinâmico da Consciência, tecnicamente chamada spanda ou kriyā.3 Ela enfatiza a atividade espontânea da consciência como um meio de realização do Ser. A escola Krama, que enfatiza passos sucetivos de manifestação do Ser ou Śiva, na forma de mundo de criação de formas (vikalpas), fazendo uso destas formas de criação para alcançar o Ser de maneira sucessiva. A escola Kula, que enfatiza a união de Śiva e Śakti simbolicamente representados na união entre homem e mulher, busca a auto-realização através daquilo que ficou conhecido como caminho da mão esquerda (vāma-mārga), utilizando os Cinco Ms ou o ritual pañca-makāra. Especificamente, o quinto M é maithuna ou interação sexual.4

A escola Krama pode ser chamada de o caminho da formiga (pipīlīka-mārga): o aspirante espiritual (sādhaka) vagarosamente e sucessivamente cruza cada estágio como uma formiga que caminha calmamente. A escola Kula pode ser chamada de o caminho do pássaro (vihaṅgama-mārga): o sādhaka, tendo eliminado muito de sua ignorância – tanto na vida presente como nas anteriores – alcança o objetivo diretamente como um pássaro que decola do chão e voa para copa da árvore. O pássaro não precisa passar por passos graduais e sucessivos. A formiga, contudo, tem de ir por todo caminho ao longo da árvore a fim de atingir o topo.

A escola Pratyabhijñā, que enfatiza o conhecimento (jñāna) da Realidade, promove a auto-realização pelo reconhecimento da unidade com todos os seres através do amor universal. Pratyabhijñā significa tanto remoção da ignorância, que é o senso de dualidade e reconhecimento, que é a obtenção da consciência do Absoluto e sua unidade com todos os seres.5

Abhinavagupta toma o conceito de pratyabhijñā e o utiliza como um fio condutor para as diferentes tendências do Śaivismo da Caxemira, unificando-as em uma única guirlanda. Para ele, Pratyabhijñā se tornou a filosofia central do Śaivismo Trika e todas as outras escolas foram incorporadas nela. Ele assinala que Spanda ou Śakti é um outro nome para o dinamismo natural de Śiva ou Consciencia, que é tanto Śiva quanto Śakti. Assim, Pratyabhijñā, que é o conhecimento do Ser ou Śiva, não pode estar separada de Spanda. Krama também está inclusa em Pratyabhijñā, pois as formas da criação são as manifestações do Ser ou Śiva e Śiva pode ser alcançado através de passos sucessíveis também. É apenas uma questão de caminhos ou meios (upāya). Krama se encaixa na execução de śāktopāya. Mesmo seguindo o caminho da mão esquerda, a escola Kula não está longe ou afastada da filosofia Pratyabhijñā. Kula defende a utilização de ferramentas apropriadas para se atingir a auto-realização (pratyabhijñā). Essas ferrammentas especiais são os Cinco Ms utilizados de maneira altamente técnica, cujo objetivo é auxiliar o sādhaka a sair da dualidade superficial entre o profano e o sagrado. Também são ferramentas poderosas para sublimação da energia sexual em puro amor conjugal que, em contra partida, libera o fluxo contido do amor universal. A característica principal do kula-sādhanā é a transformação do sexo na mais pura forma do amor, até que este alcance o estágio de amor universal que é equivalente a auto-realização ou pratyabhijñā.

Dessa forma, Abhinavagupta sucede fazendo uma síntese bem sucedida das escolas Spanda, Krama e Kula no corpo da escola Pratyabhijñā. Portanto, é apropriado identificar a filosofia Pratyabhijñā com o Śaivismo da Caxemira em si, principalmente no contexto de Abhinavagupta. Ele foi chamado de o śaiva completo. A escola Pratyabhijñā que começou com Somānanda e foi desenvolvida por Utpaladeva, alcançou sua culminação perfeita com Abhinavagupta, que não deixou nada sem explicação e teceu todos os fios separados da tradição em um sistema coerente.

Abhinava contribuiu de duas maneiras para escola Pratyabhijñā. Primeiro ele corrigiu e modificou a posição de Somānanda de fazer desta escola um sistema completo e auto-consistente que fosse compatível com outros sistemas. Segundo, ele tomou as ideias de seus predecessores à sua expressão mais completa, tornando reais os potenciais do sistema, distinguindo e clareando os nuances sutis das questões envolvidas.

O primeiro ponto se torna evidente quando nós investigamos como Somānanda tratava a escola de gramática de Bhartṛhari. Ele acreditava que a linguagem dos filósofos não aceitava a Consciência como Realidade e que portanto sua teoria da «Palavra como Supremo» (śabda-brahmavāda) era insustentável, pois as coisas do mundo não podem ser racionalmente concebidas como «Manifestações da Palavra» ou linguagem (śabda), a não ser que «a Palavra» seja identificada com a Consciência. Contudo, Somānanda também acreditava que os gramáticos também não aceitavam a fala transcendental (parā-vāk), que é a matriz dos estados de criação paśyantī, madhyamā e vaikharī. Ele sarcasticamente observou: para os tolos gramáticos, paśyantī é o estado supremo.6

Embora Abhinavagupta não critique abertamente Somānanda, ele rejeita seu criticismo em relação a Bhartṛhari. Ele explica a Realidade ou Consciência nos termos da Fala (śabda ou vāk) no seu magnífico Parātrīśikā-Vivaraṇa, deixando claro que a posição da filosofia Trika não difere dos gramáticos. Os gramáticos identificam a Fala com a Consciência e também aceitam o estado transcendental (parā ou parapaśyantī), que é a matriz de tudo. O processo de criação, assim como no Śaivismo da Caxemira, se inicia em paśyantī. Como os gramáticos se interessam bastante pelo processo de Criação, eles começam com paśyantī. Mas isso não significa que eles omitem o transcendente (parā). Abhinavagupta corrige e modifica a atitude injustificada de Somānanda em relação a Bhartṛhari, de forma que a não-dualidade da Consciência (cidadvaita) do Śaivismo da Caxemira tornou-se coerente com a não-dualidade do Som (śabdadvaita) de Bhartṛhari.

O segundo ponto – que Abhinava é a culminação da filosofia Pratyabhijñā – se torna evidente através do estudo das obras de Somānanda, Utpaladeva e do próprio Abhinavagupta. Os primeiros lampejos da filosofia Pratyabhijñā se encontram no Śivadṛṣṭi de Somānanda, mas ele foi exposto de forma bem concisa e por conta disso, além de seu estilo literário, é de difícil acesso. Foi Utpaladeva o responsável por detalhar de forma simples os ensinamentos de Somānanda. Mas nem ele foi capaz de sanar todas as questões ou explica-las com maiores detalhes. O aspecto que se relaciona a prática espiritual (sādhanā), por exemplo, foi superficialmente revelado.

Abhinavagupta, por outro lado, cumpriu a tarefa de desenvolver a filosofia Pratyabhijñā por completo. A semente da filosofia do auto-reconhecimento (ātma-pratyabhijñā) ou auto-realização brotou com Vasugupta, cresceu com Somānanda e se tornou uma árvore pequena com Utpaladeva. Com Abhinavagupta essa árvore cresceu as alturas e ganhou inúmeros galhos com folhas, flores e frutos.

Um ponto adicional no que se refere ao significado de Abhinavagupta é que ele expôs a teoria indiana de estética sob a luz da filosofia śaiva. Ele escreveu comentários versados sobre o Nāṭya-śāstra de Bharata e o Dhvanyāloka de Ānandavardhana. No seu comentário sobre Bharata, chamado Bhāratī ou Abhinavabhāratī, ele expôs a teoria de rasa ou felicidade estética do ponto de vista śaiva da perfeição.


Notas

1. Veja Tantrāloka, versos 7-16 abaixo.

2. Literalmente, tarka significa percepção que diferencia, é a lógica transcendental, inquiridora. No Tantrāloka, capítulo cinco, Abhinava menciona que no Śaivismo da Caxemira não se adiciona yama, niyama e āsana no sistema de yoga ou śaivāgama-yoga. Ele deu importância apenas a seis membros do yoga: prāṇāyāma, pratyāhāra, dhyāna, dhāraṇā, tarka e samādhi. Os oito membros do yoga, conforme delineados por Patañjali no Yogasūtra, auxiliam os buscadores que estão no nível mais denso da prática, i.e. āṇavopāya. Mas nos níveis mais avançados da prática, i.e. śāktopāya e śāmbavopāya, eles não são utilizados. A característica principal do Śaivismo da Caxemira é consciência. A filosofia Trika considera prāṇāyāma, pratyāhāra, dhyāna e dhāraṇā como mecanismos externos utilizados na prática do yoga. Em essência, Trika postula apenas um membro do yoga: tarka, a discriminação entre o individual e o universal, a lógica discriminativa da consciência.

3. Isso levou muitos autores a pensarem que esta é uma escola de natureza śākta.

4. Veja no blog Anuttara Trika Kula o artigo O Significado da Doutrina da Mão-Esquerda ou Kulamārga para mais informações sobre essa escola.

5. द्वैत-प्रथा तदज्ञनम्, TĀ, I: 30. Veja Anuttarāṣṭikā, verso 4: सर्वाद्वैतपदस्य विस्मृतनिधेः प्रातिः प्रकाशोदयः.

6. वैयाकरङसाधूनां पश्यन्ती सा परा स्थितिः, ŚDṛ, II: 1. Parā, paśyantī, madhyanā e vaikharī descrevem níveis de manifestação na arte criativa, seja a criação do mundo por Śiva ou a criação de um cântaro por um oleiro. Os termos também se relacionam aos níveis da fala. Parā que literalmente significa a transcendente é o nível mais elevado, o estado anterior a manifestação. Paśyantī é o nível da vontade (iccha), onde a vontade para criar (ou falar) primeiro se manifesta. Madhyamā, que literalmente significa intermediário ou mediano é o estado onde a criação existe, mas apenas como uma ideia, não como a manifestação propriamente dita. Vaikharī, que literalmente significa exterior, é o estado final onde a criação existe como algo tangível.

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