A Tradição Tântrica
Por Fernando Liguori
Abhinavagupta é o principal expoente
da filosofia Trika ou Pratyabhijñā, popurlamente conhecida como Śaivismo
da Caxemira. O Śaivismo da Caxemira se destaca como o mais
proeminente sistema da tradição tântrica e Abhinavagupta seu maior expoente.[1]
Como Abhinava é um filósofo tântrico, é relevante, mesmo necessário, prover uma
introdução a cultura tântrica. Para demonstrar a importância e o significado de
Abhinava, primeiro devemos demonstrar o significado da filosofia tântrica em
si.
No público em geral existe uma
incompreenção ou má compreensão acerca do Tantra. Se acredita que a execução de
práticas tântricas como o uso de fórmulas mágicas ou mantras, invocações
de espíritos e deidades místicas pode-se adquirir, como resultado, poderes mágicos
(siddhis) e experiências inquietantes. Mas este entendimento acerca do
Tantra é uma atitude tola, ingênua, infantil, pois o Tantra é uma cultura ampla
que abrange todos os aspectos da vida. A tradição possui uma concepção
particular da Realidade e estilo de vida. Ela apresenta um arranjo de valores
que por um lado são eticamente corretos e por outro, prazerosos e satisfatórios
ao indivíduo; portanto, é uma filosofia prática. Baseados na experiência
indutiva (āgama ou āgamana) dos videntes e yogīs, o que
foi largamente verificado por uma longa tradição de experimentação, a sabedoria
tântrica forma a base para uma vida feliz e saudável, tanto para o indivíduo
quanto para sociedade. O Tantra demonstra em como aceitar e utilizar o mundo e
as circunstâncias do dia-a-dia de forma a se tornarem meios para
auto-realização. Ele apresenta uma visão integral da vida que sintetiza o
prazer (bhoga) e a liberação (mokṣa), assim como o envolvimento
com o mundo (pravṛtti) e o caminho da renúncia (nivṛtti). O
Tantra advoga um tipo especial de Yoga que vê tudo como sagrado e bom. A
mensagem do Tantra é tanto adequada para a era em que vivemos quanto
intemporal.
Outro entendimento incorreto, muito
comum entre os acadêmicos, é que a tradição vêdica somente forma a tendência
básica da cultura indiana e que a tradição tântrica seja uma corrente
tangencial, a margem social ou mesmo degenerada e pervertida. Esse é um mal
entendido colossal e nunca esteve tão longe da verdade. As āgamas ou tantras
possuem uma importância equivalente aos vedas na formação da cultura indiana.
A tradição tântrica possui algo muito importante a dizer e isso não deveria ser
ignorado se é que desejamos ter uma visão completa da filosofia, religião e
cultura da Índia.
Tanto os vedas (nigama)
quanto os tantras (āgama) têm um caráter revelatório,
pertencentes a um conhecimento da realidade que é extra-empírico ou esotérico.
Se isso é real, porque precisamos dos tantras se já existem os vedas?
Os tantras são redundantes ou trazem uma menagem diferente? Lado a lado
com os vedas, os tantras possuem um significado especial, um
significado que complementa os vedas. De acordo com os vedas e os
tantras, a Realidade Última é Consciência (citi ou saṃvit),
conhecida pelo nome de Brahman ou Śiva. A natureza dessa Consciência é tanto
conhecimento (jñāna) e atividade ou dinamismo (kriyā) e é este
aspecto dinâmico da Relidade que é responsável pela manifestação do mundo. Este
conceito de dinamismo, embora não explicitamente explicado, está implicitamente
presente nos vedas e nas upaniṣads e o implícito é feito
explícito nos tantras. A elocução das upaniṣads concernente a
Criação claramente sugerem a existência de um princípio dinâmico em Brahman. É
dito nas upaniṣads que o mundo saiu ou foi emanado de Brahman[2]
e que Ele quis: deixe que eu me torne muitos e reproduza.[3]
Estas declarações sugerem kriyā ou spanda. A declaração de que todas
as coisas vêm da própria bem-aventurança[4]
se refere em termos inequívocos a spanda. Tais declarações não podem ser
explicadas como fábulas ou fantasias míticas (ākhyāyikās) como os
vedantins o fazem.[5]
Portanto, as upaniṣads
aceitam o aspecto dinâmico da Realidade, mas elas não explicam completamente
este dinamismo. Mas essa tarefa foi cumprida pelos tantras. Nos tantras,
o dinamismo da Realidade foi completamente explanado; o aspecto imanente de
Brahman foi trazido à tona. Como resultado, no Tantra há uma atitude
extremamente positiva em relação a Criação.
Os tantras complementam os vedas
em um outro sentido. O Veda é chamado de nigama ou nigamana, que
significa dedução. O Tantra é chamado de āgama ou āgamana,
que significa indução. Acredita-se que o Veda foi revelado de uma fonte
superior – os videntes não eram os autores dos vedas, eles apenas os
recebiam ou os percebiam. Portanto, as declarações contidas no Veda têm de ser
aceitas como premissas das quais conclusões foram deduzidas. Então o
conhecimento vêdico são deduções (nigamana) provindas de premissas
reveladas. O Tantra, por outro lado, se baseia na evidência da experiência dos
videntes e yogīs. É uma tradição yogī. Abhinavagupta dá o nome de
anubhava-sampradāya, a tradição da experiência.[6]
Não estou dizendo que o Veda não
acredita na verificação do conhecimento revelado ou que o Tantra não acredita
na revelação. Ambos acreditam em ambos, mas o conhecimento vêdico vem
principalmente do processo de revelação, enquanto que o conhecimento tântrico
vem através da experiência. Na tradição indiana, revelação e experiência são
consideradas complementares – o que é revelado pode ser confirmado pela
experiência. O conhecimento vêdico é confirmado na experiência e esta
confirmação experimental é a função do Tantra. Neste sentido, Tantra (āgama)
é complementar ao Veda (nigama).
A forma externa do Tantra sugere que
ele foi revelado pelo Senhor Śiva, da maneira em que é apresentado o seu
diálogo com Pārvatī, sua consorte. Portanto é possível conceber o Tantra como
uma revelação, mas a natureza especial do Tantra é que ele é baseado na
experiência. Os videntes e yogīs experimentaram a verdade e o Tantra
pode ser tido como o registro de suas experiências, sendo o diálogo entre Śiva
e Pārvatī um artifício literário cuja intenção é tornar atraente este registro.
Abhinavagupta interpreta o diálogo
entre Śiva e Pārvatī como um diálogo dentro de nossa própria consciência, entre
os dois níveis de consciência. Ele diz: O Ser, que é alto-luminoso e que
está presente em todas as formas, tanto questiona e responde a si mesmo como se
estivesse dividindo a si mesmo como inquiridor e inquirido, mas ao mesmo tempo.[7]
Também é dito que o Senhor Śiva foi quem, tomando a forma de professor e
discípulo, revelou o Tantra por meio de perguntas e respostas.[8]
Portanto, o diálogo é entre o buscador interior e do Ser que responde. Aquele
que questiona é o ser inferior (aṇu) e o Ser que responde é Śiva, o
Absoluto. A mesma interpretação pode ser dada ao diálogo entre Arjuna e Kṛṣṇa
na Bhagavadgītā.[9]
Mesmo que o diálogo fosse
compreendido literalmente e o Tantra fosse considerado uma tradição
revelatória, não haveria discrepância. As noções gêmeas de que por um lado o
Tantra foi revelado por Deus e por outro ele foi experimentado por videntes e yogīs
são compatíveis, pois como eu disse acima, o que é revelado pode ser confirmado
pela experiência. A tradição tântrica aceita os dois pontos de vista.
Assim, podemos inferir que a
tradição tântrica, sendo altamente significante em seu próprio contexto, é também
complementar a tradição vêdica das upaniṣads. As ideias tântricas que
estão implícitas e às vezes explicitamente expressas nos vedas e nas upaniṣads,
estão completamente reveladas nos tantras. Portanto, Veda e Tantra
formam a mesma linha de pensamento quando olhamos mais atentamente. Aqueles que
compilaram os tantras em um período pós-vêdico[10]
estavam conscientes dessa continuidade e unicidade entre as tradições vêdica e
tântrica; eles deixaram isso bem claro nas escrituras, está lá, para todos
terem acesso. No Kulārṇava-tantra o Senhor Śiva diz a sua consorte,
Pārvatī: Os seis sistemas da filosofia vêdica são os membros do meu corpo
como os pés, estômago, mãos e cabeça; aqueles que os diferencia está
desmembrando meu corpo. E todos estes são os seis membros do Kula; portanto, ó
minha amada, conheça a disciplina vêdica para se tornar uma kaulika tāntrika.[11]
O Tanta não desfruta o status de ser
complemetar ao Veda. Seu complemento é apenas incidental. De fato, o Tantra tem
um status autônomo e idenpendente. Seria bastante rasoável ver o início da
tradição tântrica no tempo em que os videntes, sem nenhuma fidelidade ao Veda,
independentemente questionavam a vida, fazendo investigações práticas na busca
da consciência e finalmente encontando suas respostas. As descobertas dos
videntes tântricos complementa o conhecimento vêdico ou qualquer outra tradição,
mas da mesma maneira, incidental. O significado da tradição tântrica reside não
em seu complemento ao Veda ou qualquer outra tradição, mas no seu potencial
automono como uma filosofia de vida completa e perfeita.
De alguma maneira, o Tantra é mais
completo e mais importante que o Veda. A razão por trás desta declarasçao é
simples. O Tantra é o Veda mais o Tantra; o Veda é o Veda mais o Tantra em sua
forma implícita. Quer dizer, o Tantra, além de sua própria sabedoria,
incorporta completamente a sabedoria do Veda, mas o Veda contém a sabedoria do
Tantra apenas na forma implícita e requer que o Tantra a faça explícita.
Além do mais, os ensinos das āgamas
são epistemologicamente mais sólidos do que os ensinos do nigama. O que
é obtido pela experiência é conhecimento científico e ele é confirmado por si
mesmo, ele não precisa da revelação para confirmá-lo. Ao contrário, a revelação
requer a experiência para sua confirmação. Revelação sem experiência permanece
como um objeto de fé e não se transforma em conhecimento. A confirmação vem da
experiência, não da revelação.
O Tantra pode ser chamado de ciência
e ao chamar o Tantra de ciência, não estou mudando o significado essencial do
termo «ciência» e nem o utilizando incorretamente. A razão é o princípio geral
que subjaz o método científico. Ciência é o estudo racional de qualquer
coisa. A razão torna claro que o estudo baseado na especulação ou na fé não
pode ser seguro; nós só podemos depender daquilo que podemos observar e
cognizar. Portanto, a ciência não se baseia na fé ou na especulação, mas na
experiência ou cognição.[12]
A razão também deixa claro que normalmente nós só possuímos um modo de
experiência, que é tanto empírico como sensorial. Experiência no contexto da
ciência significa experiência empírica. Portanto, a ciência também pode ser
definida coo um estudo empírico.
Mas utilizando a mesma faculdade da
razão, torna-se claro que a ciência é baseada na experiência empírica não pela
definição mas simplesmente porque no presente a ciência sabe de nenhum modo de
experiência que não seja empírica. Se outro modo de experiência for descoberto,
não haverá hesitação por parte de ninguém em chamá-lo de cintífico. Então o
único obstáculo seria provar que a experiência é genuína e não um devaneio, uma
alucinação ou uma ilusão. Ela se torna científica pela virtude de ser uma
experiência.
O Tantra é baseado na experiência
dos videntes, yogīs e experimentos espirituais. A eles é solicitado
investigar a natureza interior e os potenciais da humanidade, fazendo amplos experimentos
tanto no nível individual quanto no social. Seu laboratório é o ser humano e,
por extenção, a sociedade. Eles não possuem métodos modernos ou facilidades
para o registro dos ensinamentos, processo de arquivo de dados; mas eles têm o
seu próprio método particular. A fim de registrar suas descobertas de forma
agradável e interessante, não adotam a linguágem científica prosaica, mas
expressam suas descobertas em termos poéticos utilizando metáforas, símbolos e
alegorias.
As descobertas dos videntes
tântricos foram verificadas e confirmadas por uma duradoura tradição de yogīs
que perciste até os dias de hoje. Qualquer um pode verificar a verdade destes
resultados por si mesmo e isso não envolve risco algum. Assim, o Tantra é uma
ciência – uma ciência espiritual. Da mesma maneira que existe a ciência
material, existe também a ciência espiritual, cuja metodologia é a investigação
espiritual. A ciência material tem a tecnologia como uma fórmula de aplicação.
Da mesma maneira, a ciência espiritual também tem uma tecnologia e essa
tecnologia é chamada de Yoga. O Tantra apresenta o Yoga de uma forma bem
variada. Da mesma maneira que a tecnologia da ciência material é utilizada nos
mais diversos campos, o yoga tântrico, a tecnologia da ciência espiritual, é aplicado
nas mais distintas áreas da natureza humana.
Não devemos nos ocupar pensando que
tudo o que foi escrito no extenso corpo dos tantras foi baseado na
experiência somente. Da mesma maneira que nem tudo o que está escrito nos vedas
é revelação, nem tudo o que está escrito nos tantras é experiência. Os
textos tântricos também contêm muito material hipotético, hiperbólico ou até
mesmo irrelevante. Se formos ter uma visão realista do Tantra sem nenhum tipo
de apego sentimental indevido aos textos tântricos, devemos cuidadosamente
extirpar elementos desnecessários para compreender a verdadeira posição
tântrica.
Não há dúvida de que a razão seja a
única ferramenta disponível para cumprir a tarefa e o único critério de
avaliação. Nem o sobrenatural se opõe a razão. Estar além da razão significa
ser incognoscível pela razão, não pelo irracional ou anti-racional. Portanto, a
razão é a melhor ferramenta e o melhor critério para determinar a real intenção
do Tantra, da mesma maneira que é a melhor ferramenta para julgar qualquer
coisa. Mesmo quando aceitamos a revelação (śruti), o fazemos porque a
razão nos diz que não podemos conhecer ou experienciar a Realidade através da
razão ou a percepção sensorial. É apenas pela utilização da razão que nos
tornamos conscientes das limitações da razão em si e reconhecemos a necessidade
de aceitar a revelação. Que a Realidade está além da razão está claro pela
própria razão. A razão é requerida não apenas para tornar a revelação
inteligível, mas por nos fazer conscientes do caráter da revelação em primeiro
lugar.
A posição do Tantra soa não somente
lógica e epistemológica, mas também ontológica e axiológica. O Tantra provê uma
visão ampla do mundo, satisfatoriamente explicando todos os aspectos da
Realidade. Seu conceito metafísico de consciência dinâmica (cit-śakti)
com liberdade (svātantrya) como sua natureza, consistentemente explica
todos os problemas da Realidade, incluindo a vida e o mundo. As descobertas
tântricas apontam o fenômeno da consciência, que chamamos de Ser ou Puro
Eu, que aparece em um nível superficial como a ponta de uma grande
Realidade que jaz profunda em nosso interior. Consciência é como um iceberg,
apenas uma pequena porção dela é visível sobre a superfície ou como um poço
artesiano, que está conectado invisivelmente a um profundo e vasto reservatório
de água. Se aceitarmos essa premissa, significa que podemnos explorar os níveis
profundos de nossa realidade interna passo-a-passo. A auto-realização pode ser
alcançada gradualmente. Mesmo em nosso estado normal de consciência temos um
grau determinado de auto-realização, pois o poder da consciência (cit-śakti
ou kuṇḍalinī-śakti) já está operando em nós na forma das faculdades
mentais e processos fisiológicos. É óbvio que esta pequena porção da
Consciência irá se manifestar de maneira distinta nas mais variadas pessoas,
seja naturalmente ou pelo processo deliberado de descoberta das qualidades da
Consciência.[13]
Nós podemos estender este processo a manifestação completa da Consciência,
auto-realização ou a obtenção de um elevado estado natural de espiritualidade.
A contribuição mais significante do
Tantra é no campo axiológico – o campo dos valores. Os videntes tântricos, como
os videntes indianos em geral, estavam conscientes desde os primórdios que
existem dois tipos básicos de valores na vida. Os valores éticos ou morais por
um lado e os valores prazerosos ou que proporcionam felicidade por outro. Os
valores morais morais são tecnicamente chamados de śreya, quer dizer, aquilo
que é bom; os valores que proporcionam felicidade ou prazer são
tecnicamente chamados de preya, quer dizer, aquilo que é prazeroso.
No sistema indiano existem quatro valores fundamentais: dharma
(satisfação moral), artha (satisfação monetária), kāma
(satisfação dos desejos) e mokṣa (auto-realização). Moralidade está
conectada aquilo que é bom; a satisfação monetária e dos desejos está
conectada aquilo que é prazeroso. Os antigos videntes também estavam
conscientes de que na vida existe uma dicotomia muito grande entre aquilo
que é bom e aquilo que é prazeroso. As pessoas têm de minar ou
suprimir totalmente aquilo que é prazeroso em detrimento daquilo que
é bom. Os videntes concluiram portanto que valores que são meramente «bons»
sem nenhum elemento de «prazer» são claramente inadequados, nada práticos.
Portanto, os videntes tântricos
descobriram um sistema que sintetiza aquilo que é bom e aquilo que é
prazeroso, verdade e beleza ou o bom em nós mesmos e o bom nos outros. Eles
encontraram a resposta naquilo que chamamos de auto-realização, mokṣa. Mokṣa
não é um valor transcendental, mas o alicerce de todos os sucessos na vida.
Todos os poderes ou talentos para se trabalhar eficientemente e graciosamente
em todos os aspectos da vida vêm do Ser, assim como todo poder elétrico que
movimenta o ventilador e ascende a lâmpada vem da usina hidroelétrica. Toda
criatividade, artística ou não, vem do Ser. É a partir do Ser que o
entendimento iluminado sobre qualquer coisa vem a mente como um lampejo
espontâneo (pratibhā). Portanto, quanto mais sintonizados com o Ser
estivermos, mais seus poderes florescerão. Portanto, uma pessoa auto-realizada
é um professor melhor, um filósofo melhor, um cientista melhor, um líder
melhor, um empresário melhor, um gerente melhor etc.
A auto-realização incorpora em si
mesma tanto a moralidade quanto a satisfação dos desejos. A moralidade está
naturalmente presente em mokṣa por duas razões: primeiro, o Ser que é
alcançado em mokṣa é naturalmente bom. É por isso que ele se chama Śiva,
que literalmente significa o benigno ou o auspicioso. É ilógico
pensar que más ações poderiam surgir de um ser naturalmente benigno. Rāmakṛṣṇa
Paramahaṃsa costumava dizer que assim como apenas mel pode cair de um favo de
mel, apenas boas ações podem vir do estado-Śiva, quer dizer, o estado de
consciência bhairávica.
Segundo, no estado de mokṣa
ou auto-realização, o auto-realizado se sente em unidade com o todo, com tudo o
que existe. Ele se torna um com tudo.[14]
É natural que tal pessoa faça o bem para todos.[15]
O que obstrui o Ser é a ignorância (ajñāna). A ignorância é definida
como senso de dualidade (dvaita-prathā ou bheda-buddha).[16]
É o sentido de que algo ou alguém é o outro.[17]
Quando o senso de dualidade é dissipado e o auto-realizado reconhece sua
unidade com tudo o que é realizado – quer dizer, o amor universal – então uma
das características mais essenciais da auto-realização é conquistada.
O sentido de dualidade é a raiz da
imoralidade.[18]
Uma pessoa só pode explorar alguém quando ela o considera como algo distinto de
si mesma. Mas se ela o considerasse como parte de si mesma, como poderia
explorá-la? Uma pessoa auto-realizada não explora ou causa prejuízo a ninguém,
pois a auto-realização é um estado de perfeito amor universal. Ao contrário, um
auto-realizado ajuda a todos, pois isso é um estado espontâneo de sua
moralidade.
Portanto, a auto-realização
sintetiza tanto a satisfação dos desejos quanto a moralidade, tanto o prazer
quanto o que é bom. Na auto-realização, o maior interesse é o bem das pessoas e
o bem das pessoas é o bem de si mesmo e isso é tanto bom quanto prazeroso.
Invocando o peso da experiência, me arrisco a dizer que o amor é um dos maiores
exemplos ou fenômenos dessa síntese. No amor, o bom para o amante é o bom para
o ser amado, o amor se torna um. Uma mãe, por exemplo, sente sua unidade com o
filho e sente feclicidade pela felicidade do filho. O amor naturalmente
proporciona boas ações por parte do amante em relação ao amado. Contudo, além
de promover essa atividade benéfica em relação a pessoa amada, o amor provê
satisfação incomensurável, prazer e alegria a pessoa amada. O arrebatamento do
amor é tão profundo que apenas o verdadeiro amante pode compreendê-lo em toda
sua inteireza. Usando uma frase de Shakespeare, a benção que ele dá é a que
ele recebe. O amor é a verdadeira natureza do Ser e um auto-realizado é um
verdadeiro amante. O amor é a principal característica dos santos e sábios que
alcançaram a auto-realização. Quanto mais realizamos o Ser, maior será o fluxo
natural do amor em nós.
A singularidade da concepção
tântrica de mokṣa ou auto-realização é dupla: primeiro, de acordo com o
Tantra, mokṣa não é um valor transcendental, mas o alicerce de todos os
sucessos e conquistas em todos os aspectos da vida; segundo, de acordo com o
Tantra, mokṣa não consiste meramente de aquilo que é bom, mas de aquilo
que é prazeroso, é uma síntese de ambos. Essa noção de mokṣa
modifica a classificação popular indiana dos quatro valores inerentes a vida.
De acordo com a classificação popular, dinheiro (artha) e satisfação dos
desejo (kāma) estão sob aquilo que é prazeroso e a moralidade (dharma)
e auto realização (mokṣa) estão sob aquilo que é bom. Mas de
acordo com a classificação tântrica, apenas a moralidade está sob aquilo que
é bom, na medida em que mokṣa é a síntese de tanto o que é bom
quanto o que prazeroso, então é um valor superior.
[1] Abhinavagupta foi o autor do Tantrāloka
(A Luz sobre os Tantras) no qual ele sistematiza a filosofia e religião
tântrica de maneira racional e coerente. Portanto, o Tantrāloka é a
apresentação mais lógica e racional da filosofia tântrica.
[5] Além do mais, a dourada Umā ou Pārvatī
(umā-haimavatī) que aparece na famosa história de Yakṣa na Kena-upaniṣad
sugere que Brahman é Śiva e Umā é Śakti. Na tradição tântrica, Umā é sinônimo
de Śakti.
[7] स्वात्मा सर्वभावस्वभावः स्वयं प्रकाशमानः स्वात्मानमेव स्वात्माविभिन्नेन प्रश्नप्रतिवचनात् प्रष्टृ स्वात्ममयेन अहंतया चमत्कुर्वन् विमृशति, PTv, p. 14-15.
पूर्वोत्तरपदैर्वाक्यैः तन्त्रं समवतारयत्॥, PTv, p. 12.
[9] Veja Gītārtha-saṃgraha. O
comentário tântrico da Bhagavadgītā por Abhinavagupa.
[10] A tradição tântrica já existia em sua
forma oral já nos tempos do Veda, mas foi somente no período pós-vêdico que sua
doutrina foi compilada nas escrituras.
तेषु भेदन्तु यः कुर्यान्ममाङ्गं चेदयत्तु सः॥
एतान्येव कुलस्यापि षडञ्गानि भवन्ति हि।
तस्माद् वेदात्मकं शास्त्रं विद्धि कौलात्मकं प्रिये॥, KT, II: 84-85.
[12] Abordaremos este assunto novamente nos
próximos estudos do Tantrāloka.
[13] Infelizmente nos encontramos a mercê
da falta de palavras para determinar conceitos inteligíveis. Cit ou citi
no português traduzimos como consciência, uma palavra que implica
relação sujeito-objeto, portanto, dualidade. Mas cit é não-relação. Isso
significa que ela tem relação imediata onde o eu e o isto são indistinguíveis.
[17] कर्णात् कर्णोपदेशेन सम्प्राप्तमवनीतलम्, YGHṛ, I: 3. Veja também षैवादीनि रहस्यानि उर्वमासन्महात्मनाम् ऋषीणां वक्त्रकुहरे, ŚDṛ, VII: 107.
[18] Abhinava costumava apontar dualidade
como egoísmo em seus escritos sobre estética.
2 comentários:
Influenciado por: P. Bervely Randolph; Karl Kenner utilizou-se das práticas tântricas sexuais orientais ao fundar a O.T.O ;posteriormente com a afiliação de Crowley a ordem e a rapidez do qual alcançou o IXº Grau; juntamente com a notoriedade de sua figura publica ; cunha-se a expressão neológica " Tantra Negro"...também conhecido como o tantra da "mão esquerda" apresentando-se como um " tantra ocidentalizado" que tem como principal discrepância a consagração dos kalas e a geração da "Criança mágica" em suas práticas rituais...Assim; qual a verdadeira origem e fundamento do "Trantra Negro" e qual seu mecanismo científico que dá validade funcional a seus rituais?
Mas onde se fala disso nesse texto. Neste blog é abordado o Shaivismo da Caxemira. De qualquer maneira, essa história de "Tantra Negro" tornar-se o "Tantra da Mão Esquerda", nunca vi informação mais descabida e fora do contexto. Veja uma introdução a O.T.O. no link abaixo:
http://circulotifoniano.blogspot.com.br/2014/09/evocacao-sexual.html
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