Yoga, palha e bom-mocismo
Upanishads:
sem papas na língua
Por Christian Rocha
Digam-me: é
só impressão minha ou realmente há no yoga uma tendência muito grande para silenciar diante da ignorância, de heresias e de absurdos evidentes e, ao
mesmo tempo, criticar e repudiar veementemente todos aqueles que decidem
criticar e repudiar a ignorância, a heresia e o absurdo? É proibido divergir e
questionar? Toda crítica precisa ser vista como um ataque pessoal?
Estas
perguntas devem-se ao seguinte.
Como todos
sabem, hoje em dia há muita diversidade no yoga -- dos yogins habituados ao samadhi até os mallakhambistas competidores. Há pessoas atentas à tradição e
há pessoas que praticam o yoga por esporte. Ainda que seja impossível e inútil
estabelecer o que é «melhor» e o que é «pior» -- visto que práticas e conteúdos
diferentes se prestam a pessoas diferentes --, é possível discutir essas
diferenças, aproximá-las e compará-las. Não há nada mais normal do que ter
preferências e expressá-las -- dentro e fora do yoga. Para o estudante sério,
ter preferências e expressá-las é uma forma de evoluir. Nenhum estudante sério
expressaria suas preferências pelo desejo simples de encontrar eco; ele as
expressa para trazê-las aos debates e expô-las às críticas (preferencialmente,
as construtivas), para mantê-las vivas e em constante evolução.
Há no
entanto uma grande dose de bom-mocismo no yoga, um excesso de respeito e
polidez ao lidar com diferenças -- seja de conteúdos, de opiniões, de
preferências. Já ouvi algumas pessoas se justificarem dizendo que dois sistemas
como, por exemplo, Bikram e Sivananda simplesmente não podem ser comparados
porque não tratam da mesma coisa, isto é, são diametralmente opostos. Mas os
fatos são outros: estes dois sistemas têm «yoga» no nome, seus respectivos
criadores também falavam constantemente que o que ensinam é «yoga». Logo, os
dois sistemas e os dois mestres podem ser colocados no mesmo balaio e estudados
à luz dos mesmos critérios -- por exemplo, a definição clássica, dada por
Patañjali. Se não podem, alguém por favor me diga por que.
Em busca de
explicações para a habitual indisposição para discutir e comparar, encontro
três: preguiça, medo de discutir ou apego patológico às próprias idéias. Se a
discussão e o combate intelectual não são compatíveis com o espírito do yoga,
essas três coisas são ainda menos.
No campo das
idéias, dentro ou fora do yoga, eu sempre achei que a atitude ideal era a
promiscuidade absoluta: eu abandono minhas idéias tão logo encontre outras
melhores. Idéias devem ser tratadas à base de pão velho e porrada. Idéias devem
ser expostas ao ridículo e ao debate, devem ser achincalhadas e maltratadas,
devem ser deixadas ao relento. Se sobreviverem a tudo isso é porque realmente
vale a pena mantê-las e pronunciar-se em defesa delas.
Quando
deixamos o plano individual e passamos ao plano coletivo/social do yoga e
quando deixamos a solidão da prática individual e passamos aos métodos e às
práticas em grupo é natural que surjam divergências e conflitos. No yoga, tudo
aquilo que pode ser compartilhado também pode ser discutido, criticado,
estudado e aperfeiçoado e todas estas ações são naturalmente permeadas por
divergências e conflitos. Estes fatos só se tornam ruins se são evitados a
qualquer custo, como se discussões não fizessem parte da natureza humana e fossem
o antônimo de civilidade, como se um yogin fosse um semideus numa torre de
marfim.
Quem quer
que tenha estudado a biografia dos mestres de diversas tradições espirituais --
dentro e fora da Índia -- sabe que os atributos que definem o ser humano não se
dissolvem com a evolução espiritual. É claro que certos desvios de caráter se
dissolvem, assim como o ímpeto para divergir e expressar opiniões -- Albert
Camus dizia que a maioria de nós é um incendiário na juventude e um bombeiro na
maturidade. Contudo, por mais iluminada que seja uma pessoa, ela continuará
tendo fome, sede, contas para pagar e roupas sujas para lavar. E precisará de água e comida, terá que ir ao
banco e precisará de sabão. Em outras palavras, o sujeito iluminado continuará
vivendo em sociedade e lidando com pessoas não-iluminadas. Os conflitos
continuarão sendo inevitáveis. Por que negá-los? Que mal há em chamar A de A, B
de B e dar uns toques em quem insiste em chamar A de B e B de A?
Digo isso
tudo porque já houve quem questionasse certos temas que tenho abordado neste
blog, assim como o tom crítico que uso para abordá-los. A relação entre estes
escritos e o yoga não é direta. Yoga é prática silenciosa, como a maioria já
sabe. Eu tendo a escrever demais e a falar demais. Mas este sou eu e seria
infinitamente pior se eu me pusesse a forçar um «tipo» com base naquilo que a
maioria das pessoas crêem que um yogin «tem que» ser. Não há nada pior no yoga
do que seguir estereótipos ou seguir a opinião alheia apenas pelo desejo pouco
sincero de agradar e de manter uma aparência que corresponda àquilo que as
pessoas imaginam ser um yogin. Ao mesmo tempo, não me parece que a inexistência
de divergência e conflitos resulte de uma harmonia genuína entre as pessoas. Existe uma enorme diferença entre polidez e ahimsa. Em muitos casos, quem
critica os críticos mostra-se mais beligerante que os próprios críticos.
Claro que é
possível que o silêncio diante dos turbilhões de idéias e possibilidades
decorra de uma noção de que há coisas mais importantes para fazer. O indivíduo
pode se considerar sinceramente superior às miudezas que geram discussões como
as deste texto, sem que haja nessa atitude qualquer traço de egocentrismo ou
arrogância; ele faz assim simplesmente porque sabe que o silêncio é uma boa
resposta e sabe qual é seu lugar no mundo. Supondo que seja este o caso, seria
uma enorme falta de compaixão para com pessoas que, como eu, dependem dos
sinais e das orientações de pessoas iluminadas, dispostas a explicar, por
exemplo, que todos os parágrafos anteriores são -- como dizia Sto. Tomás de
Aquino -- palha, somente palha.
Om Shanti.
1 comentários:
Concordo, vejo com nojinho gentalha que se presta a dar instruções sobre o Trika e depois tem uma 'caidinha' pelo ocultismo, o que, por definição, já demonstra aonde vai as possibilidades de um sujeito e depois vem com o bom mocismo de dar uma de yogue.
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