Não existe melhor ou pior
Sarvangasana
Por Christian Rocha
Cristalizou-se
ao longo das últimas décadas a idéia de que o bem é relativo e de que não
existe verdade. No yoga, a fixação desta crença fê-la criar raízes e ramos e
produzir frutos, redundando num sem-número de métodos maravilhosos. Embora cada
um deles ostente uma bandeira diferente, com cores diferentes e formatos
diferentes, só há um lema: «não existe melhor ou pior».
Um dos
pilares desta crença é a compreensão literal do panteísmo hinduísta. Se «tudo é
Um», realmente não faz diferença seguir esta ou aquela direção. Já somos o que
deveríamos ser.
Decerto nada
acontece fora de Deus e nada existe em «outro plano»;
mesmo as mais tresloucadas idéias fazem parte do «Um». Assim, a própria noção
de ilusão é estranha diante da idéia de que «tudo é Um». Porém, quem diz «não
existe melhor ou pior» ou «não existe certo ou errado» não está se referindo a
um plano em que «tudo é Um», tampouco está vivendo nesse plano.
A existência
neste mundo implica diferenciações materiais e conceituais. Estar vivo é
diferenciar-se. Tanto melhor é a vida quanto mais clara é essa diferenciação --
isto é, quando maçãs são vistas como maçãs, canecas como canecas, automóveis
como automóveis, o Joãozinho como Joãozinho e a Mariazinha como Mariazinha.
Logo, neste mundo existe melhor e pior, certo e errado porque esta
diferenciação é a própria substância deste mundo.
No plano da
eternidade, em que «tudo é Um», a própria noção de moral não tem o menor
sentido. Neste mundo -- que é precisamente onde uma pessoa vive, trabalha, come
e dorme, paga contas, produz idéias e as expressa -- a moral não apenas é
possível como também é necessária -- daí todas as distinções entre certo e
errado, melhor e pior.
Portanto, de
duas uma: ou (i) o indivíduo assume integralmente que «tudo é Um» e silencia
sobre o que quer que seja ou (ii) assume as limitações e necessidades do plano
em que vive e pronuncia-se de acordo com elas. E é óbvio que as postulações de
uma pessoa sobre a vida de um modo geral só fazem sentido se ela se dispõe a
submeter as especificidades da própria vida a essas postulações.
***
«Tudo está fluindo da melhor forma»
Deparei-me
recentemente com um post num blog sobre «dog yoga» (modalidade em que posturas
inspiradas no yoga são realizadas junto com seu cachorro). Qualquer pessoa com
mais de dois neurônios sabe que «dog yoga» não é yoga. Se você tem alguma
dúvida disso ou se esta frase soa rude ou antipática, talvez seja melhor você
fechar esta página e não voltar a ela. Se não tem, prossiga.
Eis o
diálogo.
Meu
comentário, que deu início à troca:
Obviamente você não deve satisfações a mim e a quem quer que seja sobre as
razões que o levam a publicar certas informações em seu site, tampouco tenho
como objetivo inquiri-lo sobre isso. A casa é sua, não minha.
Seja como for, devo dizer que fico especialmente curioso sobre suas
intenções neste post. Chama-me a atenção o contraste entre o fato de que não se
trata, em nenhuma hipótese, de algo que se possa chamar de yoga (o que pode ser
verificado e validado por diversas formas, das mais intuitivas às mais
«científicas», incluindo as mais tradicionais e as mais modernas) e o fato
mesmo da reprodução despretensiosa da informação, isto é, absolutamente
desprovida de qualquer crítica.
Talvez tenha sido o caso de transmitir informações relacionadas ao yoga
independentemente do teor e da qualidade, como mera curiosidade sobre o lado
exótico do yoga e do que dele decorre. Contudo, não vejo por que isto deporia a
favor do post, muito menos a favor do yoga. Onde quer que haja objetos
diferentes tratados com o mesmo nome, cabe a nós profissionais manter a clareza
das informações e dos conteúdos. E, claro, esta responsabilidade aumenta quando
nos dispomos a escrever publicamente sobre o assunto.
Se achar adequado falar um pouco disso (isto é, falar do que não foi dito),
o acompanharei com satisfação.
A réplica:
Querido
Christian,
Esse blog tem a função de divulgar a prática de yoga e massagem ayurvédica
bem como assuntos relacionados ao tema. Quando me refiro a assuntos
relacionados ao tema abro o leque e divulgo tudo que eu achar que será
relevante de alguma forma, mesmo que cause polêmica.
Entendo esse caminho milenar não como uma prática rígida mas com muita
suavidade. Por isso faço e sigo o caminho da yoga e ayurveda com muita
flexibilidade e de forma que se adapte ao meu dia dia numa cidade como São
Paulo e sempre ouvindo minha intuição.
Não existe certo ou errado, melhor ou pior. O que existe está ai e está
fluindo da melhor forma como deve fluir.
Espero que continue acompanhando nosso trabalho.
Publiquei a
seguinte tréplica, que foi apagada pelo dono do blog horas depois:
Agradeço a publicação de meu comentário e sua resposta.
Se você não vê diferenças entre certo e errado, posso supor que você não as
vê nem em sua própria vida e em seu próprio trabalho, certo? Por que, então, eu
deveria continuar acompanhando seu trabalho, como você sugere no final de sua
resposta?
Por favor, não me entenda mal. A pergunta pode soar retórica e antipática,
mas na verdade é bem objetiva.
Por muito tempo eu acreditei que não existe certo ou errado, melhor ou
pior. No plano a partir do qual os mestres encaram a realidade, realmente tais
adjetivos não fazem muito sentido. Mas no plano em que nós nos encontramos --
em que dialogamos e trabalhamos para perpetuar o yoga --, adotar tal afirmação
(«não há certo ou errado») como regra mais confunde do que esclarece.
Por exemplo, se não existe certo e errado, qualquer coisa pode receber o
nome de yoga e ser divulgada como tal. Comer parafusos, talvez. Ou a
auto-mutilação. Se não há certo ou errado, só o mero acaso explicaria nossa
permanência num caminho como o yoga e, portanto, bastaria fazer qualquer outra
coisa que recebesse este nome para ser um yogin e para realizar-se como tal. O
que quero dizer com estes exemplos extremos é que uma análise objetiva de
certas afirmações pode mostrar a extensão de sua validade como instrumento para
lidar com a realidade.
Então, a flexibilidade, a adaptação e a fluidez -- como qualquer atributo
que se use para desenvolver qualquer tipo de atividade, disciplina ou
auto-estudo -- têm limites. É precisamente por este motivo que o yoga mudou tão
pouco na Índia, sobretudo entre aqueles que o criaram, e mudou tanto no
Ocidente.
Além de
apagar minha tréplica, o dono do blog aparentemente deu a discussão por
encerrada, porquanto não houve mais nenhum sinal. Insisti, enviando um outro
comentário, porém já prevendo o resultado.
1) Se sou
«querido», por que apagou meu comentário?
2) Se não
existe certo ou errado, por que apagou meu comentário?
3) Se não
existe melhor ou pior, por que apagou meu comentário?
4) Se tudo
está fluindo da melhor forma, por que apagou meu comentário?
Eu entendo
que possa ter recusado minha tréplica. O que não entendo é a ausência de
coerência entre palavras e ações.
As perguntas
não foram retóricas, mesmo eu sabendo que elas trariam o fim prematuro do diálogo.
Algumas horas depois todos os comentários foram
apagados.
***
Satya e bom-mocismo
A maior
parte das pessoas que estuda e ensina yoga hoje em dia considerará que fui
agressivo e que não havia nenhuma necessidade de incomodar uma pessoa com
questionamentos a respeito do que quer que seja.
Eu
sinceramente duvido disso, por vários motivos.
Primeiro,
pelos motivos expostos em meu primeiro comentário ao autor do post sobre «dog
yoga»:
Onde quer
que haja objetos diferentes tratados com o mesmo nome, cabe a nós profissionais
manter a clareza das informações e dos conteúdos. E, claro, esta
responsabilidade aumenta quando nos dispomos a escrever publicamente sobre o
assunto.
É evidente
que eu, como professor, tenho a obrigação não apenas de transmitir o que é
certo mas também de questionar uma pessoa quando acho que ela não está
transmitindo o que é certo. Não digo isso porque quero
impor a ela a minha visão, mas porque não descarto a possibilidade de que eu
mesmo esteja errado. Portanto, uso o
questionamento da seguinte forma: se eu estou certo e a
outra pessoa errada, ela pode passar a fazer o certo; se eu estou errado e ela
certa, eu é que posso passar a fazer o certo; nos dois casos as duas pessoas
podem ganhar, nos dois casos o yoga ganhará.
Logo, quando
há divergências o questionamento não é apenas interessante, ele é necessário
também, sobretudo quando tratamos de uma tradição que tem autores e história e
quando participamos de um círculo de pessoas teoricamente dispostas a propagar
essa tradição.
Segundo, uma
afirmação não-ficcional só merece ser levada em conta se ela inclui o próprio
autor. Por exemplo, dizer «não existe certo ou errado» ou «não existe melhor ou
pior» dispensa automaticamente o ouvinte de dar ouvidos ao que quer que esse
autor venha a dizer depois disso. Se todas as idéias e palavras têm o mesmo
valor, por que raios eu deveria ouvir aquele sujeito em vez de ouvir uma
conversa de botequim ou as entrevistas de um programa de auditório?
Este caso é
um exemplo de paralaxe cognitiva, definida pelo filósofo Olavo de Carvalho como «o deslocamento entre o eixo da construção conceitual e o eixo da
experiência existencial». Em palavras mais simples: aquilo que o sujeito diz
não tem a menor relação com aquilo que ele efetivamente vive -- e, se não tem,
não pode ser levado a sério a não ser como ficção.
Uma resposta
a esta crítica é «você não é obrigado a me levar a sério», mas mais uma vez é
evidente o deslocamento entre a vida que a pessoa vive e aquilo que ela diz,
pois é claro que ela gostaria de ser levada a sério, respeitada e aprovada,
sobretudo por alunos e clientes.
Ademais, se
isto agrada aos viciados em yamas, o fenômeno
da paralaxe cognitiva nada mais é do que um desrespeito a satya. Hoje em dia há poucas coisas mais comuns do que faltar com a verdade em
nome de um bom-mocismo que as pessoas insistem em chamar de ahimsa.
***
Realmente
não me importo de ter comentários apagados ou de não encontrar nenhum espaço ou
disposição para discutir temas que considero pertinentes. Não escrevi este
texto porque estas coisas me aborreceram -- de fato não me aborreceram e não me
aborrecem. Realmente não se trata de discutir pessoas (por este motivo é que
não indiquei nomes e endereços do site e do post), mas de discutir idéias e atitudes e de analisar como isto influencia o yoga e a compreensão
que se tem desta disciplina.
1 comentários:
Eu concordo plenamente.
Não é mesmo, camarada? se não houvesse diferenciação, nesse sentido, não poderiamos distinguir de um ocultistazinha de araque de um realizado. Nem poderiamos distinguir um Yogue de um Siddha, nem um Siddha de um seguidor do Advaitin, nem de um...
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