Kaivalya não é Mokṣa
Fernando Liguori
(Kulānanda Saraswatī)
A palavra kaivalya aparece pela primeira vez no
aforismo II: 25 e vem da raiz kevala, que significa isolado. O
aforismo segue com tradução, transliteração e interpretação:
तद्अभावात् संयोग अभावो हानं तद् दृशेः
कैवल्यम्
tad-abhāvāt saṃyoga-abhāvo hānaṃ tad-dṛśeḥ kaivalyam
tad = isto (refere-se à ignorância, falta de sabedoria) • abhāvāt
= ausência (veja I: 10) • saṃyoga = fusão ou união (veja II: 17) • abhāva =
ausência (veja I: 10), aqui, desaparecer • hāna = cessação ou interrupção (da
raiz √hā «deixar») • tad = isto • dṛśi = aquilo-que-é-visto (veja II: 20)
• kaivalya = isolamento, liberdade absoluta (veja IV: 34), unidade absoluta,
estar só.
II: 25 Sem [essa ignorância], tal união [saṃyoga] não
ocorre. Essa é a liberdade absoluta [kaivalya] diante de
aquilo-que-é-visto (dṛśeḥ).
Quando a ignorância é dissipada a fusão também cessa. O
resultado é a total cessação de toda consciência e atividade corporal. Essa
suprema condição é conhecida como isolamento total de aquilo-que-é-visto que é
a subjetividade pura da «consciência primordial». Talvez o termo aqui utilizado,
«isolamento total de aquilo-que-é-visto» possa não ser compreendido
completamente. Ela não quer dizer «isolamento total de aquele-que-vê» (J. H.
Woods) ou a «liberação de aquele-que-vê» (I. K. Taimni). Ao contrario, ela se
refere à capacidade do Ser (puruṣa) de contínua percepção (de
aquilo-que-é-visto) quando essa percepção é desprovida de ideias apresentadas,
quer dizer, é «isolada». Portanto, kaivalya não é um sinônimo de mokṣa,
mukti ou apavarga (veja II: 18).
6 comentários:
Giuliano, no facebook, fez o seguinte comentário acerca dessa postagem:
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Oi camarada, boa reflexão. Se me permite comentar meus pensamentos aqui, eu sempre achei a solução suprema do saa.mkhya meio "problemática" (se for tomada como o ponto final), pois o mero isolamento do purusha, se fosse tomado como fim último , pareceria mais uma cisão, um abismo, que uma realização suprema (mokSha).
Não sei como é no yoga, mas no saa.mkhya fala-se em uma pluralidade de purusha-s. Ou seja, permanece, em última instância, uma pluralidade de "espíritos" ou princípios absortos em si mesmos e sem conciliação ou mesmo ligação em algum plano, o que, se fosse a realidade última, seria um absurdo metafísico pois a pluralidade de princípios é impossível, uma vez que não haveria nenhum princípio que reconhecesse ou unificasse essa pluralidade.
Ademais, a visão de que a única libertação é a "eliminação do mundo", por assim dizer, pode ter consequências sociais e éticas funestas, como por exemplo, a generalização de uma visão de que o mundo é ruim, de que o corpo deve ser rejeitado, etc.
Eu vejo que o vedaanta já concilia isso num plano superior. Daí que eu acho que existe uma hierarquia entre as darshana-s, mais que uma antinomia ou uma exclusão.
- - -
Eu respondi com a postagem « O Yoga que aprendemos hoje não foi ensinado por Patañjali» que pode ser acessada aí ao lado. Depois teci o seguinte comentário:
Olá Giuliano,
Om Tat Sat.
Quando comentei sua opinião, acabei ficando com a sensação de que não esgotei o assunto. Então levantei hoje com a vontade de tecer algumas ideias. Você disse que
> no saa.mkhya fala-se em uma pluralidade
> de purusha-s. Ou seja, permanece, em última
> instância, uma pluralidade de "espíritos" ou
> princípios absortos em si mesmos e sem
> conciliação ou mesmo ligação em algum
> plano, o que, se fosse a realidade última,
>seria um absurdo metafísico pois a pluralidade
> de princípios é impossível, uma vez que não
> haveria nenhum princípio que reconhecesse
> ou unificasse essa pluralidade.
Realmente, o Vedānta – bem como o Budismo – critica a posição paradoxal do puruṣa, tanto na questão de sua pluralidade quanto na sua relação com a Natureza (prakṛti). Só que, o Yoga – e também o Sāṃkhya – foi obrigado a postular a multiplicidade do puruṣa, pois, se apenas um puruṣa tivesse existido, a salvação teria sido um problema infinitamente mais simples: o primeiro homem que se libertasse determinaria a liberação de todo gênero humano. Para o Yoga, se apenas um puruṣa tivesse existido, a existência concomitante dos «puruṣas liberados» e dos «puruṣas subjulgados» - ainda que o puruṣa seja eternamente livre, puro e inatingível e associe-se com a Natureza de forma apenas ilusória – seria impossível. A Sāṃkhyakārikā (18) diz que do contrário, nem a morte, nem a vida, nem a diversidade dos sexos e das ações poderiam coexistir. É um paradoxo evidente: uma doutrina que reduz a infinita variedade dos fenômenos a um único princípio, a Natureza. Faz derivar de uma única matriz o universo fenomênico como o conhecemos e, no entanto, postula uma pluralidade de «espíritos», ainda que sejam essencialmente idênticos. Une o que parecia tão diferente e isola aquilo que, para os indianos em geral, é único e universal.
> Ademais, a visão de que a única libertação
> é a "eliminação do mundo", por assim dizer,
> pode ter consequências sociais e éticas funestas,
> como por exemplo, a generalização de uma visão
> de que o mundo é ruim, de que o corpo deve ser
> rejeitado, etc.
Bem, aqui, eu acredito que se a doutrina for bem ensinada, este tipo de engano não acontece. Essa solução soteriológica do Yoga pode até parecer pessimista ao ocidental, pois aqui a personalidade é o pilar da sociedade, da ética, da moral, da mística e da espiritualidade. Mas na mente indiana, o que importa não é a salvação da personalidade. A partir do momento em que a liberação não pode ser adquirida na atual condição humana em que a personalidade produz o sofrimento e o drama, é evidente que a condição humana – com a personalidade – deve ser sacrificada. Só que este sacrifício é recompensado pela conquista da liberação absoluta.
Vale a pena!
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