sábado, 28 de setembro de 2013

Abhyāsa & Vairāgya


Estudos sobre a Cultura Mahāṛṣi

Pātañjala Yoga

. Abhyāsa & Vairāgya .


Fernando Liguori


[Satsanga realizado durante os nove meses do Curso de Aprofundamento em Yoga ministrado pelo Instituto Kaula em 2011.]


 Na Bhagavadgītā, Arjuna faz uma referência a mente. Ele diz a Śrī Kṛṣṇa «VI: 34»:

cañcala hi mana kṛṣṇa pramāthi balavad dṛḍham |
tasyāha nigraha manye vāyoriva sudukaram.

Pois a mente é inconstante, atormentada, poderosa, obstinada, ó Kṛṣṇa! Eu considero o controle dela tão difícil como o [controle] do vento.

Quando Arjuna fez esta observação, Śrī Kṛṣṇa concordou com ele. Ele respondeu «VI: 35»:

asaśaya mahābāho mano durnigraha calam |
abhyāsena tu kaunteya vairāgyea ca ghyate.

Sem dúvida, ó Mahābāhu [Arjuna], a mente é inconstante e difícil de ser controlada. Porém, ó Kaunteya [Arjuna], através da repetição e do desapego, ela é disciplinada.

Kṛṣṇa destacou dois exercícios a fim de se controlar ou gerenciar a mente. O primeiro foi abhyāsa, que literalmente é «repetição», mas nós também chamamos de «prática». O segundo foi vairāgya, «desapego» ou «indiferença». Mantendo essas duas referências em mente, vamos primeiro considerar o desapego, depois a prática.

Quando a palavra mente é usada no Yoga, ela se refere a todas as quatro funções ou comportamentos que manifesta na vida: manas, a habilidade de refletir ou pensar, buddhi, inteligência, citta, o armazém das memórias e ahakāra, o ego.

Essa grande mente, integrada em sua totalidade, identifica, interage e se associa aos sentidos e aos objetos dos sentidos. A mente percebe o que os sentidos experimentam. Se seus olhos vêm um objeto, sua mente o reconhece, se identifica com ele, nomeia-o e o compreende em sua natureza. Se você sente o cheiro de algo, a mente o identificará e imediatamente irá apreciá-lo ou rejeitá-lo. Se você toca em alguma coisa, a mente vai reconhecê-la. Se você provar um doce, a mente irá reconhecer o sabor. Portanto, a mente se identifica e interage com os sentidos e seus objetos o tempo todo, em todas as circunstâncias.

Por que a mente se identifica com os objetos dos sentidos? Porque ela tem que fazer isso! A fim de sobreviver no mundo como um ser humano, a mente tem de seguir a lei da Natureza «prakti». Uma vez que a alma nasce, todas as faculdades do corpo, sejam sensoriais, mentais, emocionais ou intelectuais, se conectarão externamente com algo tangível e reconhecível. É por isso que a mente interage com o mundo.

Neste processo de interação existe uma busca, uma busca inconsciente de contentamento e felicidade. Não importa a direção em que os sentidos e a mente vão, você sempre está buscando felicidade e contentamento através dessa conexão ou associação. O desejo de posse e aquisição se manifesta como uma percepção subjacente de que você será feliz quando adquirir o objeto de seus desejos: «eu vivo em uma choupana, se eu vivesse em uma casa de verdade, seria uma pessoa melhor»; «eu tenho uma bicicleta, mas se eu tivesse uma motocicleta, seria uma pessoa melhor»; «eu tenho uma motocicleta, mas se eu tivesse um carro, seria uma pessoa melhor»; «eu não tenho família, se eu tivesse uma, seria uma pessoa melhor». Sempre estamos esperando que algo aconteça para sermos melhores. Nesse caminho, todas as interações na vida, com qualquer objeto dos sentidos, pessoas ou ideias, são uma busca pessoal por completude e satisfação. É isso que todos buscam por toda a vida.

Na medida em que a mente procura pelos sentidos e seus objetos, mantém-se distraída, dissipada e volátil. Quando a atração pelos objetos dos sentidos e a satisfação sensorial é reduzida, a mente se torna pacífica e quieta. Todos sabem disso, mas não são capazes de praticar porque não estão aptos a interromper a mente de seguir o trem do desejo. As pessoas são incapazes de guiar suas mentes, incapazes de saber o que realmente é apropriado e o que não é. É por isso que, a fim de controlar a mente e gerenciar seu comportamento, abhyāsa «prática» e vairāgya «desapego» têm de ser desenvolvidos.

Além da Bhagavadgītā, o Yogasūtra também menciona que, a fim de reduzir as aflições da mente e superar o sofrimento e a instabilidade mental, o praticante tem de desenvolver abhyāsa e vairāgya «I: 12»:

abhyāsavairagyābhyā tannirodha.

Através da repetição e do desapego [emerge] a cessação [da identificação com as flutuações da consciência].

A lei do apego

Rāga significa «apego», «conectar-se» e vairāgya significa «desapego». Vairāgya indica que o praticante está livre da influência dos apegos.

O Yogasūtra declara que o apego é causado pela busca por prazer e felicidade «II: 7»:

sukhānuśayī rāga.

Apego é agarrar-se ao prazer.

Você se sente atraído a pessoas, lugares e objetos que lhe trazem a sensação da felicidade. Você se apega ao sentimento e a percepção do apego, associação ou conexão, acreditando que isso lhe trará felicidade. O oposto desta sensação é o sofrimento, dukha «II: 8»:

dukhānuśayī dvea.

Aversão é agarrar-se ao sofrimento.

Apego e aversão, atração e repulsão, representam o movimento em pêndulo da mente. A mente oscila entre rāga e dvea, do apego e o prazer a rejeição e o sofrimento, de sukha a dukha. Este tem sido o comportamento da mente humana do nascimento ao momento de sua transição.

O ser humano está sempre gravitando ao redor dos lugares, objetos dos sentidos ou pessoas com quem possa experienciar o regozijo e a felicidade, evitando e rejeitando aqueles que podem gerar contenda, discórdia, conflito, tensão, confusão, sofrimento e desarmonia. Essa é a característica natural ou o comportamento peculiar da mente.

A atração pelo prazer dá nascimento ao estado de rāga na mente. Uma vez que tenha nascido, a experiência de rāga se intensifica, aumentando o apego aos objetos que supostamente trarão prazer. Neste apego e atração a mente perde seu equilíbrio. Quando o prazer do objeto do apego não é satisfeito, a mente perde sua estabilidade e experiência o sofrimento e o descontentamento. Este é o estado que Patañjali descreveu como dukhānuśayī dvea. Quando a experiência do sofrimento se manifesta devido à inexistência do prazer, a única coisa que se pode pensar na hora é nas medidas necessárias para se livrar desta perturbação. Essa oscilação entre rāga e dvea é a causa da dissipação mental, depressão e doença. Desordens psicológicas são causadas porque a maioria das pessoas não está livre da oscilação entre rāga e dvea.

No estado de depressão você se conecta com o sofrimento. Mas se você se desconecta dele, não há razão para que a depressão continue a existir. Do outro lado do pêndulo, quando você está alegre e regozijante, existe grande expectativa pelo prazer, pois está conectado ao prazer. Essa conexão a atração pelo prazer, dá nascimento aos seus pensamentos correspondentes, comportamento e ações.

Enquanto existir oscilação entre dor e prazer, todas as faculdades da mente – manas, buddhi, citta e ahakāra – continuarão desassossegadas, imersas na vida material, aleijadas de seu equilíbrio e controle. O resultado é a falta de paz interior e contentamento, intensificação da agitação mental, grande atração aos objetos dos sentidos e repulsão ardorosa ao sofrimento.

Cultivando o desapego

Para gerenciar o estado mental em que a mente oscila entre os opostos, abhyāsa e vairāgya têm de ser cultivados. Para compreender vairāgya, o desapego, primeiro identifique às áreas em sua vida que lhe causam apego a sensação de prazer e felicidade em conexão com os objetos dos sentidos. Este é o sentido do desapego. Não há negação de qualquer objeto dos sentidos, mas a consciência de que você não está apegado a ele. Isso é vairāgya.

Você não está negando, rejeitando ou renunciando a nada, mas está livre dos efeitos do apego. Os objetos dos sentidos existem, o prazer existe, mas a mente não é influenciada por rāga em direção a eles. Em rāga existe a escravidão aos efeitos do apego, mas com o cultivo de vairāgya, ocorre à libertação desses efeitos. Em dvea existe a escravidão aos efeitos da dor, mas com o cultivo de advea, ocorre à libertação dos efeitos da dor.

Vairāgya é uma atitude mental; é um estado de consciência e de mente desperta através do qual você pode testemunhar rāga, os apegos e desejos. Tendo se transformado em uma testemunha, você pode reconhecer sua utilidade ou inutilidade, modificando seu comportamento e pensamentos em concordância com um discernimento mais refinado «viveka». Uma pessoa que compreende a necessidade ou a superficialidade dos objetos dos sentidos e modifica sua vida apropriadamente para conquistar um estado de equilíbrio, pode ser chamado de yogī.

Uma pessoa que prática āsanas ou meditação não pode ser chamada de yogī, da mesma maneira que uma pessoa que estuda ciência não pode ser chamada de cientista ou uma pessoa que estuda história não pode ser considerada uma historiadora. Um estudante de ciência somente será considerado um cientista quando ele atingir proficiência total em sua área de estudo. Da mesma maneira, um yogī é aquele que realizou o pensamento e a sabedoria do Yoga, que começa com vairāgya. Este é o primeiro capítulo do Yoga para o praticante sério desta cultura.

Os praticantes de Yoga estão divididos em muitos grupos. Uns são praticantes caprichosos. Eles vêm ao Yoga a fim de encontrar a cura para suas doenças, mas uma vez que a doença seja tratada e curada, eles deixam o Yoga em busca de outra coisa. O praticante sério é aquele que tenta levar sua vida pelo caminho do sādhanā enquanto contempla os vários aspectos do Yoga a fim de conquistar um resultado positivo, uma mente positiva e um corpo saudável, sempre no caminho da realização do potencial de força infinito que faz sua morada no interior de cada ser humano. Tal praticante sério, não inicia sua prática com āsana, prāāyāma, yama, niyama, jāpa ou dhyāna, mas com vairāgya. Primeiro é necessário saber como se livrar do estresse, dores, dissipação da energia mental e problemas que surgem na vida e só existe um caminho para isso: deixe de lado aquilo que está lhe acorrentando, lhe escravizando, lhe prendendo.

Imaginem uma pessoa segurando o tronco de uma árvore dizendo: «esta árvore me prendeu, por favor, alguém me ajude, preciso me libertar.» Todos se encontram nessa condição! O ser humano segura a árvore e diz: «eu não sou capaz de me libertar, minha família não me deixa ser livre, a sociedade não deixa eu me libertar, o mundo não me deixa libertar, os prazeres e os objetos dos sentidos não deixam com que eu me liberte.» Lembrem-se, nada e ninguém está fazendo de você um prisioneiro, é você mesmo que está se apegando as coisas e isso é rāga se manifestando em sua vida.

Todos são acometidos pelo apego a diversão, prazer e completude promovidos pelos desejos. Existem pessoas que viverão dessa forma, apegadas, até o fim de seus dias. Pode ser até a lei do destino agindo nessa questão e não importa como, ninguém poderá impor nada nesse caminho. Mas uma vez que o pensamento de se libertar da dor e do sofrimento nasce na mente e o desejo de que isso se realize ocorra, o primeiro método a ser seguido é vairāgya.

Vairāgya tem de ser cultivada por um longo período de tempo. Não é algo que se adquire através da prática. Ela precisa ser cultivada e isso é um processo de educação mental. A fim de conquistar vairāgya, seja um observador atento e tenha a mente clara sobre as associações e apegos que trazem completude ou discórdia na vida. Identifique ambos e permaneça indiferente aos aspectos positivos e negativos da vida. É dessa maneira que vairāgya pode controlar o comportamento da mente e suas associações. É um processo de verificação da mente grosseira, sempre buscando completude sensorial, emocional e física. Essa é uma perspectiva mental sob o panorama da consciência.

Abhyāsa

O segundo método para controlar a mente é abhyāsa, que significa repetição, prática constante. Que tipo de prática? A prática para regular a mente. Śrī Kṛṣṇa disse na Bhagavadgītā «II: 58»:


yadā saharat cāya kūrmo’gānīva sarvaśa |
indriyaīndriyārthebhystasya prajñā pratiṣṭhitā.

E quando, como uma tartaruga que recolhe totalmente [seus] membros, [a pessoa] é capaz de recolher os órgãos dos sentidos [retirando-os] de seus respectivos objetos, seu conhecimento é firme.

Esta é a prática executada a fim de se controlar as faculdades mentais. Śrī Kṛṣṇa nos informa que a mente está conectada aos objetos dos sentidos. Ela segue os sentidos onde quer que eles vão. Portanto, retraia a mente impedindo que ela siga a torrente dos sentidos. Se os olhos veem algo prazeroso, reconheça-o. Mas ao mesmo tempo diga para si mesmo: «nossa, que bonito, realmente é algo belo de se apreciar», e pare por aqui! Reconheça e aceite, e pare por aqui! Não deseje o objeto contemplado. Não fique obsecado por ele. No momento em que você começa a desejar, imediatamente torna-se obsecado pela necessidade de possuir o objeto. Se os ouvidos escutarem algo agradável, reconheça e aprecie o som, mas não se apegue a ele. Se o nariz sentir o cheiro de algo agradável, reconheça e aprecie, mas não anseie por ele. Neste caminho, gradativamente você irá retrair a mente, impedindo que ela siga o fluxo dos sentidos e evitando que ela crie mais desejos e expectativas.

Neste exato momento sua mente é escrava de seus sentidos. Quando a mente se torna escrava dos sentidos, os sentidos também se tornam escravos da mente. Eles se integram e tornam-se apenas um. Não existe mais a distinção entre a experiência sensorial e a experiência mental. Se você olha algo delicioso de se comer, sua mente imediatamente começa a desejá-lo. Sua mente fundiu-se com o desejo, com a visão, apetite, paladar... tudo.

Lembrem-se: a mente e os sentidos não são entidades distintas, coisas separadas, embora eles sejam considerados assim. Eles são o comportamento denso e sutil da mesma śakti, do mesmo poder. Os sentidos são o comportamento denso, grosseiro e a mente é o comportamento sutil do mesmo poder cósmico. Quando os sentidos estão ativos, a mente se funde a eles, seguindo-os por toda parte. Quando a mente se desassocia dos sentidos, como ocorre durante o sono à noite, ela se estabiliza por si mesma independente das experiências sensoriais. A mente continua a existir, mas os sentidos não.

No sono, aromas, visões e sensações não costumam nos incomodar, a menos que sejam extremas. Somente quando eles se tornam extremos é que tiram a mente de sua autoidentificação trazendo-a para dimensão grosseira. À noite nós escutamos inúmeros sons e eles não nos incomodam. Mas se o telefone toca, nós ficamos atormentados; a sonoridade extrema do toque tira a mente de sua identificação com o sono profundo. Da mesma maneira, somos picados por inúmeros mosquitos durante a noite e isso não nos incomoda, até o momento que nos sentimos desconfortáveis e somos forçados a nos reposicionar confortavelmente na cama.

Quando a mente está estabelecida em sua própria identidade, os sentidos têm de se tornar mais fortes para conseguirem tirá-la de sua harmonia. Isso é o que acontece na experiência do sono. No estado de vigília, os sentidos e a mente atuam e funcionam como uma única entidade, um único poder, uma única experiência. Se os sentidos forem retraídos de seus respectivos objetos no estado de vigília, a mente se tornará firme e estabelecida em si mesma. Śrī Kṛṣṇa utilizou o termo prajñā, não mana.

tasya prajñā pratiṣṭhitā.

Seu conhecimento é firme.

Aqui Śrī Kṛṣṇa fala de uma faculdade específica da mente. Prajñā é a inteligência superior. Está relacionada a buddhi, a faculdade de distinção e escolha pelo gozo ou pelo sofrimento, o que faz com que está função da mente se torne a causa da agitação dos sentidos.

Os objetos dos sentidos ou pelos quais os sentidos desfrutam o mundo, sempre existirão. No início da criação, quando a vida ainda não havia se manifestado, algo existia. Os seres humanos ainda não habitavam este mundo, mas os objetos sim. Quando o ser humano deixa de existir, a criação continua, os objetos permanecem. A criação é feita de sujeito e objeto enquanto a vida é feita de prāa. Mesmo sem a presença dos seres humanos, os objetos continuarão a existir. No processo de criação o ser humano ganha vida para desfrutar dos objetos e quando seu tempo termina, ele parte e os objetos ficam. Portanto, as palavras de Śrī Kṛṣṇa querem dizer que os objetos dos sentidos sempre existirão, mas você tem de se esforçar para retrair seus sentidos. Assim como a tartaruga retrai os seus membros, você deve retrair sua mente. Essa é a prática «abhyāsa» que precisa ser executada. A sequência indicada na Bhagavadgītā é a mesma sequência do Pātañjala Yoga como exposta no Yogasūtra.

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