Abhyāsa & Vairāgya
Estudos sobre a Cultura Mahāṛṣi
Pātañjala Yoga
. Abhyāsa & Vairāgya .
Fernando Liguori
[Satsanga realizado durante os
nove meses do Curso de Aprofundamento em Yoga ministrado pelo Instituto
Kaula em 2011.]
Na Bhagavadgītā, Arjuna faz
uma referência a mente. Ele diz a Śrī Kṛṣṇa «VI: 34»:
cañcalaṃ hi manaḥ kṛṣṇa pramāthi balavad dṛḍham |
tasyāhaṃ nigrahaṃ
manye vāyoriva suduṣkaram.
Pois a mente é inconstante,
atormentada, poderosa, obstinada, ó Kṛṣṇa! Eu considero o
controle dela tão difícil como o [controle] do vento.
Quando Arjuna fez esta observação, Śrī Kṛṣṇa concordou com ele. Ele
respondeu «VI: 35»:
asaṃśayaṃ mahābāho mano durnigrahaṃ calam |
abhyāsena tu kaunteya vairāgyeṇa ca gṛhyate.
Sem dúvida, ó Mahābāhu [Arjuna],
a mente é inconstante e difícil de ser controlada. Porém, ó Kaunteya
[Arjuna], através da repetição e do desapego, ela é disciplinada.
Kṛṣṇa destacou dois exercícios a fim de se
controlar ou gerenciar a mente. O primeiro foi abhyāsa, que literalmente
é «repetição», mas nós também chamamos de «prática». O segundo foi vairāgya,
«desapego» ou «indiferença». Mantendo essas duas referências em mente, vamos
primeiro considerar o desapego, depois a prática.
Quando a palavra mente é usada no Yoga, ela se refere a todas as
quatro funções ou comportamentos que manifesta na vida: manas, a
habilidade de refletir ou pensar, buddhi, inteligência, citta, o
armazém das memórias e ahaṃkāra, o ego.
Essa grande mente, integrada em sua totalidade, identifica,
interage e se associa aos sentidos e aos objetos dos sentidos. A mente
percebe o que os sentidos experimentam. Se seus olhos vêm um objeto, sua
mente o reconhece, se identifica com ele, nomeia-o e o compreende em sua
natureza. Se você sente o cheiro de algo, a mente o identificará e imediatamente
irá apreciá-lo ou rejeitá-lo. Se você toca em alguma coisa, a mente vai
reconhecê-la. Se você provar um doce, a mente irá reconhecer o sabor. Portanto,
a mente se identifica e interage com os sentidos e seus objetos o tempo todo,
em todas as circunstâncias.
Por que a mente se identifica com os objetos dos sentidos? Porque ela tem
que fazer isso! A fim de sobreviver no mundo como um ser humano, a mente tem de
seguir a lei da Natureza «prakṛti». Uma vez que a alma nasce, todas as
faculdades do corpo, sejam sensoriais, mentais, emocionais ou intelectuais, se
conectarão externamente com algo tangível e reconhecível. É por isso que a
mente interage com o mundo.
Neste processo de interação existe uma busca, uma busca inconsciente de
contentamento e felicidade. Não importa a direção em que os sentidos e a
mente vão, você sempre está buscando felicidade e contentamento através dessa
conexão ou associação. O desejo de posse e aquisição se manifesta como uma
percepção subjacente de que você será feliz quando adquirir o objeto de seus
desejos: «eu vivo em uma choupana, se eu vivesse em uma casa de verdade, seria
uma pessoa melhor»; «eu tenho uma bicicleta, mas se eu tivesse uma motocicleta,
seria uma pessoa melhor»; «eu tenho uma motocicleta, mas se eu tivesse um
carro, seria uma pessoa melhor»; «eu não tenho família, se eu tivesse uma,
seria uma pessoa melhor». Sempre estamos esperando que algo aconteça para
sermos melhores. Nesse caminho, todas as interações na vida, com qualquer
objeto dos sentidos, pessoas ou ideias, são uma busca pessoal por completude e
satisfação. É isso que todos buscam por toda a vida.
Na medida em que a mente procura pelos sentidos e seus objetos, mantém-se
distraída, dissipada e volátil. Quando a atração pelos objetos dos sentidos e a
satisfação sensorial é reduzida, a mente se torna pacífica e quieta. Todos
sabem disso, mas não são capazes de praticar porque não estão aptos a
interromper a mente de seguir o trem do desejo. As pessoas são incapazes de
guiar suas mentes, incapazes de saber o que realmente é apropriado e o que não
é. É por isso que, a fim de controlar a mente e gerenciar seu comportamento, abhyāsa
«prática» e vairāgya «desapego» têm de ser desenvolvidos.
Além da Bhagavadgītā, o Yogasūtra também menciona que, a fim
de reduzir as aflições da mente e superar o sofrimento e a instabilidade mental,
o praticante tem de desenvolver abhyāsa e vairāgya «I: 12»:
abhyāsavairagyābhyāṃ tannirodhaḥ.
Através da repetição e do desapego
[emerge] a cessação [da identificação com as flutuações da consciência].
A lei do apego
Rāga
significa «apego», «conectar-se» e vairāgya significa «desapego». Vairāgya
indica que o praticante está livre da influência dos apegos.
O Yogasūtra declara que o apego é causado pela busca por prazer e
felicidade «II: 7»:
sukhānuśayī rāgaḥ.
Apego é agarrar-se ao prazer.
Você se sente atraído a pessoas, lugares e objetos que lhe trazem a
sensação da felicidade. Você se apega ao sentimento e a percepção do apego,
associação ou conexão, acreditando que isso lhe trará felicidade. O oposto
desta sensação é o sofrimento, duḥkha «II: 8»:
duḥkhānuśayī
dveṣaḥ.
Aversão é agarrar-se ao sofrimento.
Apego e aversão, atração e repulsão, representam o movimento em pêndulo da
mente. A mente oscila entre rāga e dveṣa, do apego e o prazer a
rejeição e o sofrimento, de sukha a duḥkha.
Este tem sido o comportamento da mente humana do nascimento ao momento de sua
transição.
O ser humano está sempre gravitando ao redor dos lugares, objetos dos
sentidos ou pessoas com quem possa experienciar o regozijo e a felicidade,
evitando e rejeitando aqueles que podem gerar contenda, discórdia, conflito, tensão,
confusão, sofrimento e desarmonia. Essa é a característica natural ou o
comportamento peculiar da mente.
A atração pelo prazer dá nascimento ao estado de rāga na mente. Uma
vez que tenha nascido, a experiência de rāga se intensifica, aumentando
o apego aos objetos que supostamente trarão prazer. Neste apego e atração a
mente perde seu equilíbrio. Quando o prazer do objeto do apego não é
satisfeito, a mente perde sua estabilidade e experiência o sofrimento e o
descontentamento. Este é o estado que Patañjali descreveu como duḥkhānuśayī dveṣaḥ. Quando a experiência do sofrimento se manifesta devido à
inexistência do prazer, a única coisa que se pode pensar na hora é nas medidas
necessárias para se livrar desta perturbação. Essa oscilação entre rāga e
dveṣa é a causa da dissipação mental,
depressão e doença. Desordens psicológicas
são causadas porque a maioria das pessoas não está livre da oscilação entre rāga
e dveṣa.
No estado de depressão você se conecta com o sofrimento. Mas se você se
desconecta dele, não há razão para que a depressão continue a existir. Do outro
lado do pêndulo, quando você está alegre e regozijante, existe grande
expectativa pelo prazer, pois está conectado ao prazer. Essa conexão a
atração pelo prazer, dá nascimento aos seus pensamentos correspondentes,
comportamento e ações.
Enquanto existir oscilação entre dor e prazer, todas as
faculdades da mente – manas, buddhi, citta e ahaṃkāra – continuarão desassossegadas, imersas na vida
material, aleijadas de seu equilíbrio e controle. O resultado é a falta de paz interior
e contentamento, intensificação da agitação mental, grande atração aos objetos
dos sentidos e repulsão ardorosa ao sofrimento.
Cultivando o desapego
Para gerenciar o estado mental em que a mente oscila entre os opostos, abhyāsa
e vairāgya têm de ser cultivados. Para compreender vairāgya, o
desapego, primeiro identifique às áreas em sua vida que lhe causam apego a
sensação de prazer e felicidade em conexão com os objetos dos sentidos. Este é
o sentido do desapego. Não há negação de qualquer objeto dos sentidos, mas a
consciência de que você não está apegado a ele. Isso é vairāgya.
Você não está negando, rejeitando ou renunciando a nada, mas está livre
dos efeitos do apego. Os objetos dos sentidos existem, o prazer existe, mas
a mente não é influenciada por rāga em direção a eles. Em rāga existe
a escravidão aos efeitos do apego, mas com o cultivo de vairāgya, ocorre
à libertação desses efeitos. Em dveṣa existe a escravidão aos efeitos da
dor, mas com o cultivo de adveṣa, ocorre à libertação dos efeitos da
dor.
Vairāgya é uma atitude mental; é um estado de consciência e
de mente desperta através do qual você pode testemunhar rāga, os apegos e
desejos. Tendo se transformado
em uma testemunha, você pode reconhecer sua utilidade ou inutilidade, modificando
seu comportamento e pensamentos em concordância com um discernimento mais
refinado «viveka». Uma pessoa que compreende a necessidade ou a
superficialidade dos objetos dos sentidos e modifica sua vida apropriadamente
para conquistar um estado de equilíbrio, pode ser chamado de yogī.
Uma pessoa que prática āsanas ou meditação não pode ser chamada de yogī,
da mesma maneira que uma pessoa que estuda ciência não pode ser chamada de cientista
ou uma pessoa que estuda história não pode ser considerada uma historiadora. Um
estudante de ciência somente será considerado um cientista quando ele atingir
proficiência total em sua área de estudo. Da mesma maneira, um yogī é aquele
que realizou o pensamento e a sabedoria do Yoga, que começa com vairāgya. Este
é o primeiro capítulo do Yoga para o praticante sério desta cultura.
Os praticantes de Yoga estão divididos em muitos grupos. Uns são
praticantes caprichosos. Eles vêm ao Yoga a fim de encontrar a cura para
suas doenças, mas uma vez que a doença seja tratada e curada, eles deixam o Yoga
em busca de outra coisa. O praticante sério é aquele que tenta levar sua
vida pelo caminho do sādhanā enquanto contempla os vários aspectos do Yoga a
fim de conquistar um resultado positivo, uma mente positiva e um corpo
saudável, sempre no caminho da realização do potencial de força infinito que
faz sua morada no interior de cada ser humano. Tal praticante sério, não
inicia sua prática com āsana, prāṇāyāma, yama,
niyama, jāpa ou dhyāna, mas com vairāgya. Primeiro
é necessário saber como se livrar do estresse, dores, dissipação da energia
mental e problemas que surgem na vida e só existe um caminho para isso: deixe
de lado aquilo que está lhe acorrentando, lhe escravizando, lhe prendendo.
Imaginem uma pessoa segurando o tronco de uma árvore dizendo: «esta árvore
me prendeu, por favor, alguém me ajude, preciso me libertar.» Todos se
encontram nessa condição! O ser humano segura a árvore e diz: «eu não sou
capaz de me libertar, minha família não me deixa ser livre, a sociedade não
deixa eu me libertar, o mundo não me deixa libertar, os prazeres e os objetos
dos sentidos não deixam com que eu me liberte.» Lembrem-se, nada e ninguém
está fazendo de você um prisioneiro, é você mesmo que está se apegando as
coisas e isso é rāga se manifestando em sua vida.
Todos são acometidos pelo apego a diversão, prazer e completude promovidos
pelos desejos. Existem pessoas que viverão dessa forma, apegadas, até o fim de
seus dias. Pode ser até a lei do destino agindo nessa questão e não importa
como, ninguém poderá impor nada nesse caminho. Mas uma vez que o pensamento de
se libertar da dor e do sofrimento nasce na mente e o desejo de que isso se realize
ocorra, o primeiro método a ser seguido é vairāgya.
Vairāgya tem
de ser cultivada por um longo período de tempo. Não é algo que se adquire através
da prática. Ela precisa ser cultivada e isso é um processo de educação mental. A
fim de conquistar vairāgya, seja um observador atento e tenha a mente clara
sobre as associações e apegos que trazem completude ou discórdia na vida. Identifique
ambos e permaneça indiferente aos aspectos positivos e negativos da vida. É
dessa maneira que vairāgya pode controlar o comportamento da mente e suas associações.
É um processo de verificação da mente grosseira, sempre buscando completude
sensorial, emocional e física. Essa é uma perspectiva mental sob o panorama
da consciência.
Abhyāsa
O segundo método para controlar a mente é abhyāsa, que significa
repetição, prática constante. Que tipo de prática? A prática para regular a
mente. Śrī Kṛṣṇa disse na Bhagavadgītā «II:
58»:
yadā saṃharat cāyaṃ
kūrmo’ṅgānīva sarvaśaḥ |
indriyaṇīndriyārthebhystasya prajñā pratiṣṭhitā.
E quando, como uma tartaruga que
recolhe totalmente [seus] membros, [a pessoa] é capaz de recolher os órgãos dos
sentidos [retirando-os] de seus respectivos objetos, seu conhecimento é firme.
Esta é a prática executada a fim de se controlar as
faculdades mentais. Śrī Kṛṣṇa nos informa que a mente está conectada aos objetos dos sentidos. Ela
segue os sentidos onde quer que eles vão. Portanto, retraia a mente
impedindo que ela siga a torrente dos sentidos. Se os olhos veem algo
prazeroso, reconheça-o. Mas ao mesmo tempo diga para si mesmo: «nossa, que
bonito, realmente é algo belo de se apreciar», e pare por aqui! Reconheça e
aceite, e pare por aqui! Não deseje o objeto contemplado. Não fique
obsecado por ele. No momento em que você começa a desejar, imediatamente
torna-se obsecado pela necessidade de possuir o objeto. Se os ouvidos
escutarem algo agradável, reconheça e aprecie o som, mas não se apegue a ele.
Se o nariz sentir o cheiro de algo agradável, reconheça e aprecie, mas não
anseie por ele. Neste caminho, gradativamente você irá retrair a mente,
impedindo que ela siga o fluxo dos sentidos e evitando que ela crie mais
desejos e expectativas.
Neste exato momento sua mente é escrava de seus sentidos. Quando a mente se torna escrava
dos sentidos, os sentidos também se tornam escravos da mente. Eles se
integram e tornam-se apenas um. Não existe mais a distinção entre a experiência
sensorial e a experiência mental. Se você olha algo delicioso de se comer, sua
mente imediatamente começa a desejá-lo. Sua mente fundiu-se com o desejo, com a
visão, apetite, paladar... tudo.
Lembrem-se: a mente e os sentidos não são entidades distintas, coisas
separadas, embora eles sejam considerados assim. Eles são o comportamento denso
e sutil da mesma śakti, do mesmo poder. Os sentidos são o comportamento
denso, grosseiro e a mente é o comportamento sutil do mesmo poder cósmico. Quando
os sentidos estão ativos, a mente se funde a eles, seguindo-os por toda parte.
Quando a mente se desassocia dos sentidos, como ocorre durante o sono à
noite, ela se estabiliza por si mesma independente das experiências sensoriais.
A mente continua a existir, mas os sentidos não.
No sono, aromas, visões e sensações não costumam nos incomodar, a menos
que sejam extremas. Somente quando eles se tornam extremos é que tiram a mente
de sua autoidentificação trazendo-a para dimensão grosseira. À noite nós
escutamos inúmeros sons e eles não nos incomodam. Mas se o telefone toca, nós
ficamos atormentados; a sonoridade extrema do toque tira a mente de sua
identificação com o sono profundo. Da mesma maneira, somos picados por inúmeros
mosquitos durante a noite e isso não nos incomoda, até o momento que nos sentimos
desconfortáveis e somos forçados a nos reposicionar confortavelmente na cama.
Quando a mente está estabelecida em sua própria identidade, os sentidos
têm de se tornar mais fortes para conseguirem tirá-la de sua harmonia. Isso é o
que acontece na experiência do sono. No estado de vigília, os sentidos e a
mente atuam e funcionam como uma única entidade, um único poder, uma única
experiência. Se os sentidos forem retraídos de seus respectivos objetos no
estado de vigília, a mente se tornará firme e estabelecida em si mesma. Śrī
Kṛṣṇa utilizou o termo prajñā, não manaḥ.
tasya prajñā pratiṣṭhitā.
Seu conhecimento é firme.
Aqui Śrī Kṛṣṇa fala de uma faculdade específica da
mente. Prajñā é a inteligência superior. Está relacionada a buddhi,
a faculdade de distinção e escolha pelo gozo ou pelo sofrimento, o que faz
com que está função da mente se torne a causa da agitação dos sentidos.
Os objetos dos sentidos ou pelos quais os sentidos desfrutam o mundo,
sempre existirão. No início da criação, quando a vida ainda não havia se
manifestado, algo existia. Os seres humanos ainda não habitavam este mundo, mas
os objetos sim. Quando o ser humano deixa de existir, a criação continua, os
objetos permanecem. A criação é feita de sujeito e objeto enquanto a vida é
feita de prāṇa. Mesmo sem a presença dos seres humanos, os objetos continuarão
a existir. No processo de criação o ser humano ganha vida para desfrutar dos
objetos e quando seu tempo termina, ele parte e os objetos ficam. Portanto, as
palavras de Śrī Kṛṣṇa querem dizer que os objetos dos sentidos
sempre existirão, mas você tem de se esforçar para retrair seus sentidos. Assim
como a tartaruga retrai os seus membros, você deve retrair sua mente. Essa é a
prática «abhyāsa» que precisa ser executada. A sequência indicada na Bhagavadgītā
é a mesma sequência do Pātañjala Yoga como exposta no Yogasūtra.
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