A Mente & o Gerenciamento de suas Funções #1
A Mente & o Gerenciamento de suas
Funções
. primeira parte .
Por Fernando Liguori
[Satsanga realizado durante os
nove meses do Curso de Aprofundamento em Yoga ministrado pelo Instituto
Kaula em 2011.]
O tema de nosso último encontro foi A Evolução da Consciência &
Energia. Naquele dia nós falamos acerca do nascimento da mente, quer dizer,
sua fonte e os mecanismos de suas funções ou compartimentos. Hoje nós vamos dar
continuidade ao estudo da mente. O ocidental tem uma maneira muito peculiar de
enxergar a mente. Ele não consegue ver o panorama total da mente e as
expressões de suas funções. Quando eu peço a vocês, na hora da condução da prática
meditativa, para que estejam conscientes de seus corpos, o que vem a mente na
hora? Todo o corpo e seus sistemas ou apenas uma parte dele, um órgão, um membro
etc.? Não, quando pensamos no corpo, imaginamos sua totalidade. É a mesma coisa
com a mente. Quando pensamos na mente devemos imaginar sua totalidade, da mesma
maneira que fazemos com o corpo. Mas quando o ocidental pensa na mente, imagina
apenas uma fração dela, pensando ser toda a sua expressão, mas não é. O que o
ocidental identifica como mente é o que chamamos de manas, um aspecto da
mente, um aspecto «inferior» cujas funções são saṅkalpa e vikalpa,
quer dizer, claridade e confusão, foco e distração. Isso ficará mais claro
daqui a pouco.
Hoje nós iniciamos a prática pela manhã com o mantra śāntiḥ, um mantra que nos coloca no descanso interior, paz
e indiferença às manifestações externas a mente. Propus de iniciarmos o dia com
este mantra porque ele representa o saṅkapa de
qualquer aspirante que deseja melhorar sua qualidade de vida. Cada verso deste mantra
é uma aspiração, uma afirmação, um objetivo a ser conquistado na vida. Ele diz:
leve-me do irreal ao real; leve-me das trevas à luz; leve-me da mortalidade
a imortalidade; que o bem-estar prevaleça; que a totalidade prevaleça; que a
auspiciosidade prevaleça; que todos os seres sejam felizes e contentes. Mas
qual a finalidade deste saṅkalpa? Sua finalidade é mudar a qualidade
e a expressão da mente. A validade inerente ao saṅkalpa é
sua eficácia, pois qualquer expressão, injunção ou afirmação que não mude a
qualidade e o comportamento da mente não passa de um pensamento, um desejo ou
devaneio onde o sonhador acorrentado torna-se incapaz de realizá-lo na vida.
Todos nós sabemos o que um saṅkalpa, correto? É uma energia focada e
concentrada da mente. Este poder ou força da mente tem de ser domado,
subordinado e canalizado. E isso não é fácil! A vida é uma expressão da mente.
É a mente que guia cada ação e reação, ideia e pensamento, desejo e
expectativa. Portanto, ela é o fator de maior motivação, mas na mesma medida é
um princípio desalentador.
A fim de conhecermos a mente, temos de saber de onde ela vem, qual é a sua
fonte. No nosso último encontro nós falamos que a fonte da mente é a
consciência em uma dimensão trans-sensorial. Essa é a dimensão da «substância
primordial». Para que todos possam entender, vou chamar essa substância
primordial de Deus. No contexto do hinduísmo, Brahman. Nesta substância
primordial ou Deus, duas forças coexistem em harmonia: consciência e energia. Estes
dois princípios em inteiração proporcionam o entendimento mental e a
experiência sensorial do mundo. Toda criação e a vida são expressões da
interação entre consciência e energia. A energia se manifesta na vida como o
prāṇa e a consciência como a mente. A vida emerge da inteiração destas duas
forças nas dimensões cósmicas da existência. Assim, cada vida é governada por prāṇa e mente.
Sendo a vida um processo de interação entre estes dois princípios ou
forças, a mente e prāṇa estão manifestos em toda parte. Uma
bactéria possui mente e prāṇa. Não cérebro, mas mente! Animais,
vegetais, minerais etc., tudo, absolutamente tudo, possui mente e prāṇa. O corpo humano é
governado e dirigido por prāṇa e mente. Portanto, a cognição ou consciência
cósmica é representada pelo princípio da consciência. A consciência «contida»
ou individual é conhecida como mente.
Podemos nos arriscar a dizer que a vida é uma expressão da mente, pois tudo
o que nós experienciamos na vida é a mente. É um equívoco confundir a mente
com a consciência. Por exemplo, uma árvore possui um tronco. Este é seu corpo,
seu suporte. Do tronco emergem diferentes galhos. Estes galhos fazem parte do
troco. Eles são feitos da mesma substância que o troco da árvore, mas suas
funções são outras. Da mesma maneira, a mente é composta do mesmo estofo da
consciência, mas não é a consciência; ela deriva da consciência. É uma ramificação,
uma expressão da consciência, guiada pelos canais das correntes sensoriais.
O Sāṃkhya em sua teoria evolucionista considera a mente como uma
parte integral da criação. Essa escola de pensamento atesta que a primeira
entidade em existência eterna é Brahman. Essa entidade ou identidade incorpora
em si mesma as faculdades e poderes da energia e consciência. Na tradição espiritual
da Índia, Brahman é sempre identificado como a Consciência ou Espírito Cósmico.
Como falei a pouco, no estado de Brahman, energia «śakti» e
consciência «cetana» permanecem em absoluta harmonia e integridade.
Contudo, quando a vida emerge devido a uma incognoscível pulsação «spanda»
na dimensão da energia e consciência, ela adquire o poder destes dois
catalisadores para criar e se estabilizar. Assim, o corpo se torna matéria,
governado pelo prāṇa, seu componente ou Śakti manifesto. Tudo
o que é visível como forma, matéria ou corpo é governado, dirigido e controlado
por esta Śakti na forma do prāṇa. Além da matéria ou corpo material,
existe uma força sutil responsável pela evolução e experiência da verdadeira
natureza humana e do espírito, e ela é uma com o cosmos. Este poder ou força
sutil é a consciência, experienciada na vida como a mente.
Imaginemos a luz do sol. Ela se espalha uniformemente por toda parte. Mas
quando passa pela janela da sala iluminando apena um local é percebida como um
raio solar. O raio faz parte da luz do sol que a tudo permeia, mas quando ele
entra na sala através da janela não dizemos: o sol está entrando pela janela.
Mas sim, um raio do sol está entrando pela janela. Consciência e mente
devem ser entendidas da mesma maneira. A mente é o aspecto manifesto da
consciência. A consciência cósmica é indivisível, infinita, onisciente.
Essa é sua forma essencial. Contudo, quando ela se manifesta no corpo no curso
da evolução, a lei da natureza faz a sua parte e ela é experienciada na forma
da mente. Portanto, o que é chamado de consciência nas dimensões cósmicas da
existência é chamado de mente na vida, no corpo.
As upaniṣads descrevem Brahman como o cubo de uma roda, enquanto Śakti
ou Pṛakriti como os raios da roda. Os raios
são circundados por uma sólida esfera que os mantém unidos. Isso é a mente, mahat,
a mente cósmica. Essa mente tem suas funções enquanto incorporação física.
Através do gerenciamento destas funções, a paz interior é alcançada, abrindo
caminho para fundação de uma verdadeira estrutura espiritual, equilibrada e pacificante.
Nessa direção, o sādhanā mais efetivo na vida é o gerenciamento da mente,
não a meditação. Um estado de consciência elevado se manifesta nas respostas
que a mente tem em diferentes situações da vida. Mas esse é o objetivo do Yoga:
melhorar a qualidade de vida para que nos tornemos conscientes de nós mesmos e
de nossos potenciais, vivendo esses potenciais aqui, agora. Portanto, o
objetivo último, assim me arrisco a dizer, não é a experiência da iluminação,
mas o gerenciamento da mente. Quando a harmonia interior é experienciada, o
Yoga se torna um estilo de vida no qual nos conectamos com todos os seres em
espírito de serviço e compaixão.
A Mente e o gerenciamento de suas funções
Mahat
significa «a grande mente». É o princípio mental mais elevado, cujas funções
são: ahaṃkāra, o ego ou autoidentidade; citta, impressões,
memórias e saṃskāras; buddhi, inteligência; e manas,
a mente finita e sequencial. Essas quatro funções envolvem toda experiência da
vida. O Sāṃkhya e o Yoga também se referem a mahat
como antaḥ-kāraṇa, o instrumento sutil, meio ou agente que permite a
experiência e a expressão da vida.
O princípio sutil da grande mente é o ego, ahaṃkāra.
Não o ego no sentido pejorativo da palavra, expresso como arrogância, mas o ego
no sentido de autoidentidade, autoconsciência, conhecimento de «mim mesmo», de
«eu existo».
O ego se manifesta de quatro maneiras distintas: avidyā, abhiniveśaḥ, māyā e asmitā. O ego está conectado e
sujeito ao movimento sinuoso dessas quatro expressões. Avidyā significa
ignorância e uma das funções do ego é suprimir o conhecimento. Com a supressão
do conhecimento, jñāna – a verdadeira gnose – não se manifesta; ao contrário,
ajñāna, avidyā ou falta de conhecimento se tornam a expressão da
vida. Se vocês observarem as pessoas arrogantes e egoístas, notarão que as
portas para o aprendizado e portanto do conhecimento estão fechadas para elas,
quer dizer, nelas. Elas não estão dispostas a abrir estas portas para compreender
e apreciar qualquer outra realidade além de sua percepção condicionada. Avidyā
influencia o comportamento e a percepção do ego. No estado de avidyā o
que existe é escuridão total, falta de luminosidade. Como diz Swami Niranjan,
«a luminosidade do ego intoxicado por avidyā é um brilho opaco no
semblante humano».
A palavra sânscrita abhiniveśaḥ, significa desejo de entrar, mas o comentador Vyāsa
explica como se fosse apenas o apego à vida, o que faz com que o indivíduo
sinta como se fosse durar eternamente. No entanto, a palavra expressa com mais
clareza ainda o desejo de fazer parte, ou seja, de se integrar socialmente com
algum grupo. Essa é uma das mais fortes motivações que nos levam ao erro, de
fato, pois o desejo de integração nos faz duvidar de nossos próprios valores em
favor dos valores compartilhados pelo grupo. Para que vocês possam ter sucesso
em sua prática, não devem ter medo de ficarem sós, nem duvidarem de si mesmos
por se sentirem diferentes do grupo. É muito importante para sua realização
pessoal que vocês escutem atentamente seu coração e que não se envolvam em relacionamentos
de qualquer natureza, sob nenhuma hipótese, que estejam em conflito com suas
crenças e valores morais. Nem devem também se sujeitar a situações nas quais
sua opinião ou sua capacidade de decisão tenham de ser anuladas, a qualquer
pretexto. Este é o sentido de abhiniveśaḥ, que se manifesta como insegurança e medo de perder a si mesmo,
de simplesmente abrir a mão e deixar ir, de morrer.
O ego também se manifesta como māyā, ilusão. É através de māyā
que o ego faz com todos se sintam maiores do que realmente são, da mesma
maneira, vendo os outros com diminuição, fazendo-os parecer serem menores.
O ego também se manifesta como asmitā, o conhecimento de que «eu
existo», «eu sou». É para proteger o conhecimento de que «eu sou» que o ego se
manifesta. Por exemplo, se alguém proferir palavras torpes a você, seu senso de
identidade será ferido. Todos os conflitos da vida, sejam no âmbito familiar ou
social, são creditados a asmitā.
Todas essas expressões egóicas são inerentes ao princípio do ego. Elas não
têm poder quando estamos conectados com a fonte infinita de luz, mas se tornam
forças poderosas quando estamos conectados ao exterior, ao mundo com os objetos
dos sentidos, com Prakṛti.
Egodectomia
O ego é o obstáculo mais difícil no caminho espiritual. Como nos tornamos
conscientes de nosso ego? O exemplo do espelho é bem apropriado: você não pode
ver o seu rosto a não ser que fique na frente de um espelho ou outra pessoa lhe
diga como está sua aparência. Se alguém lhe diz «você está acabado»,
imediatamente sua reação será negativa. Se alguém lhe chama de arrogante, isso
é o suficiente para que ela se torne sua inimiga. Você reage abruptamente a
qualquer pessoa da mesma maneira que não reconhece a si mesmo.
Os yogīs vêm nos alertando desde os tempos imemoriais que o ego é o
último obstáculo a ser superado no processo de autorrealização. Portanto, nos
estágios finais da senda iniciática o praticante precisa da orientação e
inspiração de um Guru. As práticas podem ser executadas em qualquer hora ou
lugar. O Guru não é necessário para isso, mas é necessário para nos auxiliar a
superar este último obstáculo, o ego. O Guru canaliza o ego e muda sua
direção. Este processo é chamado de egodectomia. Infelizmente, não são
todos os buscadores que estão preparados para este processo de dissecação do
ego. Por conta disso, os Gurus têm poucos discípulos. Eles possuem milhares de
iniciados, mas um ou dois discípulos cujo processo de egodectomia pode ser
aplicado.
Este é um processo de morte e ressurreição. O antigo ser tem de morrer. A
carapaça egóica precisa ser quebrada para que a semente possa germinar. Se a
carapaça for muito forte a ponto de tornar-se indestrutível, então a vida
continuará a ser a tormenta da mente. O processo de destruição desta
carapaça, portanto, chama-se egodectomia.
O gerenciamento do ego através de sanyam
Muitas pessoas me perguntam como reconhecer o ego. Eu sempre digo que a
melhor maneira para se reconhecer o ego e suas manifestações é a meditação, mas
a melhor maneira de se gerenciar as expressões limitantes do ego é através de sanyam,
restrição. Quando sanyam faz parte de nossa vida, nada pode nos
perturbar. Na sua falta, poucas palavras bastão para nos perturbar e criar um
estado alterado e distorcido na mente. Se alguém lhe insulta, a paz na mente
deixa de existir por conta da reação do ego. Se sanyam existe, não
importa quem lhe insulta ou como isso acontece, você não reagirá, não irá ficar
firulando.
Assim, para administrar as manifestações do ego, primeiro é
necessário reconhecê-las através da meditação e então controlá-las através da
restrição. O exemplo do elogio e
do insulto é perfeito aqui. Usualmente, o insulto irá lhe tirar de seu centro
profundamente e o elogio lhe trará um orgulho imediato. Elogio e insulto são
como o balanço de um pêndulo, sempre se movimentando de uma extremidade a
outra. Vocês enfrentam a situação deste pêndulo a todo instante na vida, na interação
com os familiares, os amigos de trabalho e a sociedade em geral e sua atitude é
sempre a mesma: você reage e tenta justificar suas atitudes na tentativa de
provar que é uma boa pessoa. Seja lá o que você projeta, insulto e elogio sempre
lhe afetarão. Esse efeito não é experienciado em manas, buddhi ou citta, mas
nos domínios do ego.
Se alguém lhe chama de cachorro, isso lhe insulta. Se o ego estiver à flor
da pele, como se diz, você pode até mesmo se imaginar na forma do cachorro.
Essa sensação torna-se tóxica, gerando ansiedade. Qual a parte de mahat foi
afetada aqui? Não é manas ou buddhi. Se buddhi entra em
ação neste momento, você percebe que não é um cachorro, não importando o que
digam a seu respeito. Você dirá: «esta pessoa não me conhece; seja lá o que ela
fale ou propale a meu respeito, isso não constitui problema meu, mas somente
dela». Buddhi irá restaurar o equilíbrio. Claridade de pensamento
rapidamente irá lhe libertar desta situação negativa. Contudo, o intelecto e a
razão quase nunca entram em ação nestes momentos, isso faz com que o ego reaja,
criando a sensação do desconforto, dor, aversão, depressão e destrutibilidade.
O contraforte para o ego é sanyam. O primeiro entendimento acerca
de sanyam é permanecer inalterado sob quaisquer circunstâncias.
Se vocês conquistarem sanyam dos sentidos, da mente, da fala, interação
e comportamento, estarão aptos a confrontar os ataques impiedosos do ego.
Contudo, a restrição dos sentidos, da mente e da fala são métodos práticos
para se cultivar sanyam, mas seu real significado é a capacidade de se
permanecer não afetado. Se vocês permanecerem não afetados em todas as
circunstâncias, estarão vivendo em sanyam. Vocês serão mais joviais,
contentes e pacíficos.
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