quarta-feira, 3 de fevereiro de 2010

Satya: o compromisso com a verdade


Oui, Monsieur Duchamp, isto é um mictório, não uma obra de arte.


Mentir dá trabalho. Quem mente é obrigado a gerenciar duas «realidades», uma para si e outra para as outras pessoas (a não ser que o sujeito seja biruta, a realidade de fato é aquela que ele guardará para si). Comparado com alguém que não mente, o mentiroso sempre terá mais trabalho e gastará mais tempo e energia. Mentir é uma espécie de malabarismo. 

Satya é o yama que mostra a importância de não criar realidades. O yogin que respeita este yama reconhece a realidade única e vive nela. Trata-se, portanto, de um exercício constante de sinceridade -- consigo, com os outros, com o universo ---, de permitir que a visão se purifique e se livre de julgamentos e de avaliações. Estas coisas pertencem ao território da mente e o yogin sabiamente permite que elas aconteçam. Satya não o leva ao esforço de neutralizar os julgamentos e avaliações, satya apenas leva o yogin a reconhecer tais coisas como produtos da mente e, portanto, como uma tentativa da mente manipular e recriar a realidade à sua própria vontade.

Satya, portanto, pode ser compreendido também como o esforço de não misturar objetos de naturezas diferentes antes de reconhecê-los como tais.Um exemplo pode tornar esta idéia mais clara.

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Suponhamos que um colega de trabalho, com quem você tem boas relações, o destrate sem nenhum motivo aparente. A mente do indivíduo inconsciente de si reagirá produzindo explicações para o fato: 

1) Seu colega na verdade não gosta de você. Portanto, ele é falso e desde o início estava enganando você, provavelmente porque quer prejudicá-lo.

2) Seu colega acordou de mau humor, por isso ele o maltratou. Logo vai passar.

3) Seu colega está passando por um período difícil na vida e maltratar as pessoas é uma reação natural a isso e uma forma inconsciente de pedir ajuda.

A mente pode criar outras explicações e cada uma delas implicará desdobramentos. Note, por exemplo, que cada uma das três explicações sugeridas indicam três caminhos diferentes. Decerto a primeira explicação levaria você a iniciar um conflito bastante sério com seu colega. A segunda poderia levá-lo a uma atitude passiva, à espera de que o humor de seu colega melhore. A terceira poderia levá-lo a oferecer-lhe ajuda. Qual das três mais se aproxima da realidade? A resposta é: nenhuma. Mesmo que uma delas corresponda em algum grau ao que de fato aconteceu com seu colega, elas foram produzidas na sua mente.

Sem dúvida, a aproximação entre fato e pensamento pode modificar a realidade, mas é fácil perceber os riscos a que nos expomos quando agimos com base em pensamentos que não correspondem à realidade inicial -- aquela que gerou os pensamentos que geraram nossas ações. Pode-se imaginar que esses riscos não existem quando fato e pensamento coincidem (em outras palavras, quando conseguimos perceber a realidade adequadamente); no entanto, permanecer em satya leva o indivíduo a dispensar até mesmo os «pensamentos certos» ou, no máximo, a reconhecê-los como são, isto é, como pensamentos.

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Perceber a realidade significa reconhecer o movimento das informações. Luz, calor, sons, fatos -- tais informações são recebidas pelos sentidos. Notar essas coisas é o mesmo que notar as informações que essas coisas produzem e, portanto, o movimento dessas informações em nossa direção.

Se vejo um carro azul, meus olhos recebem a imagem e minha mente a registra. Fechar os olhos significa interromper o fluxo dessa informação. Ver mentalmente o carro azul significa criar um movimento que parte de mim. Ainda que ele não ultrapasse os limites de meu corpo e de minha mente, ele já foi «emitido»: se posso vê-lo, mesmo que apenas mentalmente, significa que ele já está «fora de mim». Satya significa também reconhecer esses dois movimentos e não confundi-los em nenhum momento.

O indivíduo acostumado a viver na ilusão não apenas inventa realidades e se esforça para que elas substituam a realidade única. Ele também não reconhece a realidade única quando a vê. Confundir aqueles dois movimentos -- a realidade que vem até você através dos sentidos e as imagens produzidas na mente como eco dessa realidade -- significa perder todo o senso da realidade. Pior do que viver na ilusão é perder a capacidade de perceber a realidade, por mais óbvia e impactante que ela seja.

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Ah, sim, o yoga. Suponhamos que você vá até a escola onde toma aulas de yoga, estende seu tapete e posiciona-se para o início da prática. Então seu professor altera completamente o andamento habitual da aula. Ele ensina passos de dança ou fica conversando sobre os maravilhosos efeitos terapêuticos dos asanas ou, ainda, permanece em silêncio olhando para você com expressão absolutamente neutra. 

É natural que sua mente reaja. «Que raios é isso? Aula de dança agora?». Ou: «Ok, Hipócrates, asanas são uma panacéia. Que tal praticá-los?». Ou ainda: «Se ele continuar me olhando mais um segundo eu vou cair na risada. Não, eu não posso rir... eu não posso rir... Quando é que a aula vai começar?».

Uma boa forma de exercitar satya em situações assim é colocar seus pensamentos no fim da fila das coisas que participam da realidade. Observe como são suas ações quando elas não podem contar com os pensamentos. Perceba tudo o que acontece -- dentro e fora de você -- até que todas aquelas frases surjam na mente. A verdade se revela quando você se torna capaz de permanecer em silêncio, apenas observando tudo o que acontece.

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Uma linda garota da vila ficou grávida. Seus pais, encolerizados, exigiram saber quem era o pai. Inicialmente resistente a confessar, a ansiosa e embaraçada menina finalmente acusou Hakuin, o mestre Zen o qual todos da vila reverenciavam profundamente por viver uma vida digna. Quando os insultados pais confrontaram Hakuin com a acusação de sua filha, ele simplesmente disse: «É mesmo?»

Quando a criança nasceu, os pais a levaram para Hakuin, o qual agora era visto como um pária por todos da região. Eles exigiram que ele tomasse conta da criança, uma vez que essa era sua responsabilidade. «É mesmo?», Hakuin disse calmamente enquanto aceitava a criança. 

Por muitos meses ele cuidou carinhosamente da criança até o dia em que a menina não agüentou mais sustentar a mentira e confessou que o pai verdadeiro era um jovem da vila que ela estava tentando proteger. Os pais imediatamente foram a Hakuin, constrangidos, para ver se ele poderia devolver a guarda do bebê. Com profusas desculpas eles explicaram o que tinha acontecido. «É mesmo?», disse Hakuin enquanto devolvia a criança.

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