O puruṣa & a liberação segundo Patañjali
Estudos sobre a Cultura Mahāṛṣi
Pātañjala Yoga
O puruṣa & a liberação segundo
Patañjali
Fernando Liguori
O objetivo de nosso estudo de hoje é o puruṣa, seu papel
e a questão da auto-realização, que Patañjali denominou kaivalya
(isolamento).1 Primeiro, temos de ter em mente que Patañjali dá
importância fundamental a fonte ou possibilidade de todo conhecimento, a
«consciência primordial» que ele denominou puruṣa, draṣṭṛ, citi-śakti
e svāmin. O conceito de puruṣa é fonte de muita inquietação nos
acadêmicos, psicólogos e filósofos ocidentais do passado e do presente, tais
como William James, C. G. Jung, J. P. Satre e Ken Wilber. Alguns rejeitam
completamente a ideia do puruṣa, outros tentam reinterpretá-la segundo
seus conceitos e há ainda aqueles que confessam sua total ignorância diante do
assunto. Mas não é nossa intenção examinar as ideias destes pensadores, mas propor
um diálogo acerca do pensamento de Patañjali nesta questão.
Para que possamos iniciar nosso estudo, devemos ter em mente
que este «conceito-chave» na filosofia do Yoga não é o produto de mera
especulação abstrata como é, por exemplo, a noção de «estrutura distributiva»
desenvolvida pelos lógicos matemáticos. Ao contrário, o conceito de puruṣa
foi formulado com a intenção de explicar certo tipo de experiência ou realidade
experienciada encontrada no ápice do processo yogī de interiorização. É
então um conceito com um referencial concreto. Qualquer outra interpretação não
apenas contraria as explicações providas pelos yogīs, mas também reduz a
experiência yogī a especulações superficiais que não passam de
alucinações ou, na melhor das hipóteses, flutuações mentais. A questão não é,
portanto, se o puruṣa é real ou imaginário, mas se é ou não uma
conceitualização de qualquer experiência que o conceito significa ou, dito de
outra maneira, que tipo de experiência é esperado se obter a partir do conceito
segundo nossas próprias noções. A razão pela qual eu não aceito o conceito de puruṣa
como uma simples palavra desprovida de significado, como qualquer pragmático
positivista estaria apto a fazê-lo, é que isso me forçaria a negar, sem razões
suficientes, a validade do testemunho de milhares de indivíduos de diferentes
épocas e lugares, despejando uma parte significante da experiência espiritual
humana em uma pilha de lixo. Especialmente em nossa época onde as sensações,
pensamentos e comportamento já estão «congelados» ao redor de temas estreitos –
sexo, status, exaustivas horas de labuta, drogas, espectadores passivos etc. – que
seria estúpido confessar qualquer visão reducionista que procure explicar uma
experiência que desafie a base do comportamento e estilo de vida que possam ser
instrumentos na restauração de um conceito mais adequado de homem.
Se o puruṣa não é um conceito vazio, mas o símbolo de
uma experiência cujo conteúdo é real e não imaginário, somos levados a
considerar a questão do ajuste entre o conceito e a realidade que ele pretende
expressar. Mais especificamente, devemos perguntar a nós mesmos se a
experiência denominada «puruṣa» no Yoga é idêntica à experiência
denominada «puruṣa» no Sāṃkhya, «ātman» ou «brahman»
no Vedānta, «nirvāṇa» no Budismo ou «deus» no misticismo cristão.
Aqueles que acreditam na unidade transcendental da experiência transpessoal
enfatizam que todas essas designações se referem a uma e a mesma realidade e
que elas são variações da mesma experiência. Eles explicam conceitos e termos
diferentes – formulados em condições distintas – como resultado de suas
tendências filosóficas ou preferências linguísticas. Mas é uma explanação muito
simplista. Ela falha em explicar porque a descrição de uma experiência
supostamente uniforme frequentemente difere consideravelmente de outra. Este
fato permanece inteligível a menos que consideremos que não existe apenas uma
experiência – denominada diferentemente – mas inúmeras experiências com
características em comum. Não é apenas um sofisma ocidental e isso é evidente
pelo fato de que este problema já fora reconhecido muito tempo atrás pelos
pensadores indianos. Ocasionalmente, alguns escritores têm sugerido que embora
a realidade subjacente a estas experiências de nível superior sejam a mesma em
cada caso, isso se dá a capacidade individual do yogī, vedāntin
ou místico em conceitualizar uma grande variedade de experiências.
Patañjali faz duas asserções fundamentais sobre o puruṣa.
Primeiro, que o puruṣa é esmagadoramente «real». Na verdade, mais real
do que qualquer coisa que possamos encontrar no campo da experiência ordinária.
Segundo, que o puruṣa é a natureza mais essencial do homem e como tal é
o objeto mais digno de todas as motivações humanas. Estas duas asserções – a
afirmação «ontológica» da realidade suprema do puruṣa e a afirmação «axiológica»
sobre sua máxima valorização – são inseparáveis. O puruṣa, portanto, tem
o valor supremo, ele é o «summum bonum» da conquista yogī, pois
ele é a realidade suprema ou, mais precisamente, é experienciado como a
realidade suprema e vice versa.2
Essencialmente, a mesma ideia é encontrada em outras escolas
filosóficas (darśana). Em alguns textos do Vadānta, o ātman
(correspondente, mas não idêntico, ao puruṣa) é na realidade referido
como niḥśreyasa ou «o bem maior». Como um acadêmico colocou sucintamente,
nas tradições soteriológicas3 da Índia «a preocupação final do homem
é o homem».4 Quer dizer, o objetivo último que o homem pode e deve
aspirar não reside no mundo externo, mas dentro de si mesmo. Mas como o homem
pode fazer de si mesmo o objeto de sua mais sublime motivação? Isso não é um
egoísmo absoluto? A resposta a esta questão, do ponto de vista de Patañjali – e
outras respostas são possíveis! – é que o Yoga não nega o «elemento»
egoísta contido em sua prescrição para realização do Ser ou consciência
primordial. Todos os seres perpetuam sua vida se alimentando da vida dos
outros, tanto em um sentido literal quanto metafórico. A vontade de viver – ou
«fazer parte», como prefiro traduzir – «abhiniveśa», observa Patañjali
(II: 9), está presente até mesmo no sábio que afastou seu coração e mente dos
processos mundanos ou o melhor da vida como tal. A luta do yogī em
descobrir sua verdadeira natureza (i.e. o puruṣa) não está alheia de
todo egoísmo. Naturalmente, existe uma diferença enorme entre egoísmo exibido,
quer dizer, a ganância por poder ou percepções sensoriais desmedidas e o
egoísmo implícito no esforço yogī em sair de uma vez por todas do ciclo
vicioso. O egoísmo é aniquilado com todas as suas raízes quando o Ser é realizado.
O ego é algo que pertence ao complexo corpo-mente, mas o Ser está além do tempo
e espaço. Possivelmente essa injunção incondicional a realização do Ser na
filosofia de Patañjali seja unilateral. Ele chama a atenção para distinção
estrita entre o Ser e o não-ser (quer dizer, o mundo). Por conta disso,
destacando o Ser em uma posição de valor fundamental, ele é forçado a ensinar
uma forma de emancipação que pressupõe a total extinção do homem como o
conhecemos.
Mesmo que estejamos convencidos da realidade do puruṣa,
em que campo nós precisamos aceitar a ideia de auto-realização como ensinada
por Patañjali? Esta ideia constitui a realização máxima a que devemos aspirar?
A conquista desta realização máxima não constitui na extinção do ser no tempo e
espaço? Por que deveríamos apreciar esta ideia de realização espiritual? Essa
forma de auto-realização, mencionada por Patañjali no Yogasūtra (IV:
34), implica que a emancipação segue a total dissolução do organismo, aqui
compreendido como o corpo e a atividade psico-mental da vida. Em outras
palavras, é a reabsorção dos constituintes primários na Natureza. Uma versão
mais moderada de auto-realização ou emancipação é ensinada em certas escolas do
Vedānta, onde uma distinção é feita entre o jīva-mukti «liberado
em vida» e o videha-mukti «liberado após a morte». O ideal de liberação
em vida é fundamentado na compreensão de que desde que a realização do Ser é de
qualquer maneira um evento atemporal, o organismo não está de todo envolvido e
portanto, a liberação não precisa necessariamente ser precedida pela extinção
total do complexo psico-físico. É um ponto de vista bem menos extremista, mas
igualmente problemático.
Mesmo considerando a possibilidade da liberação em vida ou
após a morte, devemos ainda procurar a resposta para questão inicial: por que o
Ser deveria ser contemplado como o objeto de valor essencial, último? Por que
não deveríamos nos empenhar na busca da verdade, do conhecimento, beleza ou
felicidade? Bem, acredito que todos os darśanas respondem de maneira muito
parecida essa questão fundamental: o supremo valor da auto-realização reside no
fato de que o Ser é a única realidade que permanecerá após tudo ruir e ser
consumido pelo tempo. Essa convicção está expressa em outro grande clássico do Yoga,
a Bhagavadgītā (II:20), nas seguintes palavras:
न जायते म्रियते वा कदाचिन्नायं
भूत्वाभविता वा न भूयः।
अजो नित्यः शश्वतोयं पुराणो न हन्यते
हन्यमाने शरीरे॥ २०॥
na jāyate mriyate vā kadācinnāyaṃ bhūtvābhavitā vā na bhūyaḥ
|
ajo nityaḥ śaśvatoyaṃ purāṇo na hanyate hanyamāne śarīre ||
20 ||
II: 20 Este [eu] não nasce, nem jamais morre; existindo,
nunca voltará a não existir novamente. Este não nasce, é eterno, imutável,
sempre o mesmo. Quando o corpo é destruído, ele não é destruído.
Em contraste com o mundo incessantemente inconstante, o Ser
é permanentemente estável. Como Patañjali postula (IV: 18), o Ser é o
«conhecedor», quer dizer, ele é caracterizado pela imutabilidade «apariṇāmitva».
É nesta inabalável estabilidade do Ser mais íntimo que Patañjali vê o seu
grande valor como uma panaceia para erradicação da ansiedade que domina a
condição humana. A realização da consciência primordial significa a conquista
de todo o medo, de todos os males, de todas as neuroses. A doutrina de
Patañjali não é um modo de se viver no mundo livre do medo da morte ou a perda de
qualquer tipo, mas na aquisição de outra dimensão de mundo e existência onde não
faz sentido algum falar de medo ou de sua remoção. A transformação da natureza humana
como prevista pela doutrina do Yoga é um processo radical de negação de tudo
o que é ordinário a típica condição humana. Para Patañjali, a verdadeira natureza
humana é o Ser e a manifestação espaço-temporal do homem é meramente epifenomênica.
Por alguma razão inexplicável, este Ser puro e imutável se identifica com um organismo
particular. Mas essa identificação é ilusória, falsa, e mesmo assim é a causa de
todas as mazelas humanas. O meio de terminar com esse sofrimento é a auto-absorção,
retirando e demolindo toda pseudo-identidade, até que o Ser seja «escavado» de todas
as múltiplas camadas dos detritos psico-mentais.
Anotações:
1. A palavra kaivalya aparece pela primeira vez no
aforismo II: 25 e vem da raiz kevala, que significa isolado. O
aforismo segue com tradução, transliteração e interpretação:
तद्अभावात् संयोग अभावो हानं तद् दृशेः कैवल्यम्
tad-abhāvāt saṃyoga-abhāvo hānaṃ tad-dṛśeḥ kaivalyam
tad = isto (refere-se à ignorância, falta de sabedoria) • abhāvāt
= ausência (veja I: 10) • saṃyoga = fusão ou união (veja II: 17) • abhāva =
ausência (veja I: 10), aqui, desaparecer • hāna = cessação ou interrupção (da
raiz √hā «deixar») • tad = isto • dṛśi = aquilo-que-é-visto (veja II: 20)
• kaivalya = isolamento, liberdade absoluta (veja IV: 34), unidade absoluta,
estar só.
II: 25 Sem [essa ignorância], tal união [saṃyoga] não
ocorre. Essa é a liberdade absoluta [kaivalya] diante de
aquilo-que-é-visto (dṛśeḥ).
Quando a ignorância é dissipada a fusão também cessa. O
resultado é a total cessação de toda consciência e atividade corporal. Essa
suprema condição é conhecida como isolamento total de aquilo-que-é-visto que é
a subjetividade pura da «consciência primordial». Talvez o termo aqui
utilizado, «isolamento total de aquilo-que-é-visto» possa não ser compreendido
completamente. Ela não quer dizer «isolamento total de aquele-que-vê» (J. H. Woods)
ou a «liberação de aquele-que-vê» (I. K. Taimni). Ao contrario, ela se refere à
capacidade do Ser (puruṣa) de contínua percepção (de aquilo-que-é-visto)
quando essa percepção é desprovida de ideias apresentadas, quer dizer, é
«isolada». Portanto, kaivalya não é um sinônimo de mokṣa, mukti
ou apavarga (veja II: 18).
2. O espírito é aquele-que-vê «sākṣin», a consciência
testemunha, está isolado «kaivalyam», é indiferente, um espectador
inativo, como postula Īśvara Kṛṣṇa na Sāṃkhyakārikā, 19:
तस्माच् च विपर्यासात् सिद्धम्
साक्षित्वम् अस्य पुरुषस्य
कैवल्यम् माध्य स्थ्यम् द्रष्टृत्वम्
अकर्तृ भावश् च
tasmāc ca viparyāsāt siddham sākṣitvam asya puruṣasya
kaivalyam mādhya-sthyam draṣṭṛtvam akartṛ-bhāvaś ca
S.K. 19: Em contraste com isso, o puruṣa tem o papel
de testemunha; é isolado e indiferente; percebe, mas não age.
3. Pelo termo «soteriológico» queremos dizer um corpo de
ensinamentos e técnicas que levam a liberação.
4. CATALINA, F.
V. A Study of the Self Concept of Sāṅkhya Yoga Philosophy. Delhi, 1968.
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