segunda-feira, 29 de junho de 2009

O Ascetismo Devocional do Shaivismo Tâmil



Por Anuttara Kápilanáth Kuláchárya

As tradições shaivas ou shivaístas perdem-se na proto-história da Índia, mas seu florescer mostra duas linhas de desenvolvimento: uma de origem védica e outra pré-védica, associada à cultura dos povos aborígenes da Índia.

Diferente do culto social e urbano das tradições vaishnavas, os shaivas mostravam acentuada tendência aos aspectos da vida ascética, habitando retiros nos campos e montanhas e praticando ritos de alquimia típicos dos yogís da época, com rituais voltados para manifestação dos poderes (siddhis) e realização de milagres. Referências a estas práticas ascéticas são mencionadas em uma escritura chamada Shivabhágavata, onde há relatos de yogís nus portanto tridentes e pregando cultos shaivas em suas caminhadas pelas aldeias. Dessa forma o movimento shaiva espalhou-se rapidamente por toda Índia, cruzando suas fronteiras para ser a principal forma de religião na distante Angkor Vat, o atual Camboja, entre os Sécs. IX e XIV d.C., onde um conglomerado urbano de dimensões gigantescas para a época formava o maior centro hindu fora da Índia.

O crescimento do movimento shaiva durante o período Gupta é atestado em um pilar na cidade de Mathura com inscrições de Candraguta II, que registrou a presença de Uditáchárya, o qual faz menção a seus gurus, Lakulísha e Kushika, ambos conectados ao culto Lakulísha-Páshupata, uma tradição considerada fazer parte das raízes do shaivismo.

O movimento shaiva desempenhou um importante papel no sul da Índia durante o reinado de Pallavas, em conseqüência de sua constante oposição ao Budismo e ao Jainismo. Por outro lado, os reis da dinastia dos Colas eram shaivas e, dando continuidade ao trabalho iniciado durante o período purânico, construíram templos, monastérios (matthas) e escolas voltadas ao ensinamento da tradição shivaísta nesta região.

Rapidamente o shaivismo diversificou-se e várias classificações foram sugeridas para as diversas tradições shaivas que foram surgindo. Segundo os diferentes grupos de escrituras que compõem cada tradição, temos uma visão deste interessante e complexo conjunto:

1. A tradição baseada nos puránas é conhecida como Siddhánta – que não deve ser confundida com Shaiva Siddhánta – de origem dvaita (dualista) que se desenvolveu na região da Caxemira ao norte da Índia.

2. As tradições baseadas nos shaivágamas são três: a primeira denomina-se Shaivismo Tâmil que se desenvolveu no sul da Índia entre os Sécs. XI e XIII d.C. e que comportou as tradições Shaiva Siddhánta, Siddhas e Nátha-Siddhas. A segunda denominada Vírashaivismo foi iniciada pelo sábio Basava no Séc. XII d.C. e comporta a tradição dos Lingáyats. A terceira é conhecida atualmente pela designação genérica de Shaivismo da Caxemira que engloba as tradições Kaula, Trika, Krama, Spanda e Pratyabhijñá.

3. A tradição dos Pashupátas que tem seu início atribuído a Lakulísha ou Nakulísha, autor do Pashupáta-Sútra. Esta tradição fora marcada por um intenso ascetismo imposto aos seus praticantes como uma forma de se alcançar o objetivo supremo da auto-realização por meio da identificação entre o devoto e Shiva (Rudrasáyujiya). Neste grupo estão inseridas as tradições dos Kápálikas e dos Kálámukhas.

Destacamos como uma importante tradição conectada ao shaivismo e tão antiga quanto à dos Páshupatas a dos Nátha-Siddhas cuja origem é atribuída ao mítico Gorakshanáth (950 d.C.), considerado o pai do
Hatha Yoga e patrono da tradição Siddha Siddhánta.

Gorakshanáth fora discípulo de Matsyendranáth (900 d.C.), e tal como seu mestre, sua biografia também mescla fatos históricos e míticos, tornando difícil precisar dados concretos sobre sua vida e realizações. Em verdade, os ensinamentos deixados por ele tanto quanto por seu mestre estão contidos em obras escritas por seus seguidores, pois não existe – do ponto de vista histórico – nenhuma obra que possa ser atribuída a eles com certeza absoluta, embora haja inúmeras que recebem seus nomes.

Os seguidores de Gorakshanáth são conhecidos como yogís, gorakhnáthís,[1] ou como darshanís, contudo, mais distintamente como kánphatayogís. A primeira destas denominações refere-se à prática tradicional dos nátha-siddhas, i.e. o Hatha Yoga.
[2] A segunda denominação é uma homenagem ao seu renomado mestre e a terceira é uma referência aos grandes alargadores que utilizam, e que é uma de suas marcas mais distintas. A quarta denominação é uma referência a prática de fender os lóbulos da orelha para alojarem os brincos alargadores. A palavra Kánphatha significa, literalmente, ‘fender a orelha’.[3]

Os Kánphatas (ou náthaphantins) foram muito influenciados pelas escolas budistas Vajrayána e Sahajayána, bem como pelos cultos shaivas de ‘mão-esquerda’ (vámácáras) como os Kápálikas e os Kaulas, além do cânone shaivágama. Esta escola apresentou uma grande confluência de tradições, assimilando em seu escopo a cultura do Yoga, os conceitos budistas de shúnya, sahaja e a concepção Shiva e Shakti conforme apresentada pelo shaivismo ágamico. A tradição guru-parámpará deste culto inclui muitos nomes dos 84 siddhas do Budismo tibetano. Essa confluência parece ter ocorrido por volta de 800 a 1100 d.C. Somente após este período é que a tradição nátha-siddha se estabeleceu e foi aceita por todos como uma autentica escola shaiva.

A palavra yogí é um termo genérico que não está conectado diretamente aos kánphatas. Ele é aplicado com designações distintas que vão do santo ao feiticeiro, do mestre ao charlatão. George Weston Briggs em seu Gorakhnáth and the Kánphata Yogís (p. 2) cita:

[...] No Punjabi, o termo Yogí é utilizado para cobrir um diversificado grupo de pessoas. Uma miscelânea de faquires de casta inferior, cartomantes e quiromantes conglomerados, tanto hindu quanto mulçumanos, mas principalmente mulçumanos, são comumente chamados de Jogís. Todo mendigo pedante e vil que pretende estar apto para fazer adivinhações e previsões, ou praticar artes necromânticas e astrológicas, seja lá qual for o grau, adquire por sua própria conta um tambor e se autodenomina – e é denominado por outros – um Jogí. [...]

Yogí também é um termo aplicado a um tipo peculiar de asceta que coloca sob julgo seu corpo a fim de garantir sua união com Shiva. De um ponto de vista generalizado, os Gorakshanáthís são o principal grupo e constituem os melhores yogís. São encontrados por toda Índia, sempre conectados a grupos essencialmente ascéticos. A Hatha Yoga Pradípiká (I: 12-14) elucida seu meio de vida:

O hathayogí deve viver em um abrigo solitário com a largura de um arco onde não haja o perigo de rochas, água e fogo. Onde o reino, a casa e o lugar sejam virtuosos e seguros; e que haja comida abundante.

O abrigo deve ter uma pequena porta e nenhuma outra abertura, buraco ou cômodo. Nem muito alto, nem muito baixo, bem calafetada com uma grossa camada de esterco de vaca, limpo e livre de outros seres.

Fora, uma plataforma deve ser erguida com um assento elevado e um bom poço, que deve ser circundado por uma parede. Estas são as características de um abrigo de yoga descritas pelos siddhas, para a prática do Hatha Yoga.

Assim feito o abrigo, depois de um tempo as perturbações são abandonadas, então se deve ocupar realmente com yoga conforme instruído pelo guru.


A tradição shaiva (Siddha Siddhánta) conectada ao nome de Gorakshanáth é de natureza ascética, tendo herdado muitas práticas dos Páshupatas e da tradição Ádi-Nátha, em contraste com a tradição Nadinátha (Shaiva Siddhánta) do sul. Embora seja uma tradição tântrica por excelência, sua abordagem é distinta das escolas de mão-esquerda (vámácára). Nesta escola, a energia sexual é exclusivamente direcionada através de práticas yogís e o celibato (brahmacharya) é compreendido no sentido mais estrito do termo.

Seus seguidores acreditam que Shiva é a causa material da criação e que após sua libertação, as jívas poderão retornar a Ele. A unicidade com Shiva pode ser experienciada por austeras práticas de Yoga que conduzem a profundos estados de samádhi. Quando este estado é alcançado, a alma permanece para sempre estabelecida na Consciência Transcendental enquanto engajadas no mundo. Eles acreditam que pela prática do Hatha Yoga é possível abrir um canal energético através das nádís onde a Consciência Transcendental é manifestada, o que garante a aquisição de siddhis e a liberação.

Filosoficamente este é um sistema monista conhecido como bhedabheda (não-dualidade com dualidade), que considera Shiva tanto imanente como transcendente. Shiva é, simultaneamente, causa eficiente e material. A criação e o retorno final da alma e do cosmos para Shiva são comparados a bolhas que emergem e retornam para a água.

Mas nosso maior interesse no presente está centrado no ascetismo devocional do shaivismo tâmil. A tradição Shaiva Siddhánta é uma das escolas mais antigas do shaivismo. É tamanha sua ancestralidade que sua história pode ser rastreada a mais de dois mil anos,[4] conforme alguns historiadores. Suas raízes podem ser traçadas desde a Caxemira no norte ao oeste do Sri Lanka, mas ganhou maior popularidade no estado de Tâmil Nadu no sul da Índia, onde se estabeleceu como uma tradição.

A designação Shaiva Siddhánta é dada por um autor da Caxemira chamado Sadyojyoti (Séc. IX d.C.) em seu Bhoga Káriká (v: 2): “O termo siddhánta é aplicado ao shaivismo baseado em vinte e oito Tantras como o Kámikágama composto por Shiva”. Em seu Moksha Káriká (v: 79), um comentário do Ruru Siddhánta, um texto shaivágama, ele atesta que este siddhánta lida com bhoga (prazeres do mundo) e com moksha (liberação do samsára).

Segundo G.V. Tagare,
[5] esta escola originou-se na Caxemira e foi predominante até 800 d.C. Quando houve a eclosão do Shaivismo da Caxemira sua popularidade descendeu, e no Séc. X d.C. já se encontrava estabelecida em Madhya Pradesh. O rei Bhoja (1018 a 1060 d.C.) foi um dos maiores benfeitores desta escola, contribuindo muito para sua expansão. Contudo, foi no estado de Tâmil Nadu (Sécs. XI a XIII d.C.) que ela ganhou proeminência, e o crédito por este estabelecimento é dado aos santos shaivas de Tâmil conhecidos como Náyanárs ou Adiyárs (comandantes) e a autores como Aghorasiva (c 1200 d.C.), como veremos adiante.

Seja como for, nos parece que o passado da tradição Shaiva Siddhánta está muito arraigado as regiões setentrionais da Índia, conforme percebemos por alguns aspectos semelhantes entre essa escola e as tradições florescentes do norte. Por exemplo, a noção de liberação através do ritual de iniciação é uma das idéias centrais da tradição Páshupata, e os shaivas siddhántins parecem ter herdado esta prática.

A mais importante fonte histórica acerca da chegada desta escola em Tâmil Nadu encontra-se no gigantesco Tirumandiram (‘Sagrado Encantamento’), a primeira escritura que expõe a doutrina da tradição Shaiva Siddhánta na língua tâmil e consiste de nove Tantras que juntos somam mais de três mil versos. De autoria de Tirumúlár (c 2200 d.C.), esta escritura trata de inúmeros aspectos da tradição, e traz a idéia, segundo o autor, de que ambos os Vedas e os Ágamas foram criados pelo Senhor Shiva. Tirumúlár foi um dos primeiros mestres da tradição siddha. Ele mesmo define um siddha como “um adepto que teve contato direto com a luz divina e recebeu o poder (shakti) através do êxtase yogí”. Esta sua frase esta em completa concordância com a doutrina Shaiva Siddhánta do shakti nipáta (descida do poder) e a velocidade desta descida: manda (vagarosa), mandatara (lenta), tívra (incessante) e tívratara (mais incessante). Seu sampradáya chamava-se nadinátha e sabe-se que ele veio da Caxemira para divulgar os ensinamentos sagrados contidos nos vinte e oito shaivágamas, expondo a doutrina ágamica em sua monumental obra.

A forma original desta tradição parece incerta. Alguns autores mantêm que ela originou-se como uma doutrina monista (Advaita Íshvaraváda Saiva Siddhánta), conforme exposta por Tirumúlár (c 2200 d.C.). Segundo sua doutrina, Shiva é causa eficiente e material, imanente e transcendente. Em tâmil, essa idéia é encapsulada pela frase “Shiva é amor imanente e realidade transcendente”. A alma criada por Shiva está destinada a se fundir nele próprio. Em aproximadamente 900 d.C., o santo tâmil Meykandar formulou uma versão dualista da tradição Shaiva Siddhánta. Ele enfatizava que o mundo e a alma são eternos, nunca criados e inerentemente separados. Uma visão completamente contrária as idéias de Tirumúlár.

De qualquer forma, estudiosos ainda não chegaram a um consenso. Nos primórdios do desenvolvimento teológico desta escola, a questão sobre monismo ou dualismo – que se tornou o foco central dos fervorosos debates teológicos posteriores – não havia emergido como uma questão relevante. G.V. Tagare, em seu livro Shaivism – Some Glimpses aborda esta escola do ponto de vista dualista (dvaita), comparando-a com a escola vaishnava de Madhva. Ele diz (p. 2):

Quando Deus, as almas individuais e os objetos do mundo são considerados mutuamente diferentes inter se, esta escola é chamada dvaita ou dualista. Madhva foi o expoente do dualismo vaishnava. Os shaivas dualistas são conhecidos como shaiva siddhántins e sua escola é a Shaiva Siddhánta.

Neste ponto, é interessante fazer algumas comparações entre o shaivismo dualista e as idéias dualistas da escola vaishnava de Madhva:

1. Assim como na tradição Shaiva Siddhánta, Madhva insiste em uma multiplicidade de almas e que existe uma diferença entre elas e Deus; uma diferença entre elas mesmas; e uma diferença entre matéria, almas e Deus. Deus é independente enquanto as almas e a matéria são dependentes em Deus.

2. Assim como na tradição Shaiva Siddhánta, Madhva acreditava na criação do Universo e que Deus era sua causa eficiente (nimitta kárana), tal como o oleiro, lama ou a terra é a causa material (upádána) e suas shaktis (o bastão que movimenta a roda do oleiro) são a causa instrumental.

3. Assim como na tradição Shaiva Siddhánta, Madhva acreditava na importância da devoção (bhakti) para se obter o conhecimento (jñána) espiritual supremo e a necessidade da descida da graça de Deus (anugraha) para liberação.

Georg Feuerstein não compartilha da opinião de Tagare. Em seu livro A Tradição do Yoga (p. 342) ele diz:

[...] a metafísica desta tradição é uma forma de não-dualismo qualificado: Shiva é a Realidade Única e o mundo inconsciente (acit) da multiplicidade não é mera ilusão, mas o produto do poder (shakti) de Shiva. Temos aí um importante fator de distinção em relação à tradição do norte, que favorece a idéia de que o mundo é ilusório. Em ambas as tradições, porém, a liberação depende da graça (prasáda).

Em outro livro, Enciclopédia de Yoga da Pensamento (p. 211), Feuerstein diz:

A tradição Shaiva Siddhánta adota uma metafísica não-dualista (advaita), distingue entre o divino, denominado pashupati (Shiva); a psique individual, denominada pashu; e a natureza inconsciente, chamada de ‘grilhão’ (pásha).

O shaivismo popularizado pelos fervorosos devotos de Shiva em Tâmil Nadu é um credo cosmopolitano. Muitos de seus aderentes são bráhmanes, outros ádivásís e não há preconceitos em relação a castas. Os shaiva-bhaktas que supostamente pertencem a uma casta mais elevada sentam-se ao lado de seus irmãos de castas inferiores para adorar o Senhor Shiva e celebrar ao som das melodias. Mesmo os bráhmanes adoradores de Shiva no sul da Índia não são proficientes em seu culto original; pouquíssimos são instruídos até mesmo nos shaivágamas. Sekkilár, autor do famoso Periya Puránam (p. 205) diz: “estes santos do folclore tâmil eram todos analfabetos que transmitiam suas virtudes através de sua intensa devoção”. Acerca da vitória sobre o Budismo e o Jainismo na região, ele comenta (p. 207): “a vitória do shaivismo se deu através dos milagres, e não através de disputas filosóficas”. Sobre o próprio Tirumúlár, considerado um santo e siddhayogí, é dito ter ido habitar nas moradas do Senhor Shiva em corpo físico.

O Shaiva Siddhánta conforme exposto no Tirumandiram apresenta quatro formas de shaivismo: shuddha, ashuddha, márga e kandum shuddha (muito puro) e quatro sádhanas distintas a fim de se atingir a realização: caryá, kriyá, yoga e jñána; cada sádhana vinculada a um caminho: sanmárga, sakhá márga, sat-putra márga e dása márga. Tirumúlár insiste na prática do bhakti-shaiva. Sua maior contribuição está no fato de tentar conciliar o Vedánta com o Siddhánta dizendo que “quando o Vedánta é reforçado pela prática, ele se torna Vedánta-Siddhánta.” Sua tese pode ser sumarizada como se segue:

1. Quando o paraguru instrui o discípulo que Shiva em anda (Universo) é o mesmo que Shiva em si mesmo, isso corresponde no mahávákya – tattvamasi.

2. Quando alguém vê o Sadáshiva Linga e recebe sua divina graça, isso corresponde a Verdade no mahávákya – aham brahmási.

3. Quando o átma-linga é visualizado e alguém repousa em puro cit, ocorre a realização de brahmaiváham.

4. Quando o jñána-linga é visto, o estado de prajñánam brahma é alcançado.

5. No estagio final, quando o Shiva Linga é visto, ocorre a unificação final de jívátman e paramátman, não havendo assim nenhuma distinção entre o discípulo e o mestre. Não há mahávákya.

Um dos aspectos mais importantes da obra de Tirumúlár é a terceira seção (Tantra) do Tirumandiram. Aqui o autor expõe sua própria visão dos oito (ashtánga) membros do Yoga de Pátañjali, descrevendo inúmeros siddhis adquiridos pela prática do Yoga que não são listados no Yoga-Sútras. Por exemplo, proficiência em ásana assegura a graça de Umá e a chance de viver em Amarávatí, ao lado de Indra. Proficiência em dhyána confere o poder de se mover nas regiões habitadas por Brahma, Vishnu etc. Ele ainda descreve práticas tântricas como o khechárí mudrá, a qual ele conceitua como “a contenção simultânea dos movimentos da mente, da respiração e do sêmen”.

A quinta seção do Tirumandiram propõe uma prática espiritual progressiva em quatro vias distintas que estão relacionadas aos quatro maiores santos do shaivismo tâmil após Tirumúlár: o caminho da vida moral e virtuosa (charyá), o caminho da prática ritualística (kriyá), a ascese pessoal (yoga) e o caminho da gnose (jñána, vidyá). Por meio destes quatro caminhos interconectados a liberação pode ser conquistada.

A primeira dessas quatro vias (charyá) envolve o serviço ao Senhor Shiva em templos ou em locais sagrados executando tarefas como atuar na limpeza, cozinhar, cuidar da água, jardinagem, coleta de flores etc. Este caminho é conhecido como dásamárga ou o caminho do servente. O progresso nesta via lhe dá acesso à morada do Senhor Shiva.

A segunda via (kriyá) envolve a execução de tarefas devocionais como a adoração do Senhor Shiva na forma de uma imagem, recitar mantras, cantar músicas (bhajans) devocionais,[6] narrar histórias sobre o Senhor Shiva, ou fazer um serviço pessoal ao Senhor Shiva, da mesma maneira que um filho faz para com seu pai. Este caminho é conhecido como satputramárga ou o caminho do bom filho. A proficiência nesta via lhe garante proximidade ao Senhor Shiva.

A terceira via (yoga) envolve a prática de ásanas e meditação (dhyána). Por meio deste caminho, o praticante tem a oportunidade de viver constantemente ao lado de Shiva, em sua morada, tornando-se sua companhia espiritual. Esse caminho é conhecido como sakhámárga ou o caminho da amizade. A diferença entre os dois caminhos (ou estágios) anteriores é que eles são externos. Nesta via, os sentido são retraídos dos objetos externos e a mente se encontra absorvida completamente em Shiva.

A quarta via (jñána), nesta tradição, é tida como a melhor e mais direta forma de se atingir a morada do Senhor Shiva. Ela é conhecida como satmárga pois sua prática deixa as jívas próximas de sat (Shiva) fazendo com que elas se tornem conscientes da Verdadeira Consciência Universal. As vias anteriores são preparatórias para esta. O Shaivismo Siddhánta acredita que moksha, atingida através desta via (pati-jñána) é o conhecimento das almas acerca da verdadeira Consciência do Absoluto.

A proficiência nestas quatro vias leva o shaiva siddhántin a um estado de liberação chamado salikatá (estar na mesma região que Shiva), samípatá (estar próximo a Shiva), sarúpatá (ter a aparência igual a de Shiva) e sáyujyatá (na a absorção em Shiva, mas Shivatva – a bem aventurança do estado de Shiva).

Após a liberação, a alma liberada sabe que sua natureza intrínseca é Shiva (pati), mas não Shiva, o Ser Supremo (pashupati). Assim, em seu estado de liberação ela continua a experienciar alguma forma de dualidade, e enquanto desfruta da consciência de Shiva se encontra livre de toda a escravidão (pásha).

Como citado acima, estas quatro vias de liberação estão associadas aos samayácháryas, i.e. os quatro santos do shaivismo do sul conhecidos como Appar (600 a 681 d.C.), Sambhadar ou Tirujñána Sambhadar (644 a 660 d.C.), Mánikkavácakar (600 a 692 d.C.) e Sundaramúrti (710 a 735 d.C.). Por sua firme convicção no movimento shaiva-bhakta, com belíssimas músicas devocionais dedicadas a Shiva, é dito que estes santos derrotaram o Budismo e o Jainismo no estado de Tâmil Nadu, restaurando assim o shaivismo conforme estabelecido por Tirumúlár. Estes santos estão associados a cada um dos estágios ou caminhos listados acima. A influência dessas graciosas canções é tamanha que elas são conhecidas como o Veda Tâmil.

O Séc. X d.C. foi à culminação de um longo período de sistemáticos debates teológicos que ocorreram na Caxemira, e os exegéticos trabalhos de Bhatta Náráyánakantha, Bhatta Rámakantha e Abhinavagupta parecem ter sido um exemplo da mais sofisticada expressão do pensamento shaiva. Fora tamanha a expressão destes autores – e outros – que seus trabalhos foram emulados por inúmeros autores sul-indianos do Séc. XII d.C., como p.e. Aghorasiva e Trilocanasiva. A teologia exposta por estes autores era, portanto, baseada e fundamentada em escrituras tântricas conhecidas como shaivágamas. Mas após o Séc. XII d.C. (alguns estudiosos citam Séc. VII e IX) a influência shaiva que vinha do norte fora quase que completamente eliminada. Os shaivas do sul começavam a produzir seu próprio cânone que recebeu o nome de Shaiva Siddhánta. Em contra partida, com o tempo, a influência da tradição Shaiva Siddhánta parecia já não mais existir em nenhum outro lugar fora do estado de Tâmil Nadu no sul, e é assim até os dias de hoje.

Para os shaivismo tâmil, Deus é infinitamente misericordioso e Sua graça não conhece limites. O caminho que leva a Deus é seu amor devocional (bhakti) acompanhado de uma profunda meditação no Senhor. O shaiva siddhántin não vê outro bem senão o de unir-se a Shiva, o divino amante, e a Ele apegar-se no êxtase da entrega. Eles são ascetas do coração, que mesmo constituindo famílias, renunciam a todas as coisas e se tornam humildes servos do Senhor.

Bibliografia

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CHATTERJI, Suniti Kumar. The Cultural Heritage of India (Vols. I-IV). Calcutá: The Ramakrishna Mission, Institute of Culture, 1975.
FEUERSTEIN, George. A Tradição do Yoga: História, Literatura, Filosofia e Prática. São Paulo: Pensamento, 2001.
____________. Enciclopédia de Yoga. São Paulo: Pensamento, 1997.
MISHRA, Kamalakar. Kashmir Shaivism. Nova Délhi, Índia: Sri Satguru Publications, 1999.
PRANABANANDA, Jash. History of Shaivism. Nova Delhi, Índia: Chaukhamba Sanskrit Studies, 2003.
SATI, Tarananda. Tantra Kaula: A Arte do Ritual e da Magia. São Paulo: Madras, 2006.
TAGARE, G.V. Shaivism – Some Glimpses. Nova Délhi: D.K. Printworld Ltd, 2001.

Notas

[1] Ou gorakshanáthís.
[2] A disciplina nátha envolve o cumprimento rigoroso de certas observâncias da tradição, como a comemoração do Shivarátri, peregrinação a locais sagrados (píthas) shaktas e shaivas, a preservação da família, o estudo de determinadas escrituras e a prática religiosa do Hatha Yoga.
[3] A prática de fender a orelha se originou com Gorakshanáth. Alguns autores supõem que a designação kánphata seja um termo desrespeitoso impingido a estes yogís pelos mulçumanos.
[4] B. Bhattacharya. Shaivism and the Phallic World, Vol. II, p. 11.
[5] Shaivism – Some Glimpses, p. 2
[6] Entre os Sécs. V e VIII d.C. o Budismo e o Jainismo tinham muitos adeptos no estado de Tâmil Nadu antes que se iniciasse o fervoroso renascimento do shaivismo devocional (bhakta). Entre os Sécs. VII e IX d.C., santos peregrinos como Campatar, Appar e Cuntarar usaram bhajans devocionais dedicados a grandeza de Shiva a fim de refutar os conceitos jainas e budistas.

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