Por Fernando Liguori
A importância e o significado de
Abhinavagupta tem o peso da tradição tântrica em si. Sendo importante para a
tradição tântrica, ele tem um significado especial, pois sua contribuição para
o entendimento da filosofia tântrica é valoroso em demasia. Nós podemos dizer
que Abhinavagupta é simplesmente indispensável ao estudante do Tantra. Suas
ideias são únicas e auxiliam o estudante a entender a posição tântrica de forma
racional, lógica e consistente como um todo. Suas concepções preencheram as
lacunas da filosofia tântrica em grande medida. Como resultado, o Tantra não
foi o mesmo após Abhinavagupta.
O conhecimento esotérico do Tantra
está expresso em uma linguagem simbólica que às vezes é inteligível. Os
símbolos tântricos não podem ser compreendidos na falta de pistas que a própria
tradição provê. Abhinavagupta deixou indicações claras para o entendimento dos
símbolos tântricos. Essas indicações não são o fruto de seu entendimento
racional, mas são derivadas da própria tradição. Abhinavagupta faz parte da tradição,
tendo estudado com muitos gurus ilustres. Ele os reconhece por lhe iluminar em
certas dificuldades e problemas.1 Portanto, por um lado a explanação
do intricado simbolismo do Tantra apresentada por Abhinavagupta tem suas raízes
na tradição; por outro, ela foi forjada pelo seu brilhantismo, percepção
acurada (tarka)2 e insight iluminado. Sem Abhinavagupta,
seria difícil clarear o caminho espinhoso da selva do simbolismo tântrico.
Abhinavagupta apresenta as
dificuldades filosóficas do Tantra de maneira coerente e convincente, o que transformou
a tradição tântrica em uma doutrina aceitável, lógica e racional. Da maneira
como expôs, o que antes era complexo se tornou simples, o que era esotérico e
místico se tornou racionalmente compreensível.
A claridade e precisão com as quais
Abhinavagupta promoveu a filosofia tântrica e o talento e insight com os quais
ele interpretou a posição tântrica causou um impacto impetuoso nos pensadores
da tradição que, a partir daí passaram a segui-lo. Este poderoso impacto foi
devido a claridade extraordinária com a qual ele lidava com os problemas. A
beleza de Abhinavagupta é que ele é relevante para nós hoje. Abhinava
significa novo, original, singular. Seus discípulos o
chamavam de o sempre-novo, pois ele apresentava soluções simples para
problemas e desafios gigantescos. Sua abordagem foi uma brisa refrescante no
rosto dos adeptos da tradição, ācāryas e sādhakas.
Abhinavagupta também nos provê uma
linha de unidade entre as diferentes tendências dentro da tradição do Śaivismo
da Caxemira, unindo-as sob a filosofia Trika ou Pratyabhijñā.
No tempo de Abhinava, o Śaivismo da Caxemira possuía quatro
sub-tradições principais: as escolas Spanda, Krama, Kula e
Pratyabhijñā. A escola Spanda enfatiza o aspecto dinâmico da
Consciência, tecnicamente chamada spanda ou kriyā.3
Ela enfatiza a atividade espontânea da consciência como um meio de realização
do Ser. A escola Krama, que enfatiza passos sucetivos de manifestação do
Ser ou Śiva, na forma de mundo de criação de formas (vikalpas), fazendo uso
destas formas de criação para alcançar o Ser de maneira sucessiva. A escola Kula,
que enfatiza a união de Śiva e Śakti simbolicamente representados na união
entre homem e mulher, busca a auto-realização através daquilo que ficou
conhecido como caminho da mão esquerda (vāma-mārga), utilizando os Cinco
Ms ou o ritual pañca-makāra. Especificamente, o quinto M é maithuna
ou interação sexual.4
A escola Krama pode ser
chamada de o caminho da formiga (pipīlīka-mārga): o aspirante
espiritual (sādhaka) vagarosamente e sucessivamente cruza cada estágio
como uma formiga que caminha calmamente. A escola Kula pode ser chamada
de o caminho do pássaro (vihaṅgama-mārga): o sādhaka,
tendo eliminado muito de sua ignorância – tanto na vida presente como nas
anteriores – alcança o objetivo diretamente como um pássaro que decola do chão
e voa para copa da árvore. O pássaro não precisa passar por passos graduais e
sucessivos. A formiga, contudo, tem de ir por todo caminho ao longo da árvore a
fim de atingir o topo.
A escola Pratyabhijñā, que
enfatiza o conhecimento (jñāna) da Realidade, promove a auto-realização
pelo reconhecimento da unidade com todos os seres através do amor
universal. Pratyabhijñā significa tanto remoção da ignorância,
que é o senso de dualidade e reconhecimento, que é a obtenção da
consciência do Absoluto e sua unidade com todos os seres.5
Abhinavagupta toma o conceito de pratyabhijñā
e o utiliza como um fio condutor para as diferentes tendências do Śaivismo
da Caxemira, unificando-as em uma única guirlanda. Para ele, Pratyabhijñā
se tornou a filosofia central do Śaivismo Trika e todas as outras
escolas foram incorporadas nela. Ele assinala que Spanda ou Śakti
é um outro nome para o dinamismo natural de Śiva ou Consciencia, que é tanto
Śiva quanto Śakti. Assim, Pratyabhijñā, que é o conhecimento do Ser ou
Śiva, não pode estar separada de Spanda. Krama também está
inclusa em Pratyabhijñā, pois as formas da criação são as manifestações
do Ser ou Śiva e Śiva pode ser alcançado através de passos sucessíveis também.
É apenas uma questão de caminhos ou meios (upāya). Krama se
encaixa na execução de śāktopāya. Mesmo seguindo o caminho da mão
esquerda, a escola Kula não está longe ou afastada da filosofia Pratyabhijñā.
Kula defende a utilização de ferramentas apropriadas para se atingir a
auto-realização (pratyabhijñā). Essas ferrammentas especiais são os Cinco
Ms utilizados de maneira altamente técnica, cujo objetivo é auxiliar o sādhaka
a sair da dualidade superficial entre o profano e o sagrado. Também são
ferramentas poderosas para sublimação da energia sexual em puro amor conjugal
que, em contra partida, libera o fluxo contido do amor universal. A
característica principal do kula-sādhanā é a transformação do sexo na
mais pura forma do amor, até que este alcance o estágio de amor universal que é
equivalente a auto-realização ou pratyabhijñā.
Dessa forma, Abhinavagupta sucede
fazendo uma síntese bem sucedida das escolas Spanda, Krama e Kula
no corpo da escola Pratyabhijñā. Portanto, é apropriado identificar a
filosofia Pratyabhijñā com o Śaivismo da Caxemira em si,
principalmente no contexto de Abhinavagupta. Ele foi chamado de o śaiva
completo. A escola Pratyabhijñā que começou com Somānanda e foi
desenvolvida por Utpaladeva, alcançou sua culminação perfeita com
Abhinavagupta, que não deixou nada sem explicação e teceu todos os fios
separados da tradição em um sistema coerente.
Abhinava contribuiu de duas maneiras
para escola Pratyabhijñā. Primeiro ele corrigiu e modificou a posição de
Somānanda de fazer desta escola um sistema completo e auto-consistente que
fosse compatível com outros sistemas. Segundo, ele tomou as ideias de seus
predecessores à sua expressão mais completa, tornando reais os potenciais do
sistema, distinguindo e clareando os nuances sutis das questões envolvidas.
O primeiro ponto se torna evidente
quando nós investigamos como Somānanda tratava a escola de gramática de Bhartṛhari.
Ele acreditava que a linguagem dos filósofos não aceitava a Consciência como
Realidade e que portanto sua teoria da «Palavra como Supremo» (śabda-brahmavāda)
era insustentável, pois as coisas do mundo não podem ser racionalmente
concebidas como «Manifestações da Palavra» ou linguagem (śabda), a não
ser que «a Palavra» seja identificada com a Consciência. Contudo, Somānanda
também acreditava que os gramáticos também não aceitavam a fala transcendental
(parā-vāk), que é a matriz dos estados de criação paśyantī, madhyamā
e vaikharī. Ele sarcasticamente observou: para os tolos gramáticos,
paśyantī é o estado supremo.6
Embora Abhinavagupta não critique
abertamente Somānanda, ele rejeita seu criticismo em relação a Bhartṛhari. Ele
explica a Realidade ou Consciência nos termos da Fala (śabda ou vāk)
no seu magnífico Parātrīśikā-Vivaraṇa, deixando claro que a posição da
filosofia Trika não difere dos gramáticos. Os gramáticos identificam a
Fala com a Consciência e também aceitam o estado transcendental (parā ou
parapaśyantī), que é a matriz de tudo. O processo de criação, assim como
no Śaivismo da Caxemira, se inicia em paśyantī. Como os
gramáticos se interessam bastante pelo processo de Criação, eles começam com paśyantī.
Mas isso não significa que eles omitem o transcendente (parā).
Abhinavagupta corrige e modifica a atitude injustificada de Somānanda em
relação a Bhartṛhari, de forma que a não-dualidade da Consciência (cidadvaita)
do Śaivismo da Caxemira tornou-se coerente com a não-dualidade do Som (śabdadvaita)
de Bhartṛhari.
O segundo ponto – que Abhinava é a
culminação da filosofia Pratyabhijñā – se torna evidente através do
estudo das obras de Somānanda, Utpaladeva e do próprio Abhinavagupta. Os
primeiros lampejos da filosofia Pratyabhijñā se encontram no Śivadṛṣṭi
de Somānanda, mas ele foi exposto de forma bem concisa e por conta disso, além
de seu estilo literário, é de difícil acesso. Foi Utpaladeva o responsável por
detalhar de forma simples os ensinamentos de Somānanda. Mas nem ele foi capaz
de sanar todas as questões ou explica-las com maiores detalhes. O aspecto que
se relaciona a prática espiritual (sādhanā), por exemplo, foi
superficialmente revelado.
Abhinavagupta, por outro lado,
cumpriu a tarefa de desenvolver a filosofia Pratyabhijñā por completo. A
semente da filosofia do auto-reconhecimento (ātma-pratyabhijñā) ou
auto-realização brotou com Vasugupta, cresceu com Somānanda e se tornou uma
árvore pequena com Utpaladeva. Com Abhinavagupta essa árvore cresceu as alturas
e ganhou inúmeros galhos com folhas, flores e frutos.
Um ponto adicional no que se refere ao
significado de Abhinavagupta é que ele expôs a teoria indiana de estética sob a
luz da filosofia śaiva. Ele escreveu comentários versados sobre o Nāṭya-śāstra
de Bharata e o Dhvanyāloka de Ānandavardhana. No seu comentário sobre
Bharata, chamado Bhāratī ou Abhinavabhāratī, ele expôs a teoria
de rasa ou felicidade estética do ponto de vista śaiva da
perfeição.
Notas
1. Veja Tantrāloka, versos 7-16 abaixo.
2. Literalmente, tarka significa percepção que
diferencia, é a lógica transcendental, inquiridora. No Tantrāloka,
capítulo cinco, Abhinava menciona que no Śaivismo da Caxemira não se
adiciona yama, niyama e āsana no sistema de yoga ou
śaivāgama-yoga. Ele deu importância apenas a seis membros do yoga:
prāṇāyāma, pratyāhāra, dhyāna, dhāraṇā, tarka
e samādhi. Os oito membros do yoga, conforme delineados por
Patañjali no Yogasūtra, auxiliam os buscadores que estão no nível mais
denso da prática, i.e. āṇavopāya. Mas nos níveis mais avançados da
prática, i.e. śāktopāya e śāmbavopāya, eles não são utilizados. A
característica principal do Śaivismo da Caxemira é consciência. A
filosofia Trika considera prāṇāyāma, pratyāhāra, dhyāna
e dhāraṇā como mecanismos externos utilizados na prática do yoga.
Em essência, Trika postula apenas um membro do yoga: tarka,
a discriminação entre o individual e o universal, a lógica
discriminativa da consciência.
3. Isso levou muitos autores a pensarem que esta é uma escola
de natureza śākta.
4. Veja no blog Anuttara Trika Kula o artigo O
Significado da Doutrina da Mão-Esquerda ou Kulamārga para mais informações
sobre essa escola.
5. द्वैत-प्रथा तदज्ञनम्, TĀ, I: 30. Veja Anuttarāṣṭikā, verso 4: सर्वाद्वैतपदस्य विस्मृतनिधेः प्रातिः प्रकाशोदयः.
6. वैयाकरङसाधूनां पश्यन्ती सा परा स्थितिः, ŚDṛ, II: 1. Parā, paśyantī, madhyanā
e vaikharī descrevem níveis de manifestação na arte criativa, seja a
criação do mundo por Śiva ou a criação de um cântaro por um oleiro. Os termos
também se relacionam aos níveis da fala. Parā que literalmente significa
a transcendente é o nível mais elevado, o estado anterior a
manifestação. Paśyantī é o nível da vontade (iccha), onde a
vontade para criar (ou falar) primeiro se manifesta. Madhyamā, que
literalmente significa intermediário ou mediano é o estado onde a
criação existe, mas apenas como uma ideia, não como a manifestação propriamente
dita. Vaikharī, que literalmente significa exterior, é o estado
final onde a criação existe como algo tangível.
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